Anti-semitismo e anti-sionismo: algumas precisões semânticas e históricas
O embaixador de Israel em Lisboa, em artigo publicado recentemente no Diário de Notícias enumera as três facetas que, quanto a si, definem o anti-semitismo: a religiosa, dirigida contra os cultores da religião hebraica pelos cristãos na Europa desde a Idade Média; a racista, motivo de discriminação e mesmo de pogrons na Europa Central e exacerbada ao extremo pelo holocausto nazi; e, finalmente, segundo o embaixador, o anti-sionismo é a outra vertente, mais moderna, do anti-semitismo.
Se as duas primeiras preocupações nos merecem respeito, como formas defensivas e existenciais de defesa da personalidade religiosa, cívica e humana dos judeus, a terceira, veremos já, está nos seus antípodas. E, contudo, é invocada frequentemente, talvez porque o labéu de anti-semita, com a sua conotação negativa para toda a gente de bem, pretende, logo à partida, “matar o mensageiro” (o dirigente trabalhista Jeremy Corbin, grande defensor da causa palestiniana, teve de defrontar durante todo o seu mandato as acusações de anti-semitismo no Partido Trabalhista, alimentado pelos lóbis pró-Israelitas ingleses e do próprio Partido).
Mas então, o que é o Sionismo? Na Wikipedia pode ler-se:
Sionismo (em hebraico: ציונות Tsiyonut) é um movimento político que defende o direito à autodeterminação do povo judeu e à existência de um Estado nacional judaico independente e soberano no território onde historicamente existiu o antigo Reino de Israel (Eretz Israel). O sionismo é também chamado de nacionalismo judaico e historicamente propõe a erradicação da Diáspora Judaica, com o retorno da totalidade dos judeus ao actual Estado de Israel. O movimento defende a manutenção da identidade judaica, opondo-se à assimilação dos judeus pelas sociedades dos países em que viviam.
O sionismo surgiu no final do século XIX na Europa Central e Oriental como um movimento de revitalização nacional e logo foi associado, pela maioria dos seus líderes, à colonização da Palestina.. Segundo o pensamento sionista, a Palestina fora ocupada por estranhos. Desde a criação do Estado de Israel, o movimento sionista continua a defender o estado judeu, denunciando as ameaças à sua permanência e à sua segurança
Este projecto, visionário ao ponto da demência, que nega o processo de vinte séculos de História, foi concebido e divulgado em meados do século XIX, portanto muitos anos antes do holocausto nazi. Em síntese, é um nacionalismo com uma forte identidade racial e religiosa, com um ameaçador componente agressivo em relação a povos cuja terra pretende apoderar-se portanto só susceptível de execução por acções violentas de expropriação e domínio.
No início do século XX, no seguimento do conluio imperialista selado na Conferência de Berlim, a empresa colonial estava na sua fase ascendente, com a Índia colonizada pela Inglaterra e quase toda a África controlada pelas potências europeias. Havia um terreno muito receptivo para a empresa sionista, que com o seu slogan de invasão da Palestina, “uma terra sem povo, para um povo sem terra” destilava a negação colonialista dos indígenas da terra como pessoas, tratados como fauna adventícia ou inconveniente. Graças às boas vontades dos banqueiros, dos políticos e militares ingleses, europeus e americanos e, até do regime nazi nos anos 30, o fomento da colonização da Palestina por europeus oriundos sobretudo da Europa Central e que respondiam à mensagem sionista, progrediu nos primeiros decénios de século XX e eles, de 5% que eram da população em 1905 (cerca de 50.000, menos do que a população cristã) tornaram-se, em 1947, uma implantação de 600.00 colonos, menos de metade, contudo, da população indígena da Palestina.
E porque os seus propósitos não eram apenas, como no colonialismo clássico, de dominação política e exploração económica dos povos indígenas, mas o cumprimento do objectivo doutrinal sionista de fazer desaparecer a população local, os colonos judeus preocuparam-se logo à partida de constituir-se numa poderosa máquina de guerra, beneficiando dos apoios mais insólitos, como o dos países comunistas, e que mesmo nos anos 40, o mandato inglês encorajou, tolerando a entrada de material de guerra que permitiu que – já então – o exército sionista fosse, em 1947, dos mais modernos da época. Logo no primeiro ano da sua fundação, em 1948, o estado colonial já dispunha de aviação, para aterrorizar e destruir as aldeias palestinas indefesas, que antes tinham sido destruídas recorrendo aos buldózeres e dinamite, quando, em Maio de 1948, terminou o mandato inglês e as suas tropas retiraram, 750 a 800.000 palestinos – metade de toda a população – tinham sido expulsos das suas casas, metade das suas cidades e aldeias tinham sido destruídas, e apenas um pequeno número conseguiu regressar.
