CONVERSA NA MULEMBA
No seu discurso de fim de ano o Presidente João Lourenço reafirmou o desejo do seu Executivo preservar a liberdade de expressão. Trata-se de um dos sofismas que têm caracterizado algumas das políticas governamentais desde há muito. Na verdade, continuam a existir em Angola jornais e rádios com linhas editoriais muito críticas ao poder, mas todos eles, com excepção da Rádio Ecclésia, limitam a sua actividade à cidade de Luanda. Os órgãos de comunicação social públicos, os únicos com raio de acção abrangente a todo o território, estão cada vez mais amordaçados, talvez como nunca. A corajosa denúncia de José Guerreiro sobre as amarras que tolhem esses órgãos, no seu livro “Eu, o meu percurso, o meu partido” é bastante reveladora. Não tardaram críticas ao antigo PCA da TPA, no jeito do “cospe onde comeu”, ao que ele respondeu de modo soberbo: “fui exonerado porque ousei dizer não”. Algo que os militantes do MPLA e seus adjacentes, ao longo da história, raramente tiveram coragem para o fazer.
A TPA é o mais importante órgão de comunicação social angolano. O seu papel deveria ser o de proporcionar informação e educação de modo a contribuir para a formação cidadã. Para tal, deveria estar aberta às diversas correntes de opinião que possam concorrer para tal desiderato. Muito recentemente os angolanos gastaram 35 milhões de dólares para melhoria do seu desempenho. Pelo resultado conhecido, tal gasto podia ser importante e necessário, mas não era prioritário. Prioritário teria sido melhorar a qualidade da informação e o entretinimento, acabar com a propaganda e despartidarizar a sua linha editorial, o que poderia ser feito com tostões.
O que se pede não é mais do que fazer cumprir o que diz a Constituição sobre a comunicação social pública. Esta é talvez a mais importante violação da nossa lei magna desde a sua aprovação em 2010 pelos sucessivos executivos. Há dias o jornalista Ismael Mateus fez uma contundente crítica ao modo como os partidos se comportam na Assembleia Nacional, colocando os seus interesses acima dos da Nação. O mesmo pode dizer-se da comunicação social. O seu mau serviço está a ser muito nocivo aos angolanos.
Vejamos, por exemplo, o que se passa com os chamados valores morais, cuja degradação está a atingir patamares alarmantes. Há dias contaram-me que uma criança tirava os botões das camisas do pai e vendia-os a um alfaiate do seu bairro. Seria interessante que o Executivo ponderasse sobre a sua própria responsabilidade na degradação de valores, com as más políticas económicas e sociais que promovem a pobreza e a exclusão. Contra tal terramoto o poder aposta em movimentos propagandísticos financiados de modo obscuro, como aconteceu no passado com outros agora caídos em desgraça, e percebe-se que as verbas em causa contribuem para a degradação dos valores que tais movimentos deveriam resgatar. Com gastos muito inferiores, a comunicação social pública poderia promover programas com a apresentação de actores e exemplos de boas práticas reconhecidos pela opinião pública, pois eles existem comprovadamente.
A eliminação de qualquer hipótese de escrutínio dos diferentes poderes e do funcionamento das instituições permite que se comentam erros graves que se procuram esconder sem consciência dos males que atingem o “nosso povo”. Esconder como se escondiam no passado recente, quando também se garantia que tudo estava bem, e agora, afinal, sabe-se muito estava mal – e por isso tem de ser corrigido. Foram inauguradas há pouco em Luanda duas instituições hospitalares consideradas importantes para a melhoria da prestação de serviços de saúde especializados, uma delas para crianças. Nada a objectar sobre a sua importância, mas muito sobre a sua prioridade, tendo em conta a situação da malária, das doenças respiratórias e das doenças diarreicas agudas, como qualquer médico defende. Um deles, vocacionado para tratar de problemas do foro cárdio-pulmonar, e o outro para, entre outras funções, tratamentos da medula óssea, incluindo transplantes, que nunca foram feitos, nem possivelmente o serão. O equipamento é de último grito, como sempre, muito do qual sem técnicos para operá-lo, o mobiliário de luxo e até os elevadores funcionam como nos hotéis de muitas estrelas. Sobre o primeiro, temos regularmente reportagens sobre o funcionamento, sobre o segundo, um ensurdecedor silêncio. O “nosso povo” não tem o direito de saber, porque alguém acha que não tem interesse jornalístico mostrar que esse serviço pouco funciona. Porque se soubesse, facilmente concluiria que só o interesse nas comissões justifica tal arbítrio. Como afirmou em tempos Lopo do Nascimento, agora “o projecto é a base do nosso ́desenvolvimento ́ e a comissão o factor decisivo”.
Mas não é apenas por omissão que a nossa TPA peca. Porque não há interesse em revelar a verdade, talvez influenciados pelos ventos da pós-verdade, age-se como a deputada israelita, citada por Yuval Noah Harari, que em 2016 fez um discurso pondo em causa a realidade e a história do povo palestiniano, com o argumento de que como a letra “p” não existe na língua árabe, não é possível existir um povo palestiniano (ignorava, ou talvez não, que em árabe o “f” usa-se em vez do “p”).
No cumprimento de ordens absurdas que vão atravessando os tempos, a comunicação social pública vai massacrando leitores e ouvintes com propaganda repetitiva sobre feitos apresentados a cada ano com pormenores irrealistas ou contraditórios. Um deles é relativo aos acontecimentos conhecidos como a revolta da Baixa de Cassanje. De tanto se faltar à verdade, hoje até presumíveis protagonistas ou testemunhas do acontecido garantem que a revolta e o massacre tiveram lugar na aldeia de Teca-diá-Kinda, município do Quela, no dia 4 de Janeiro de 1961. Pesquisas realizadas pelo historiador francês René Pélissier, retomadas pela luso-angolana Aida Freudenthal, mostram que, depois de alguma agitação em Dezembro de 1960, a que não era estranha o efeito da independência da RDC, a revolta começou abertamente a 4 de Janeiro de 1961 na aldeia de Kivota, comuna de Milando, município do Kunda-diá-Baze, a norte do Quela. Naquele dia foram amarrados capatazes da Cotonang, a que se seguiu a ameaça da população vir a atacar quem a obrigasse a trabalhar no algodão ou em serviços do Estado. À escalada da insurreição seguiu-se a repressão militar, e a 6 de Fevereiro, em Teca-diá-Kinda, registou-se o maior massacre de revoltosos até então, com 70 mortos, 39 feridos e 21 prisioneiros. A partir daí a repressão não conheceu limites. Em 1990 o MPLA decidiu fazer coincidir a data de constituição da sua organização de camponeses (UNACA) com o 6 de Fevereiro. Complicado?
Deturpações da realidade como esta são muitas, como a própria data de criação do MPLA e a figura do seu primeiro presidente, Mário Pinto de Andrade, escondido durante muito tempo da história oficial, e agora “substituído” por Ilídio Machado. Várias das estratégias definidas por Noam Chomsky para a manipulação mediática são aplicadas em Angola, sendo as de maior relevância as que se propõem tratar o público como crianças e manter o povo na ignorância. Estratégias que começam a ter efeitos perversos, com o povo a recusar “pertencer” a quem acha que é seu dono. Após as derrotas parcelares mas humilhantes de 24 de Agosto pensou-se que a lição tinha sido aprendida. Mas tudo indica que não. Os milhões que sustentam a propaganda da manipulação mediática e a corrupção vão seguir sem que se importem com os tostões que poderiam levar a uma Angola melhor.
Novo Jornal, 20/01/23
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