JAcQUEs TOU AQUI!

Não tinha atingido os doze anos quando comecei a assumir certas responsabilidades. Lembro-me de às segundas-feiras, pelas seis da manhã, iniciar uma tarefa que se manteve regular por alguns bons meses. Foi até ter “emigrado” para outras paragens do concelho. Era uma caminhada de seis quilómetros de ida, e outros tantos de regresso. Marcava a distância que separava Calulo de Dala-Uso, o sítio onde nasci. Era ali também o local da chitaca que o meu velho demarcara em 1949. A missão consistia em pesar fuba, peixe seco e sal, géneros destinados à alimentação semanal, e que se distribuíam à meia dúzia de trabalhadores que desbravava heroicamente muxitus e plantava os primeiros cafeeiros nos hectares iniciais da nossa Fazenda Amélia.
A meio dessas manhãs, mais próximo do meio-dia, chegava pontualmente o farnel do almoço preparado pela avó Mariquinhas. As panelas e os pratos vinham embrulhados em toalha imaculada de limpa e o menu era invariavelmente funji de milho, ovo cozido e chouriço assado com molho de tomate e quiabos ou, para variar, arroz guisado com carne de caça, ou com sardinha, ou atum de lata. Acompanhava sempre uma garrafa de garapa de milho ou de gajaja.
Os primeiros dias não foram fáceis. O alvorecer no cacimbo do Libolo assustava-me. Era de um tom escurecido, aterrador para miúdos da minha idade. Os ruídos do mato à beira da estrada faziam tremer de medo. Não me tinha libertado ainda do fantástico das histórias dos canjongós. Uns feiticeiros que estabeleciam alianças com os alemães, para juntos cortarem as cabeças dos pretos que oleavam as suas máquinas e motores.
Não tardou, passei a convidar amigos, parentes e antigos colegas de escola, para me fazerem companhia naquelas estiradas. Nunca gostei de andar sozinho, é curioso que ainda hoje, não gosto de ir ao cinema ou ao futebol sem companhia. Já tinha o dom da persuasão naquele tempo. Usando o jeito, não me foi difícil convencer o Abel, o Nuno e o Mário. Acho que o Kileba também foi uma vez. Era preciosa a companhia dos amigos em cada segunda-feira. Com qualquer deles ao meu lado, perdia o medo. Quando a vida me obrigou a deixar Calulo, fui substituído na tarefa pelo meu irmão Fernando. Quando hoje nos lembramos dessa época prodigiosa, sentimos um tremendo orgulho de ser quem somos e lembramos com respeito e saudade a figura do nosso velho.
Estava ainda eu em funções quando numa fria manhã de segunda-feira em que não encontrei companhia, sentindo algum cansaço, decidi visitar o avô Pedro Calado na Kibela. Com o intuito de lhe pedir a bicicleta para regressar a Calulo, porque a tarde caía e a noite era problemática. O velho adorava-me. Contava-me estórias, dizia aos filhos que eu era um menino esperto. No meio desses elogios, foi fácil convencê-lo a emprestar-me a “chica”.
Tem cuidado com a bicicleta, recomendou. Amanhã, tem que estar aqui, ordenou.
Reparei na sua preocupação ao descobrir que eu não chegava aos pedais, sentado no selim. Não tinha pernas para a “burra”. Mas eu sempre fui um desenrascado. Não se preocupe avô, garanti segurança ao mais velho. O seu ar risonho passou a preocupado quando notou que, ao não chegar aos pedais a partir do selim, eu introduzia a perna direita no espaço que ficava entre o pedal direito e a roda pedaleira, para conseguir, de lado, com o corpo desenquadrado do resto da estrutura, pedalar e mover a bicicleta.
Fazia-se tarde e eu tinha que chegar a Calulo antes do anoitecer. Os canjongós espreitavam. Pedalei energicamente nos primeiros quilómetros, uns dois, talvez, quando vi à distância, um rapazinho da minha idade que eu conhecia bem. Morava nas proximidades da sanzala da Vila Flor. Implorei, vem comigo. Dormes lá em casa, amanhã voltas.
Consegui colocá-lo sentado no quadro, e comigo de lado, desequilibrado, com o corpo a afastar-se da estrutura da bicicleta, empreendemos a arriscada etapa. O terreno era inclinado nas imediações da Vila Flor. Avistei a curva e as pedras grandes, tudo a aumentar de tamanho. Aflito, dei conta que os travões falhavam. Foi inevitável a queda aparatosa, como foram os arranhões e o sangue que brotou de nós. A bicicleta sofreu danos, teve que ser transportada penosamente para Calulo, onde a noite caíra inexoravelmente. Para sempre, ficou comigo a lição. Só quem tem unhas é que deve tocar guitarra!
Lembrei-me de contar este episódio da minha época infanto-juvenil ao verificar como muitos mais velhos de hoje em dia, cometem erros indesculpáveis, que fazem lembrar os praticados pelos miúdos do meu tempo. Sem pernas que cheguem aos pedais das máquinas responsáveis que conduzem, andam com o corpo de lado, fora da estrutura das suas bicicletas afinadas, com selins e rodas pedaleiras especiais. Mesmo apetrechados, cometem erros condenáveis, alguns deles gravíssimos, sem perdão. Prejudiciais à Nação Angolana. Coincidentemente, no meio das desgraças que provocam, há sempre e também, um avô Pedro a protegê-los. O pior disto tudo para os ciclistas é que tudo mudou na nossa terra, inclusivamente o pensamento da sua gente. Já não existem avôs Pedros bondosos e o povo é outro também. É preciso fazer atenção com ele porque este mesmo que estamos com ele não costuma perdoar.
Mais não digo por hoje. Abraço e cumprimento os meus estimados leitores. Com muita estima e a consideração habitual. Caríssimos, até ao próximo domingo, á hora do matabicho.
Lisboa, 16 de Março de 2025