ENTRE MISSANGAS E MISÉRIA: O DEBATE DESALINHADO EM ANGOLA

SAMPAIO JÚNIOR

Deixei de ter paciência para frases que se iniciam com a muleta verbal “eu acho que”. Poucas expressões encontram-se tão gastas, repetidas até à exaustão nos vários perfis do Facebook, onde o achismo substituiu o pensamento estruturado e a indignação performativa ocupa o lugar da reflexão consequente.

Nesse ruído quase permanente, li com agrado o texto do activista Jeiel de Freitas, um entre centenas de publicações, que emergiram nas redes sociais a propósito da crucificação pública a que foi submetido o cantor C4P, na sequência da sua intervenção sobre a presença de um grupo de cidadãos brasileiros em Angola, para acções de filantropia. O debate, porém, rapidamente se desviou do essencial. Discutiu-se tudo, menos Angola. E quando se fala de sofrimento colectivo, importa perguntar: o causador tem rosto? Serão apenas os marimbondos de ocasião, ou também os verdadeiros beneficiários dos ajustes directos e das decisões opacas?

No seu manifesto, Jeiel de Freitas é claro ao afirmar que, enquanto se “evolui” o debate para dicotomias estéreis imperialismo versus pan-africanismo, o verdadeiro responsável ri-se, confortavelmente instalado num trono onde nada lhe falta. A hemorragia nacional chama-se fome e pobreza extrema, o objecto contundente tem nome político. Não é necessária ciência avançada para o perceber.

Com tantos problemas estruturais por analisar, persistimos em picardias laterais: se C4P vestiu pano, se usou missangas, se correspondeu ou não a um imaginário identitário conveniente. Esta energia seria mais útil se fosse canalizada para discutir aquilo que efectivamente corrói o desenvolvimento de Angola. As terras raras, por exemplo, estão a ser silenciosamente “entregues” a multinacionais, em negociações cujo conteúdo o povo desconhece. Os benefícios anunciados permanecem enigmas bem guardados.

Lázaro Cárdenas, num artigo de opinião publicado (https://kesongo.com/terras-raras-em-angola-soberania-economica-em-risco/), recorda que na província do Huambo se localiza um dos maiores depósitos africanos de neodímio e praseodímio, dois dos elementos mais valiosos do grupo das terras raras. Ainda assim, o debate público sobre soberania económica, transparência e ganhos efectivos para o país é quase inexistente.

Esta gente que vive permanentemente no “eu acho que” deveria discutir assuntos sérios, exigir responsabilidade a quem governa e pressionar por uma efectiva melhoria da qualidade de vida dos angolanos. Confesso, desde já, sérias dúvidas de que algo substancial seja alcançado até 2027.

Entretanto, a factura chegou. Chegou sob a forma de preços mais altos dos bens essenciais, dos serviços e das prestações bancárias. Os salários não acompanham, de forma indexada, o aumento do custo de vida. A principal receita do Estado, essa, sim, acresce: o IVA. E, paradoxalmente, à medida que uma grande maioria empobrece, tende a votar nos mesmos que conceberam e executaram as políticas que a empobreceram. É um fenómeno social profundamente curioso e doloroso de observar.

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