CONVERSA NA MULEMBA
Esta crónica de Fernando Pacheco foi publicada em 2021. Passados quase quatro anos, o País segue com os mesmos problemas e o Executivo teima em prosseguir com as mesmas soluções e, mais grave, provocando ele mesmo alguns dos problemas. Em vez de se preocupar com o prioritário, gasta rios de dinheiro, de energia e de tempo com questões que podem ser importantes e necessárias, mas claramente não constituem de modo algum prioridades. E até fazem mais. Repetem uma cabala política que não tinha pernas para andar, como ficou provado, na tentativa de afastar opositores. Pela sua pertinência, Kesongo retoma a publicação do texto.

Terminei a minha última conversa dizendo que a situação do País é difícil, mas podia piorar, e lançando um apelo à reconciliação entre os actores políticos, exortando-os a pensarem na juventude e nas crianças e a fazerem um pacto de convivência democrática, antes que seja tarde demais.
Infelizmente, a temperatura política subiu neste último mês. Ao anúncio formal da constituição de uma frente entre forças partidárias na oposição – um facto político relevante, independentemente de qualquer outra apreciação –, visando uma possível alternância do poder, o partido governante respondeu com uma musculada declaração cujo conteúdo foi considerado infeliz por muitos analistas independentes. A referência ao facto de estar a decorrer um processo sobre a legalidade da eleição do actual líder da UNITA, no Tribunal Constitucional, com recurso a terminologia imprópria em debate ou confronto político, foi particularmente realçada.
Associando tal conteúdo a intervenções de altos dirigentes que se lhe seguiram, não pude deixar de estabelecer ligação a outra declaração, igualmente infeliz, do mesmo órgão partidário nos primeiros dias de Março de 2011, a propósito de uma manifestação dos jovens “Revús” convocada para 7 desse mês. Os acontecimentos posteriores representaram uma derrota para o MPLA e principalmente para o então Presidente, que viu aumentar o seu desgaste político, acabando por resultar, uns anos mais tarde, na sua substituição.
Os órgãos de justiça que trataram o caso dos “Revús” não esconderam as pressões políticas sofridas e ficaram mal na fotografia. A sistemática perda de processos nos tribunais por parte das oposições ao longo dos anos tem contribuído para a descredibilização desses órgãos, não só na vertente política, mas também na económica, como a corajosa entrevista de Benja Satula (Expansão de 13-8-21) demonstrou. Se as coisas se passam assim na área económica, com maioria de razão se pode esperar que na política não seja diferente. A perda de confiança no sistema aumentou com dois acontecimentos recentes: a decisão de se atribuir aos seus órgãos 10% dos activos recuperados nas contendas contra a corrupção, e o resultado do processo em Espanha envolvendo o ex-Secretário do Presidente da República para os Assuntos Económicos, Carlos Panzo. Claro que tudo isso tem reflexos no investimento directo estrangeiro de que Angola tanto necessita.
É nessa perspectiva que deve ser analisada a referência ao processo judicial contra o presidente da UNITA. Verdade ou não, o que o comunicado transmite, aliado a episódios infames na comunicação social ao longo dos últimos meses, é que parece haver da parte do partido no poder interesse em impedir a candidatura do actual líder da oposição às próximas eleições.
Trata-se de um caminho descabido, incorrecto e perigoso. Seja qual for o resultado deste imbróglio, o MPLA ficará com a imagem muito chamuscada. A história – sempre ela – ensina-nos que outros partidos, como o Institucionalista (no México), o PCUS (na antiga União Soviética) ou a União Nacional (em Portugal), que estiveram longas décadas no poder e não souberam renovar-se e rejuvenescer ideias e práticas, acabaram muito enfraquecidos ou desapareceram. A pobreza de alguns dos recentes actos políticos públicos do MPLA, roçando por vezes o ridículo, pode permitir várias leituras, sendo uma delas o receio de perder o seu poder hegemónico.
