O CATÁLOGO

Nunca se viu um político reconhecer, dizer de viva-voz, que determinado programa ou aquela promessa falharam, foram um fiasco, porque erramos, previmos mal, não calculámos nem executámos da melhor forma, etc.; ou assumir que a culpa de muita desgraça, não é “de forças externas”, nem só de “falta de patriotismo”, nem apenas por alguém “ser da oposição”. 

POR AIRES ALMEIDA

Assim que o País se tornou independente, está perto de completar 49 anos, foi logo adoptado um catálogo que tem servido, desde essa altura, para justificar tudo. Com os devidos ajustamentos aos tempos e às circunstâncias, acabou por ser um instrumento utilizado como desculpas e para a justificação de tudo ou quase tudo, e até de erros, muitos dos quais produziram efeitos que são ainda hoje visíveis e sentidos.

O catálogo tem servido para tudo e para todos. Há de tudo e para todos os gostos.

“Estamos a aprender”, foi dos primeiros chavões com que se iniciou a catalogação das desculpas porque, nessa altura, nos tempos primitivos da independência, havia poucos quadros, os que havia nunca haviam governado, e dizer governar não se refere apenas aos do topo, até mesmo nas posições intermédias e cá mais para baixo se sentia a falta de pessoal. A ponte aérea havia levado muitos milhares de quadros e outros, que mesmo não sendo como tal, faziam e fizeram falta ao recém-nascido país. Então, porque se aprendia, era preciso justificar, ou encontrar justificações para os muitos erros cometidos nessa etapa da história em que, por exemplo, se começou a perceber que, para estar lá, nos lugares de chefia, até nem eram necessárias habilitações académicas ou profissionais relevantes. Experiência, conhecimentos, mérito, habilidades, etc., nada disso era importante. Bastava “ser da confiança”. E pronto. Pode-se perceber o que foram aqueles tempos.

Recém-independente, o país enfrentava uma miríade de problemas, muitos dos quais ainda hoje perduram e, porque o colono era “responsável” por eles, acrescentou-se ao catálogo “a culpa é do colono”. E por isso, não haver água canalizada em todos os lares, por exemplo, mesmo nas cidades, tinha uma justificação e assim se escondiam outras questões. E, “a culpa é do colono” serviu, como ainda nos dias que correm tem servido, para justificar ou desculpar muito do que não se fez, ou se deixou de fazer em 49 anos.

Porém, a guerra andava feroz. Duas invasões de tropas estrangeiras e forças opositoras do sistema instituído, levaram à divisão do território, à destruição de infraestruturas e, mais grave que isso, à matança de milhares de angolanos, muitos dos quais foram aniquilados só porque não vestiam a mesma camisola ou não estavam do mesmo lado da barricada. Famílias foram destroçadas, o país esfarrapado. Foram anos muito difíceis e, compreende-se que o esforço “de guerra” tenha sido titânico. Então “a guerra” ou, “estamos em guerra”, serviu para encapotar muita incompetência, muito erros cometidos, muitos planos e programas mal definidos, estratégias mal concebidas. Também houve quem se tivesse aproveitado e servido da desculpa da guerra para enriquecer e fazer enriquecer outros. Fizeram-se coisas que não lembram ao diabo, porque “estamos em guerra” era a palavra de ordem, era a moda. Estava tudo justificado ou desculpado.

Cansados da guerra, e, porque de facto com ela não se iria longe ou a lado algum, porque se clamava por paz, o investimento estrangeiro não se fazia com o país em guerra, e tudo o que se sabe à volta disso, fez-se então a paz. Sabe-se lá… em boa verdade, acabou a guerra! 

Com o fim da guerra, tratou-se da reconstrução do país, do território, e também das pessoas porque afinal o fim da guerra representava o início de uma nova época. Pelo menos era uma altura de alguma esperança.

E vieram então outros programas e planos estratégicos para tudo, viram-se estradas ser mal reparadas com dinheiros emprestados, reconstruiu-se o que era necessário, da forma que foi possível. Era preciso pôr o país a andar. O dinheiro jorrava a rodos e encheram-se muitos cofres. Contudo, a solução de muitos dos problemas que afligiam a nação, e que vinham lá de trás, que haviam sido deixados para trás “porque estávamos em guerra”, continuaram esquecidos e, no catálogo, acrescentou-se a desculpa/justificação “estamos em paz há pouco tempo” e, assim se continuou a jogar o lixo para debaixo do tapete, enquanto uns e outros, que não eram assim tão poucos, se serviam para mandar lá para fora os dinheiros fáceis que jorravam facilmente das torneiras públicas.

Muitos outros chavões foram sendo introduzidos no catálogo, uns de maior duração ou alcance, mas, todos, com o mesmo objectivo: justificar o que quase sempre era injustificável.

E o catálogo foi sendo actualizado, naturalmente, com alguns novos conceitos e definições, e hoje, porque já não estamos em guerra, ou porque já não é assim tão pouco tempo sem guerra, diz-se em paz, evidentemente os culpados passaram a ser outros. As desculpas estão mais refinadas. E então, na actualidade, se as coisas não estão bem, se um plano sai furado, se há uma opinião que não seja satisfatória, é porque “há compatriotas que não estão interessados…”“há forças externas interessadas em…”“a falta de patriotismo de alguns compatriotas…” e por aí fora. Até se é “travestido” disto e daquilo se a opinião diverge do que se julga ser o pensamento “patriótico”. Como se ter uma opinião divergente fosse uma heresia. Há sempre uma razão, uma forma de escamotear a verdade, de assobiar para o lado.

E o catálogo está sempre actualizado e em concordância com as circunstâncias, porque algo, ou alguém, é ou deve ser culpado de… ou por… porque, efectivamente, nunca se viu um político reconhecer, dizer de viva-voz, que o programa “A”, a estratégia “B”, o plano “C” ou aquela promessa falharam, foram um fiasco, porque erramos, previmos mal, não calculámos nem executámos da melhor forma, etc. Nunca se ouviu, nem se ouvirá, um político assumir que a culpa de muita desgraça, não é “de forças externas”, nem só de “falta de patriotismo”, nem apenas por alguém “ser da oposição”. 

Enriquecido com outros epítetos, adjectivando justificações e desculpas, empurrando responsabilidades, o catálogo vai-se recheando, até porque, afinal de contas, a culpa não pode morrer solteira!

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