Mas falta vontade em adoptar caminhos transformacionais e políticas associadas a mudanças comportamentais, visando sistemas alimentares mais sustentáveis e consistentes com os compromissos assumidos, sem nossa contribuição nem nosso consentimento…
A eliminação da privação persistente e endémica e a prevenção da destituição súbita e severa, agravadas pelas crises que vivemos em simultâneo, são os principais desafios a pensar como enfrentar, JÁ, lembrando que remetem a um outro, mais amplo, que relaciona a eliminação das desigualdades sociais à inclusão na cidadania da população hoje excluída.
A desigualdade social é a principal causa da fome e da destituição de grupos da população marginalizados na economia de mercado. E tem vindo a aumentar, nomeadamente através do empobrecimento progressivo da chamada ‘classe média’, e do não combate à destituição crescente da maioria da população. E agravada pela inexistência de disposições institucionais visando a criação de redes de segurança social, apesar das Estratégias de Combate à Pobreza (2004) e da Segurança Alimentar (2009).
No passado mês de Maio, foi aprovada a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, ENSAN II 2024-2034. Esperemos que a sua implementação aconteça, de facto, e não seja mais um simulacro dos tantos que temos conhecido. Esperemos que a sua implementação comece pela alocação no orçamento dos 10% estabelecidos no compromisso regional da SADC para o investimento na produção agrária e piscícola. Esperemos que o acesso aos, e uso efectivo dos, recursos relacionados, nomeadamente acesso, uso efectivo e titularidade da terra, uso, acesso e gestão da água, ambos entendidos na dupla perspectiva de bem público e de mercadoria, valor económico. Esperemos, ainda, que os necessários investimentos a jusante e a montante da produção agropecuária e pescas – e que se impõem apesar das manobras de diversão em torno da ordem de precedência do ‘ovo e da galinha’ -, nomeadamente os relacionados com as infraestruturas das redes de transportes, comunicações, de armazenagem e conservação dos produtos, a transformação primária, a distribuição ao comércio grossista e a retalho, a rede de distribuição de energia, enfim, tudo o que é necessário para estimular a produção e a produtividade.
Contudo, a prioridade segunda, reside na concepção em que se fundamenta a dita Estratégia. Ou seja, a maneira de operacionalizar o acesso e uso efectivo destes direitos depende muito de como a questão da garantia dos alimentos à população é encarada, de qual perspectiva serve de fundamento à Estratégia. A da soberania alimentar (Via Campesina), defende o direito dos povos a alimentos nutritivos e culturalmente adequados, acessíveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e a decidir o seu próprio sistema alimentar e produtivo. A da segurança alimentar (FAO), defende a garantia do direito de todos ao acesso a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e de modo permanente, com base em práticas alimentares saudáveis e respeitando as características culturais de cada povo, manifestadas no acto de se alimentar.
Em ambas as abordagens, são centrais as ideias de qualidade e quantidade numa perspectiva sustentável, estando subentendida a ideia da alimentação como Poder por parte de quem tem capacidade de produzir, armazenar e distribuir alimentos, contra quem não a tem; daí, o sentido de segurança nacional, apontando para a necessidade de formação de stocks “estratégicos” e circuitos de distribuição de alimentos. Em ambas as abordagens, é responsabilidade dos estados assegurarem este direito, e devem fazê-lo em articulação com a sociedade civil, dentro das formas possíveis para exercê-lo. Defende-se uma ou outra em função de visões distintas relacionando adequação cultural, estado nutricional, produção local, geração de rendimentos e diversificação da economia.
Contudo, parece mais adequado considerar a complementaridade entre o sentido de “soberania” – a garantia ao direito de escolher o que comer, a adequação e a qualidade dos alimentos produzidos por sistemas agroecológicos e socioambientais sustentáveis, que relacionem a produção e o consumo, que respeitem culturas e tradições alimentares, que sejam isentos de produtos químicos e, em geral, produzidos pela agricultura familiar, e o sentido de “segurança” relacionado com medidas institucionais de garantia de stocks alimentares e de redes de asseguramento da distribuição de alimentos a quem deles necessita, nas quantidades que necessita e quando deles necessita.
Numa perspectiva de agravamento da situação de Insegurança Alimentar Aguda anunciada pela ONU com incidência em 18 focos de fome e de morte, a maioria dos quais em África(1), importa lembrar o potencial de Angola para se autoabastecer e exportar alimentos de qualidade. Mas isso implica, a prioridade primeira: conhecer o país nessa perspectiva, ou seja, o potencial de cada área para contribuir para bem mais do que a “cesta básica”. Nos gabinetes acondicionados dos ministérios de Luanda pouco se conhece dessa Angola produtora, das suas muitas possibilidades e, também, das suas necessidades… e não se vislumbram sinais de se querer conhecer.
Como antes referido, é necessário lembrar que a agricultura é uma actividade de ‘enclave’, ou seja, exige investimentos a montante e a jusante, para produzir, e depois para escoar para acondicionamento e encaminhamento imediato ao mercado, ou para armazenamento a médio e longo prazos. Mas antes, para produzir, são necessários sementes, fertilizantes, instrumentos, meios de produção, e pessoas motivadas, e depois, são necessárias redes funcionais de comercialização rural, de transformação primária e de distribuição e armazenamento. Mais, estradas em condições, armazéns e silos operacionais, bem localizados e bem geridos, e uma rede retalhista que pratique um comércio legal, justo. Contribuirá, igualmente, a não intervenção arbitrária na estrutura de preços, particularmente com motivações eleitoralistas como já aconteceu.
O que temos, é o somatório de: falta de conhecimento e de visão de país + falta de investimento no ciclo produção e escoamento do sector primário + falta de rede comercialização interligando rural/urbano + falta de vinculação da REA à promoção da produção nacional nos vários muitos locais onde ela pode acontecer + falta de respeito pelo Meio Rural enquanto espaço de vida e não apenas de ‘produção para alimentar a cidade’ + falta de investimento em educação e produção de conhecimento através da pesquisa e da extensão + falta de vontade em adoptar caminhos transformacionais e políticas associadas a mudanças comportamentais, visando sistemas alimentares mais sustentáveis e consistentes com os compromissos assumidos, internacionalmente, em nosso nome, mas sem nossa contribuição nem nosso consentimento!
Referência:
1 ONU News (5 Junho 2024) Insegurança alimentar aguda pode aumentar em 18 focos de fome no mundo