Nessa linha descabida, incorrecta e perigosa, recorre-se à ajuda da comunicação social pública, que vem aumentando a sua escalada de ausência de pluralismo e de contraditório. A preferência pela militância e pelo controlo em relação ao profissionalismo acaba por ter consequências, quer de desempenho dos diferentes actores, quer nas áreas da informação e da técnica. Numa altura em que abundam as fontes alternativas de informação, tal estratégia revela-se incorrecta e desnecessária. A maioria dos angolanos, mesmo os próximos do partido no poder, não pode compreender que dois anos depois da sua eleição, tenham acesso às ideias, boas ou más, do líder da oposição apenas através das redes sociais ou da RTP África. Não compreende como se pode debater sobre a Frente Ampla sem ninguém dessa Frente. Não aceita que só possa ver através das redes sociais as revoltantes imagens do Jau (Huíla) e da Bibala (Namibe), que o mundo não via desde o Biafra nos anos 60 e a Etiópia nos anos 80.
Mas pode ver anunciar que o Executivo vai construir piscinas nas centralidades. A propaganda é uma arma com efeitos perversos em termos estratégicos. Mas não foi apenas a subida da temperatura política que preocupou. A situação difícil não melhorou, de um modo geral, de há um mês para cá, e em alguns casos até piorou.
Nessa perspectiva, é difícil de entender que a ideia de alteração da divisão administrativa do País, não prevista no Plano Nacional 2018-2022, se realize este ano, quando a pandemia obrigou a certos adiamentos, como, por exemplo, as eleições autárquicas. A ideia é pertinente, não tenho dúvidas para alguns casos, não todos, a oportunidade e o método é que não e apanhou meio mundo de surpresa. Até porque uma reflexão mais amadurecida poderia induzir ao tratamento de outros casos, como Luanda e talvez Cabinda. Pode ser importante e necessário, mas é absurdo pensar que seja prioritário com o País em situação de emergência e com um longo período de recessão económica.
Desde logo por uma questão de recursos, financeiros e humanos, para além do recurso tempo, geralmente esquecido. Como suportar, no orçamento do próximo ano, já sobrecarregado com as eleições, os enormes custos que a instalação, a partir do zero, de cinco ou seis novas estruturas provinciais e mais municipais, com infra-estruturas de serviços, residências, equipamentos, meios de transporte, entre outras, exige? Como aumentar significativamente a folha salarial da função pública quando não pode aumentar para reforçar sectores altamente estratégicos como a saúde, a educação a agricultura e a justiça?
Mas também por causa do recurso tempo. O País está a braços com um sem fim de problemas. Com a pandemia, a luta contra a corrupção, a criminalidade em crescendo, o desemprego, a diversificação da economia, o custo de vida, a maior onda de greves a desde 1975, a falta de perspectiva para os jovens, mesmo quando têm empregos considerados bons, e mais as eleições. Nessa circunstância, por que razão havemos de rever agora a Divisão Administrativa? Não sendo prioritária, dever-se-ia começar pela realização de estudos de carácter ecológico, demográfico, económico, social, antropológico, de meios de vida, dos limites, e outros, para identificar problemas da actual divisão administrativa e as questões relacionadas, e, em função disso, propor soluções e promover a sua discussão pública. O que as populações das províncias em causa precisam de imediato é de serviços, públicos e privados, de estradas, de comércio e de acesso a sementes e ferramentas usuais. Isso, sim, é absolutamente prioritário. A divisão administrativa poderá trazer benefícios imediatos às elites, mas não ao povo em geral. Estes só os terão a médio e longo prazo.
Prioritário é também que se criem condições para o pacto de convivência democrática, pensando na juventude e nas crianças que não podem continuar a ter o seu futuro adiado. Antes que seja tarde demais.
Fernando Pacheco, 20/8/21
….assim nós caminhamos….