O CINQUENTENÁRIO (parte1)

JAcQUEs TOU AQUI!

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Ao ler a minha última crónica, uma amiga que considero bastante, comentou: os escravizados não lêem estas crónicas e os privilegiados não te ouvem. Só querem a SUA PAZ. Meditei sobre o que acabava de ler e a resposta surgiu para não ficar calado, és capaz de ter razão, respondi. Mas cá para os meus botões, comentei, “se eu e os outros deixarmos de escrever, os escravizados jamais escaparão dessa triste condição. Se, pelo contrário, formos em frente, os privilegiados navegarão cada vez mais em águas de tormenta e fatalmente terão de ouvir”. Convicto, fiquei com a minha Paz e segui o velho instinto de escrever.

Estamos a dois dias de entrar em 2025. O ano do cinquentenário de Angola Independente. Corro o nosso percurso de luta e acho-me com o direito de reclamar. Apoiado na realidade, para afirmar que a um povo a quem, em meio século de vida em liberdade, não se deu nada melhor que não fosse a alegria da Independência Nacional, do Hino e da Bandeira e, também, esse tremendo orgulho de ser angolano, lembrado magnificamente no canto de Paulo Flores; 

A esse povo heróico e generoso, em meu entender, deveria ser oferecida, a partir de Janeiro próximo, à laia de esquebra ou matabicho, a possibilidade de qualquer coisinha mais. Poder-lhe-ia ser dado, pelo menos e por exemplo, o privilégio da experiência de realizar. Sim. De cada cidadão-membro-de-direito, cada instituição da sociedade civil, nos mais diversos sectores e nas suas variadas posições, poder programar a sua festa do “Quinquagésimo da Independência”. No modo e no jeito que cada um visse a melhor forma de festejar a magnífica efeméride. Sem amarras partidárias, livres de quaisquer compromissos.

Concebi uma improvável programação para a festa. Desde logo, ocupando no mês de Janeiro o dia 28, data quase coincidente com o aniversário da cidade-capital, a eterna São Paulo de Assunção de Loanda, para celebrar os 36 anos de vida da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde. Explicando-me, vou justificar a razão e o porquê dessa inclusão. Poderá ser vista como imprópria, oportunista, atrevida. Nada disso me poderá incomodar. Essencialmente porque a minha condição de cidadão com direitos diz-me que não me devo ralar. Leva-me a fazê-lo, desde logo, a razão imposta pelo interesse público. E tem como objectivo principal, o clarear da lembrança de certa gente. Principalmente da que alimenta apetites vorazes de se apropriar das estruturas que lhe têm servido. Assumo essa atitude num momento repleto de dúvidas e em que a ideia dos festejos do nosso Cinquentenário assume enorme importância, criando imensas e naturais expectativas nos angolanos.

Faço-o intencionalmente. Para recordar que foi ela, a Chá de Caxinde, depois da União dos Escritores Angolanos (nascida com o país novo em Novembro de 1975), a primeira associação cultural angolana, surgida no tempo novo do país. Nasceu depois de ter sido enterrado o recolher obrigatório, tornado famoso pelo facto de a sua longevidade concorrer para record do Guiness Book. A proclamação aconteceu após terem sido aprovados os seus estatutos no antigo Hotel Panorama, à Ilha de Luanda, em cerimónia prestigiada pelo Ministro da Cultura do momento, o escritor Boaventura da Silva Cardoso, que discursou bonito. Assinalava-se então o primeiro mês do chamado “Ano da Ampliação da Democracia”.

Era tempo de mudança, sentiam-se os efeitos do fim da Guerra Fria, avançava-se corajosamente para o Estado de Direito e para a adopção do sistema multipartidário.

Devidamente autorizada pela Edecine, empresa estatal adstrita ao Ministério da Cultura, sua legal proprietária, e através de um contrato subscrito pelas partes interessadas, a Caxinde, assumindo o pagamento de uma renda mensal, retirou da lixeira que servia de refúgio a jovens delinquentes, os resíduos do velho Nacional Cine-Teatro, devolvendo-o às gentes e à vida cultural da cidade. Deu-lhe força suficiente para conquistar posteriormente, por direito conferido pelo seu passado, o título de Património Cultural Nacional que hoje ostenta. Foi, não se esqueça o pormenor, guardiã responsável dessa relíquia, em todos estes anos.

