E se Viola Davi desse um tabefe a Meryl Streep?

Já passaram algumas semanas do acontecimento mediático que continua a ser um dos mais falados dos últimos meses, mas o assunto mantém-se por descodificar. Aristóteles, na sua «Ética a Nicómaco» encarou o gêlos (o riso) como umcondicionamento humano, mas não como caraterística da natureza humana, abrindo assim o estagira uma discussão que se viria a prolongar pela Idade Média. Também ao nível das teorias do pensamento dedicadas ao humor confrontamo-nos com o tratado de Henri Bergson acerca d’ «O Riso» e das suas várias conjugações na sociedade, numa discussão séria sobre a importância de o encarar como uma manifestação na sociedade, posicionada entre a lucidez da razão lógica e o gozo livre do pensamento epistemológico. 

Quando confrontados com um comediante que decidiu discursar sem comandar os cavalos alados guiados com exigível prudência humana, fazendo uso do humor a galope dos antípodas da razão, o que questionamos afinal? O riso ou a falta de comando para guiar cavalos pulsando em direções divergentes, opostas entre razão e emoção? 

E assim, um incidente entre dois comediantes profissionais em dominar o cavalo alado que traduz o riso fez com que razão e emoção questionassem o humor. Dois homens, quatro cavalos, emoção, razão, um minuto a mais e eis que da paródia surge a cena da raiva. 

Viremos o mundo ao contrário para colocar Meryl Streep em cima do palco e Viola Davi na plateia. Alguém consegue imaginar como seria conduzida a bravura dos cavalos? Se Meryl Streep se atreveria a fazer pleno uso da emoção e ocupar o espaço de cena da sua rival com a ridiculização, mesmo tendo ela, Merysl Streep, o seu próprio espaço de cena imáculo e sem adereços? E Viola, como se comportaria? Num solanco desceria as escadas de riso nos lábios, endireitando o seu longo fato de noite e zás pás ia directo ao penteado da sua interlocutora que responderia retocando a franja sem sinais de fraqueza, apenas alertando que aquela cena entraria na história da cerimónia? 

De volta aos homens: nos primeiros segundos viram-se dois homens cúmplices em gargalhadas e duas mulheres marmorizadas em consternação. Rectifico, viram-se vários homens cúmplices em gargalhadas e um ensurdecedor número de mulheres de olhos no chão, numa prova de que não foram nem o humor, nem a violência os ingredientes a alimentar a indústria do faz-de-conta, mas antes o domínio do masculino sob o mundo e a superestrutura na qual ele está alicerçado, onde os papéis ficam todos para os homens, ignorando que porventura no centro possa navegar, agarrada ao desaparecimento de si, uma mulher. 

As mulheres têm sido séculos após séculos expulsas dos lugares de afirmação. Elas existem quando um homem grita: “Limpa a tua boca para falares da minha mulher”. Elas existem como adereço de beleza, elas existem para reafirmar o comando dos homens e reforçar os valores da família enquanto estrutura paternalista. 

Quando a vida se faz ao comando da vida, a vida faz-se com ditaduras falocêntricas, com frente-a-frentes, com gestos performativos de afirmação, castigo, raiva, luta, terror, humor, culpa… Tudo isto cabe no homem Vitrúvio cujo modelo de centralidade reproduz a masculinidade tóxica e envenenamento perpétuo do equilíbrio social pelo género.

Neste quadro final só não cabem, como não couberam, nenhuma daquelas mulheres que, na cerimónia, não disfarçavam o horror de vivenciar aquele acto de terrorismo. Ainda não alavancamos um modelo de emancipação feminina que deite por terra o modelo falocêntrico da ordem mundial. Seguro nas mãos dos homens, às mulheres o gozo do riso sempre foi oprimido em prol da reserva à discrição. Daí que entre mulheres a cena Will Smith e Chris Rock não teria lugar pois, efectivamente, na desarmonia as mulheres não riem ou antes, recuperando a fala de Agrado no filme de Pedro Almodôvar Tudo sobre a minha mãe, as mulheres já “lavaram os seus olhos podendo ver com clareza”.

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