VOLTANDO À SEMÂNTICA
A mantra do Estado de Israel, que pretende dar verdade histórica à narrativa bíblica, e constituir um enredo à volta do êxodo do povo judeu da Palestina nos anos de 70 e o retorno do mesmo autêntico e insubstituível povo, vinte séculos depois, é contra a evidência da investigação recente levada a cabo por historiadores idóneos: não há evidência histórica do exílio dos anos 70 que é considerado “o elemento fundador” na história dos judeus, e de onde a diáspora tem origem. Não há uma única obra de pesquisa, e por uma razão muito prosaica: os romanos nunca exilaram povos no flanco oriental do Mediterrâneo. À excepção dos prisioneiros, convertidos à escravatura, os habitantes da Judeia continuaram a viver nas suas terras, mesmo depois da destruição do segundo templo. Uma parte de entre eles converteu-se ao Cristianismo, no século IV, enquanto a grande maioria se ligou ao Islão durante a grande conquista árabe do século VII. A maior parte dos pensadores sionistas reconhece este facto, e mesmo Yitzhak Ben Zvi, que foi Presidente do Estado de Israel, e Ben Gurion, o fundador do Estado Sionista, mencionaram várias vezes – mas apenas até 1929 – o facto de que os camponeses da Palestina são descendentes dos habitantes da antiga Judeia.
Na ausência deste exílio a partir da Palestina romanizada, a disseminação do Judaísmo em toda a orla mediterrânica ficou a dever-se ao grande proselitismo religioso judaico e à conversão de populações e reinos locais. Os cronistas árabes falam-nos da existência, contemporânea à conquista árabe no fim século VII, de tribos judaizadas no Norte de África, que vão tomar parte na conquista da Península Ibérica e colocar os fundamentos da simbiose particular entre judeus e muçulmanos, característica da cultura hispano-árabe.
Uma das conversões mais significativas ocorreu entre o Mar Negro e o Mar Cáspio, e diz respeito ao grande reino Khazar, no século VIII, que se expande do Cáucaso à Ucrânia, e que no século XIII é empurrado pelas invasões mongóis para o Leste da Europa. Aí, com os Eslavos do Sul e dos actuais territórios alemães, eles assentarão as bases da grande cultura judaica iídiche que adquire grande preponderância económica, cultural e científica na Alemanha e países do Centro da Europa. No século XIX eles são objecto de discriminação religiosa e racista por parte dos círculos nacionalistas cristãos e cunham para estas atitudes o termo de anti-semitismo, que passa a ser sinónima de anti judaísmo… Com alguma imprecisão: os semitas, como designação étnica, compreendem também os povos árabes… E os judeus iídiches, provenientes dos convertidos do Cáucaso, bastante eslavizados, já não se podem considerar propriamente populações semitas….
A coisa complica-se quando a versão do povo já pouco semita executa, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial a operação sionista de conquista colonial e põe em prática um programa de agressão e limpeza étnica relativa á população – semita – da Palestina. Semita, anti-semita, quem é quem? Será, o anti-sionismo, como diz o embaixador israelita um antissemitismo – ou não parece evidente que o sionismo, sim é anti-semita?
A limpeza étnica pode não equivaler a um genocídio, se não houver massacres de populações. No caso da Palestina, houve fuzilamentos em massa, houve acções de terrorismo puro dirigido a civis, política sistemática de aterrorizar camponeses pacíficos, compelindo-os a abandonar as suas casas, destruindo as aldeias palestinas com dinamite, bulldozers e bombardeamentos para evitar o retorno das populações.
Houve o terrível crime de destruiu em três anos uma civilização onde conviviam pacificamente as três religiões e que tinha séculos de existência. E agora, no actual Israel, enquanto se procura consumar a limpeza étnica, desta vez recorrendo despudoradamente ao massacre da população de Gaza, procura-se soterrar a cultura palestina e as aldeias destruídas por todo o território, preenchendo um hiato de vinte séculos na História com um entulho apressado e um verniz de falsidade.
Ilustraremos isto mais tarde, quando em conjunto lermos passagens relevantes do livro de Illan Pappé, “A limpeza étnica da Palestina”.
17.02.2024