O Libolo, a feira dos municípios e a vida que não acontece

CONVERSA NA MULEMBA

A agricultura empresarial está quase moribunda (três ou quatro excepções não contam num universo que conheceu mais de 300 fazendas) e a familiar está praticamente reduzida à subsistência por falta de mercado. A cooperativa de empresários agrícolas faliu, contribuindo para tal a falta de perspectiva, os calotes do Estado e os prejuízos causados por falsas promessas no tempo azarado dos “papagros”.

FERNANDO PACHECO*

O Fórum e a Feira dos Municípios e das Cidades que tiveram lugar na passada semana no Lubango foram dois acontecimentos de assinalável relevância. Em primeiro lugar, pelo facto de durante vários dias as atenções do País terem estado focadas nos problemas dos municípios, ou melhor, do reiteradamente esquecido interior – o que é uma raridade. Depois pela qualidade, diversidade e abertura dos debates que ocorreram nos workshops, que se realizaram paralela ou complementarmente ao Fórum. Ainda pelos negócios realizados, quer pelos expositores ou feirantes de diversas origens (cerca de 528), quer pelos pequenos empresários locais que puderam ver as suas anémicas economias animadas pela presença de muitas centenas de visitantes. E finalmente, pelo encontro de duas realidades distintas, a das pessoas vindas dos municípios onde era suposto a vida acontecer, e a dos oriundos da “central”, isto é, da capital, onde é suposto ser conhecida a primeira realidade de modo a que se pudessem definir as políticas e os programas que permitissem finalmente fazer acontecer a vida nos desprezados municípios.

No entanto, nem tudo foi bom. Para além do exagerado peso político-governamental e apenas a título de exemplo, o número de funcionários públicos de cada município foi assustadoramente elevado, o que acarretou um volume exagerado de gastos para as exíguas finanças locais (que rubricas orçamentais terão sido lesadas?) e também ocasionou um prejuízo para o já mais que débil funcionamento das Administrações que ficaram ainda mais vazias. Seria diferente se dos municípios se pudessem deslocar, com custos próprios, outro tipo de actores, empresários ou da sociedade civil, mas, claro, seria necessário que eles existissem como tal e não fossem apenas sucedâneos do “contratado” que no poema de António Jacinto, incapaz, por não saber, de escrever a carta desejada para a sua amada.

Na ressaca do que foi a actividade da passada semana dou comigo a pensar como tudo poderia ser diferente se houvesse condições para que cada município pudesse organizar anualmente as suas feiras e fóruns com ampla iniciativa e participação popular. Uma vez mais sugiro a quem de direito que estude a rica experiência das gentes do Uíje em matéria de organização de mercados populares a nível de muitas aldeias.

O Ministro da Administração do Território anunciou no Lubango um grande êxito dos municípios – a arrecadação de 18 mil milhões de receitas, o que corresponde a cerca de 22 milhões de dólares americanos ao câmbio actual do BDA, o que dá uma média de 133 mil dólares por ano. Ora, dado que os municípios de Luanda, no seu conjunto, representam mais de 70 % das receitas nacionais, poder-se-á imaginar que muitos dos tais desprezados estarão tendencialmente próximos de zero. Se pensarmos que no início do Programa de Desenvolvimento Local e Combate à Pobreza, há pouco mais de 12 anos, cada município chegou a receber, pelo menos em termos de orçamento, cinco milhões de dólares por ano, sem que se tivesse avaliado o impacto dessa acção, poderemos questionar a importância do êxito anunciado.

Este panorama serve de pano de fundo às minhas actuais reflexões sobre a vida que deveria fazer- se, de acordo com o slogan, no meu querido município do Libolo. Rico em história de resistência à ocupação colonial, em pujança económica com base na agricultura até 1975 e em estórias (“cenas” na terminologia da nossa juventude) que deliciaram várias gerações de naturais e habitantes pelo seu carácter insólito, o Libolo era um município com um elevado potencial de desenvolvimento. Calulo, a sua dinâmica e buliçosa sede, era uma vila que, como tantas outras, passou a representar, principalmente depois dos acontecimentos de 1961, um factor de mudança do espaço social rural, permitindo um certo continuum entre o rural e o urbano, a contrariar a expressiva e tradicional dicotomia típica das sociedades coloniais. No entanto, as injustiças decorrentes da situação colonial eram mais que muitas. Por exemplo, durante os quatro anos em que estudei na escola primária João de Barros, no 39, passou por lá um único aluno de cor negra, filha de um funcionário oriundo de S. Tomé, pois as crianças negras e mestiças mais pobres apenas podiam estudar na escola da Missão Católica.