Integrantes do Clube Sénior Caxinde

A Chá de Caxinde, nunca contou com apoios financeiros do Estado, e fez das instalações do Nacional, a sua sede social. Depois do associado Luandino Vieira ter idealizado a sua bandeira nas cores verde e branca e na base de um ideograma da cultura tckokwe e outro membro, Pepetela, ter criado a sua divisa “Unir pela Cultura”, assumiu as suas obrigações. Jamais se desviando das cláusulas contratuais com o Estado, foi caminhando com passos seguros. No âmbito da sua acção, fundou no mesmo local a primeira editora e livraria que veio colmatar o enorme défice verificado no período pós-Independência. Um tremendo vazio proveniente do encerramento de estabelecimentos como a Lello, ABC, Minerva, Lusitana, Centro do Livro Brasileiro e outros do género que serviam Luanda e o interior de Angola. Seguindo o seu propósito nacionalista, a Caxinde soube, em momentos altos da sua actividade, homenagear muitos patriotas, alguns dos quais cidadãos esquecidos e maltratados, trazendo também a visitar Angola, presencialmente ou através do livro, nomes célebres da literatura nacional e mundial. Foi ainda a Chá de Caxinde que, com a ajuda de algumas empresas e a expensas da sua generosa massa associativa, aliada ao entusiasmo da sociedade civil da época, recuperou a emblemática sala, o melhor que pôde, e a par de sessões com artistas da terra e de fora, activou o palco do velho Nacional, realizando espectáculos de vários géneros, tendo sido ainda promotora, vai fazer em 2025, vinte e um anos, do primeiro e até hoje, único Encontro de Escritores Angolanos na Angola Independente (Lubango, Agosto de 2004). Será que tudo isto e mais o que se vai revelar não tem significado e se pode esquecer tão facilmente?

Por puro preconceito (darei conta aos leitores em próximos escritos) e com base num maquiavelismo difícil de entender, apesar do aval dos Ministérios da Cultura e da Justiça de então, ao contrário de outras agremiações beneficiadas, jamais foi admitida a hipótese de lhe ser atribuído o título de utilidade pública, absolutamente merecido. Paralelamente deu-se início a um conjunto de actos subterrâneos sentidos pela população atenta. Ano após ano, retiravam-lhe, paulatinamente, a força inicial e dificultavam claramente a continuidade da sua meritória acção em prol da cultura angolana. Uma falta de justiça imperdoável! 

É por demais conhecida a ligação da Chá de Caxinde ao Carnaval. Em 2025, a Festa acontece nos primeiros dias de Março. Abstenho-me de falar por enquanto dos motivos que levaram ao divórcio de “Os Unidos do Caxinde” (grupo vinculado à Associação) do Carnaval de Luanda. Mas, na linha da minha pretensa proposta, sugiro que naquele período, o Ministério da Cultura tente a democratização, de facto, do Carnaval de Luanda. Embora tenha a dúvida (nunca compreendi as razões) de saber se a realização do Carnaval é da responsabilidade da Cultura ou do Governo Provincial. Mesmo que a acção coubesse ou caiba a ambas entidades, não seria descabido que a ideia que segue fosse pelo menos estudada pelo novíssimo Governador Luís Nunes e pelo Ministro Filipe Zau, seus titulares. Os ilustres governantes são, devem ser, têm que ser pessoas próximas dos valores democráticos duma sociedade que se intitula democrática. 

Seja como for, a minha proposta, para além de satisfazer a experiência do breve exercício da democracia participativa tantas vezes propalada, levaria também ao estudo de uma situação que entendo dever ser encarada. Chegou-me ao conhecimento a recente criação de uma Liga do Carnaval que, julgo, substitui a incaracterística Aprocal, a dita Associação Provincial do Carnaval de Luanda. Uma agremiação que nunca realizou eleições nem dava hipótese a que os seus membros de direito (os grupos de Carnaval essencialmente), pudessem estar representados na sua direcção. Não lhes davam a importância devida, não eram considerados nem consultados nas suas decisões, muito menos na gestão dos orçamentos atribuídos à Grande Festa. Sem medo de errar, tenho para mim a firme ideia de que nunca se justificou a presença permanente de certas pessoas, que tiveram nas mãos (desconheço se ainda têm) o domínio do evento grandioso, da maior festa popular da capital do país, por mais de vinte anos.

Deixo por enquanto a Chá de Caxinde e as suas incomodativas reclamações para futuras lembranças, prometendo que me voltarei na próxima semana para outros aspectos que, na minha opinião, não podem ser esquecidos por quem se vai encarregar da programação oficial do Quinquagésimo Aniversário da Angola Independente. 

Fico por aqui, porque para a semana há mais. Despeço-me de todos, com o desejo de um bom início de Ano. Aspirando por boas ideias e iniciativas a serem aproveitadas em 2025. Enquanto aguardo a vitória do Glorioso Benfica no derby lisboeta de mais logo à noite, despeço-me. Até ao próximo domingo, à hora do matabicho.

Lisboa, 29 de Dezembro de 2024

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