FABULOSO MUNDU IÊTU (5)

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

CAPÍTULO 5

Por essa altura tinha-se alterado substancialmente a paisagem e a própria demografia da região kákiama. Aliás, essa mudança ia atingindo a nação inteira. Toda a zona que mediava o Vale do Kambinza e a Lagoa dos Sapos Verdes, principalmente a zona vizinha do Mulundu iá Mazundu, encontrava-se mais habitada e estava muito mais verdejante. As pessoas, no geral, exibindo as suas conhecidas limitações, também tinham evoluído, embora distantes da real evolução do mundo. Conseguiram, pelo menos, certo progresso no diálogo aberto com os kiáma, fazendo-se entender pelos colonos. Principalmente nas queixas dos seus dramas, nas suas raivas e desencantos que, de várias maneiras, lhes faziam chegar.

As kisalala das palmeiras tinham melhor serventia na confecção e adorno de portas e janelas das precárias habitações. Ganhava-se outra noção sobre as virtudes do maji iá ndende, o sagrado óleo, produto essencial da dieta dos nativos. Sentia-se a influência do líquido a escorrer pelos subterrâneos da crendice popular. 

O azeite de palma representava a força e importância do apetite sexual, o símbolo da virilidade masculina, o elemento básico da reprodução humana no território. Com idênticos atributos, surgiram na terra vários produtos, alguns deles por mão de estrangeiros que aportavam à terra prometida. Ervas, plantas e especiarias, juntaram-se na eficácia às tradicionais mezinhas das sanzalas. Conquistaram fama conjunta no universo dos sabores nativos, com o gengibre, o alho, o mel, o limão e o gindungo na vanguarda. Cresciam, igualmente e por seu intermédio, a riqueza cultural e, de algum modo, a economia gentílicas. Esse crescimento, justificado pela passagem e interferência, durante anos e séculos, de muitas e várias gerações de pessoas estranhas, maioritariamente europeias, é mostrado no mapa sociopolítico da nação wakangu

Aos colonos ficou a dever-se a propagação da mestiçagem e o consequente surgimento de seres malditos nesse imenso território que constitui o mundu iêtu, assim se dizia.

O tempo foi avançando sempre na frente, sem recuos, com as divergências entre os antagonistas conhecidos a permanecerem estanques. Embora de século em século fosse notória a transformação da sociedade, por obra da infinita permanência no território da administração colonial, não deixaram nunca de ser transportadas para a nova vida vivida em cada século passado, o reflexo das makas gentias do antigamente. 

Para avivar lembranças necessárias, volta-se àquele dia. Era mais uma jornada de festa. Pelo menos parecia ser, uma vez que aquele tipo de reunião constituía um acontecimento vulgar em toda a região. Os chamados masungirilu, uns serões de fazer amizade, de folgança generalizada, de comes e bebes, de envolvimentos sexuais que por norma resultavam deles, foram sempre apanágio desse povo, genuinamente festeiro. Porém, veio a seguir o desencanto porque o encontro, para desilusão de muita gente, tinha um carácter diferente das ditas reuniões consideradas normais. Pelo que demonstravam os rostos apreensivos das pessoas, um forte sobressalto parecia ter atacado o âmago dos presentes. Até o dia tinha perdido a luminosidade e a graça habituais. O céu apresentava uns tons cinzentos-enegrecidos, o que normalmente pressagiava acontecimentos ruins. 

Na sede do governo Katambi predominava a natureza cíclica da vida. Tudo se renovava com o nascer dos dias e o cair das noites. O habitual deixa-andar, base da tradicional letargia da vida na nação, não era beliscado. Uma esquisita alegria, um estado de espírito diferente, era responsável pela estabilidade de que o povo dava mostra. Mas as fissuras existentes na estrutura da sociedade desmentiam essa realidade. O poder mantinha um claro domínio sobre a mbánza enquanto a sociedade, aparentemente calada, ia reclamando mudanças. 

Nesse contexto, ainda era vulgar a realização daquele tipo de reunião a que se assistia. Tudo era estranhamente diferente porque pairava na assistência, um misto de coragem e tristeza. Julgava-se, com os preparos habituais, a decisão do caso previamente anunciada, ou seja, o assassínio de carácter e o decorrente afastamento da cena política de um antigo dignitário. O arguido lembrara-se em determinado dia, de ser mais corajoso que os outros. Afoitamente tentou caminhar à frente do seu tempo. Da acusação constava a tomada cumulativa e esporádica de atitudes corajosas, para uns, insensatas para outros. Já havia sido denunciado por abraçar várias causas perigosas. Como, por exemplo, não deixar que os chefes dormitassem à sombra da sua euforia de ser chefes. 