Nos primeiros anos de independência, e apesar do elevado nível de abandono por parte dos mais destacados empresários agrícolas e comercias, foi mantendo uma certa actividade económica e social, quebrada a partir de 1983 com a primeira ocupação pelas forças da UNITA. Iniciada a reconstrução, foram enormes as expectativas de recuperação pelo entusiasmo de muitos dos seus filhos que ponderaram, e alguns concretizaram, o seu regresso depois das debandadas de 1975 e 1983. O investimento na recuperação de fazendas chegou a ser notório, foram abertos balcões de bancos e o Clube Recreativo do Libolo ganhou quatro vezes o título de campeão nacional de futebol, sendo o único caso de um clube de um município situado fora de uma capital provincial.

Os erros políticos desse período, aliados aos descaminhos financeiros do país, foram matando progressivamente tal dinamismo. Apesar de, teimosamente, ainda haver iniciativas privadas, fruto do engenho, do aproveitamento de oportunidades e do amor à terra – algo que tanta falta hoje a quase todos os municípios – que permitem, por exemplo, a existência de um instituto superior de agronomia, uma orquestra sinfónica infanto-juvenil ou a realização recente de uma conferência internacional sobre questões de linguística, e ainda de se estar a conhecer uma certa melhoria de algumas infra-estruturas, como a energia eléctrica, a asfaltagem das principais ruas, o transporte público diário de e para Luanda e a toponímia que, apesar de não ter evitado muitos dos nomes crónicos, soube honrar alguns filhos da terra (de lamentar o esquecimento dos heróis da resistência), apesar de tudo o exposto, Calulo e Libolo vivem momentos muito preocupantes.

A agricultura empresarial está quase moribunda (três ou quatro excepções não contam num universo que conheceu mais de 300 fazendas) e a familiar está praticamente reduzida à subsistência por falta de mercado. A cooperativa de empresários agrícolas faliu, contribuindo para tal a falta de perspectiva, os calotes do Estado e os prejuízos causados por falsas promessas no tempo azarado dos “papagros”. O número de indústrias está reduzido também a três ou quatro unidades, um dos balcões de bancos encerrou as suas portas e o único mini-mercado, inaugurado há cerca de dez anos, tem as prateleiras vazias por inexistência de clientes com algum poder de compra dado o aumento vertiginosos dos preços. O desemprego só não é mais elevado porque os jovens emigram para o Sumbe e para Luanda (também o Dondo já não está a “bater”). Perante os galopantes níveis de pobreza, os roubos atingem expressões elevadíssimas, como fazendas, lavras e escolas vandalizadas e saqueadas e até redes de transmissão eléctrica, tudo serve para roubar, desde que permita alimentar a família durante dois ou três dias. A Polícia não actua porque não tem dinheiro para dar alimentação aos eventuais prisioneiros.

Calulo onde, apesar de tudo, ainda há escola e assistência médica, viu aumentada exponencialmente a sua população desde 1975, vinda das comunas, tal como vem agora a planta infestante “ocupa terreno” que está a tornar a vida dos criadores de gado insuportável, sem que haja a mínima capacidade institucional para enfrentar o problema. Uma das consequências desse aumento da população foi a morte do rio Kambuko, o pequeno-grande e mítico rio que todo Calulense traz no coração, que não aguentou a enorme pressão dessa nova população. Espero que o nevoeiro, outro dos ícones da terra, não venha a ter o mesmo fim.

Novo Jornal, 18/8/23

Fotografia: Facebooc Tudo pelo Libolo – A única via alternativa para entrar e sair do Libolo. Se não a estrada CALULO-MUNEMGA não for reparada, já não haverá entradas e saídas.

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