Nesse julgamento popular, conduzido por um juiz descendente de Katambi e tendo na acusação advogado aproveitador, cortaram-lhe todos os entusiasmos manifestados na mbánza, que tendiam, primordialmente, para uma harmonização da sociedade. Por uma justiça imparcial. Defendia com euforia que a grande nação wakangu precisava de unir urgentemente os nzuakahima aos kakiáma.

A par disso, o destemido homem mostrava ter noção do quanto era necessário que o gozo exagerado dos que exerciam o poder de forma extravagante e primitiva fosse travado e consequentemente, fossem os chefes chamados à razão e conduzidos a trilhar os caminhos do bom senso. Não tardou a constatar que vivia num estado de inocência e ingenuidade puras e, nessas circunstâncias, acabou por ser castigado pelo atrevimento. Os insurrectos eram, como ele foi, normalmente detidos e castigados.

Nos círculos do poder murmurava-se que o mais sensato seria admitir que ser chefe dava direito a ter sempre razão, simplesmente porque se era chefe. Trazia raivas, fazia acordar os monstros que andavam adormecidos dentro das pessoas, mas não havia mal nenhum, era assim mesmo que tinha que ser. 

Sentia-se no quotidiano o passar dos anos. A sociedade evoluía mas os kiáma e os seus estímulos não eram esquecidos. Os mais atentos às relações dos humanos com os animais notavam que não deixavam de acontecer casos estranhos nesse bizarro convívio. Entre os bichos já não se registavam evoluções de costumes, nada de chamativo acontecia. Todavia, e embora fizessem esforços para se distanciarem o mais possível dos kiáma, homens e mulheres assemelhavam-se cada vez mais aos animais. Enquanto isso, os ditos cujos mostravam atitudes inteligentes em vários círculos, autênticas manifestações de querer, para serem iguais aos pensantes humanos.

Entretanto, apesar da fraca comunicação, as notícias do mundo chegavam ali, com muitos anos de atraso. Foi-se sabendo que mesmo com a imensidão de problemas longínquos e preocupantes, tinha sido identificado pelos africanos o primeiro desafio. O fundamental. A patriótica, veemente e uníssona decisão de expulsão dos estrangeiros da terra-mãe. Foi sendo alimentando por todos os africanos como esperança de vida.

Mas, para infortúnio dos povos, nas bwala em análise não se registavam transições de vulto, nem sequer daquelas classificadas, em termos modernos, de políticas e sociais. Na mesma linha de pensamento, divisavam-se na sociedade reportada, isso sim, radicalismos empedrados e demagogias baratas, incapazes de identificar a teimosia das falanges afectas aos contendores políticos. Todas elas, afinal, a perseguir um único fim. Poder e riqueza. Pensamento exclusivo para negócios fáceis, aproveitamentos, riqueza proibida, tomavam conta das suas ideias.

Quando os animais resolveram afastar-se e deixaram oficialmente de lidar com as pessoas, ficaram em voga as guerras. Naquela altura ninguém perdia tempo a pensar em bichos. Abordava-se o colonialismo, a libertação dos povos oprimidos. Era o mundo em mudança. Na América, na Europa, na Ásia e no resto do mundo, surgiram grandes pensadores, governantes brilhantes, brilhando também os teimosos, os ingénuos e os declaradamente estúpidos. Os honestos morreram doentes, desterrados ou foram assassinados. Traições, oportunismos e oportunistas, líderes e lideranças, fantoches, mandatários do imperialismo, racistas, enfim, com as suas atitudes, os nomes completos dessas figuras passaram a figurar, alguns tragicamente, num léxico de vocábulos formidáveis. 

Nas mbánzas e bwalas onde decorreu grande parte da acção descrita, estava-se nas vésperas de uma drástica mudança do tempo e do ordenamento do mundu iêtu. Saía-se bruscamente de uma situação pouco menos que medieval para o desenvolvimento acelerado da sociedade. A crueldade das revoluções a par dos impiedosos conflitos despoletados a vários níveis, ajudaram a consolidar ideias de luta e de crescimento, de solidariedade humana. Mesmo nesses casos, o espírito animalesco do ser humano impôs-se, e tudo foi acontecendo ao sabor das suas vontades, quase sempre marcadas pela injustiça e falta de carácter dos que detinham as rédeas do poder.  

Continua…

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