ZOOM DA TUNDAVALA
As vendedeiras são escorraçadas, são-lhes retirados ou destruídos os bens se estiverem a vender fora dos locais estabelecidos, porque há regras a cumprir, e em nome desse cumprimento de regras até morrem pessoas. E não há regras a cumprir para os kupapatas?…
Dois fenómenos são comuns a qualquer das cidades deste país. Numas mais acentuados que noutras, mas, em todas, o mesmo cenário: as mulheres vendedeiras e os motoqueiros.
Estes dois fenómenos, que refletem bem a realidade que se vive, traduzem a luta permanente e sem tréguas contra a fome e a miséria que bateu à porta de milhões de pessoas. Ambos têm as suas origens na degradação das condições de vida, no crescente desemprego, na falta de oportunidades, na precariedade. Ambos engrossam a informalidade que, apesar das pretensões, não tem como ser travada, a menos que ocorra uma alteração muito profunda das condições económicas e sociais, de uma forma geral. Informalidade que cresce à medida e à velocidade com que cresce a população.
As mulheres vendedeiras, não importam as denominações por que também são chamadas, instalam as suas bancas onde mais convém ao negócio, calcorreiam as ruas das cidades procurando vender de tudo ao transeunte. Dos produtos frescos de origem agrícola, ao vestuário e calçado, acessórios e bijuterias, produtos de beleza falsificados, tudo que seja vendável. Com bacias na cabeça ou com os produtos pendurados nos braços, enchem as principais zonas das cidades, especialmente junto de lugares de maior afluência de público. A este exército de mulheres, junta-se outro de não menor dimensão, de homens, rapazes que também se dedicam a gastar a sola dos pés, na batalha diária pela vida. Na ânsia e com a esperança de, ao menos, ganharem algum para, ao fim do dia, poderem comprar algum alimento para terem à mesa, mas com a certeza de chegarem ao fim do dia, estoirados, cansados, rebentados. A luta é diária, ao sol ou à chuva, para alimentar crianças, filhos, que muitas vezes também são atirados para a rua e que, de mão estendida, vão cantando o pregão de todos os dias: “tio, me dá lá só um cinquenta para comprar fuba”!
Mercados e pontos de venda são criados e estabelecidos para esse tipo de actividade, no intuito de se estabelecer alguma ordem. Regras vão sendo adoptadas e, cada cidade, um pouco à sua maneira, vai ajustando essas regras à sua realidade.
No entanto, o fenómeno cresce e, na mesma medida, os espaços previamente destinados ao negócio tornam-se pequenos, não sobra para mais gente e, daí, verem-se pessoas instaladas nos passeios ou caminhando pelas ruas, ser o mais comum.
O outro fenómeno, os dos motoqueiros, kupapatas, como também são chamados, semelhante nas suas origens, também representa a luta diária de milhares de pais e chefes de família que, “pendurados” em duas rodas, servem as pessoas transportando-as de um lado para outro.
Actividades muito diferentes, mas ambas consequências das mesmas causas. São dois pesos…
Mas é preciso manter a ordem (pública)!
Por isso, e para isso, para regular estes dois fenómenos existem regras, normas, que se aplicam ou não, consoante se trate de uns ou de outros. Regras que todos se obrigam a cumprir, sob pena de sofrerem penalizações, multas e por aí adiante.
Para o caso das vendedeiras ambulantes, a fiscalização das regras estabelecidas é exercida por fiscais das administrações municipais, devidamente indumentados e identificados como convém que, acompanhados geralmente por agentes da Polícia porque é preciso exercer a autoridade com força ou pela força, percorrem também as ruas com missão diferente: caçar os irregulares, impedir que o negócio se faça fora dos locais estabelecidos, no fundo, manter a ordem.
Os relatos de acontecimentos relacionados com a acção desses fiscias e desses polícias são quase diários, e acontecem um pouco por todo o lado, geralmente relacionados com todos os excessos e abusos conhecidos, que vão desde a retirada à força dos bens ou destruição dos mesmos, maus tratos e até mortes, causadas nessas acções. É o escorraçar puro e simples, em nome da manutenção da ordem pública, do cumprimento das regras estabelecidas, da lei, porque, “quem mijar fora do penico, leva!” Aliás, até mesmo da boca de governantes já se ouviu dizer que quem vender fora dos locais apropriados terá a polícia em cima (em cima quer dizer, à cacetada).
Os kupapatas, chamam-lhes também mototaxistas, há muito instalados nas ruas de todas as cidades, parece, no entanto, que gozam de um regime de excepção, que até dá a ideia de que para eles, a impunidade foi legalizada. Fazem o que querem. A condução deles assemelha-se ao voo das moscas, trepam passeios para encurtar o caminho fazendo fugir os transeuntes; circulam em sentido contrário ao do trânsito; “assaltam” as faixas de rodagem contrárias; transportam crianças e frequentemente lá vão três e quatro na mesmo motoreta; muitos são desencartados e as motos não têm matrícula; os que usam capacete contam-se porque os outros, a maioria, está-se nas tintas; ver polícias à boleia numa moto, sem capacete também é normal. Também eles violam a lei que deviam fazer cumprir. Os kupapatas fazem de qualquer lugar o seu ponto de paragem, ponto de táxi, não importa onde seja: em cima de passeios, nos cruzamentos, nas curvas, onde melhor lhes convier, ali estão, em bando, a aguardar ou angariar passageiros, mesmo que isso represente ou crie dificuldades ao trânsito, ou à circulação de peões. Reinam livremente e como querem.
Para kupapatas não há fiscais nem polícias, são ameaçadores, fazem arruaças, manifestam-se de forma violenta e agressiva e se alguém ousa chamar-lhes a atenção, no mínimo, é insultado.
São o terror no trânsito e, se causam algum acidente, nunca são culpados e aparecem logo dezenas deles, ameaçadores, porque o parente se acidentou e a culpa é sempre da outra parte.
Não é estanho, por isso, este diálogo entre um automobilista e um Agente Regulador de Trânsito:
– Sr. Agente, diga-me uma coisa: se eu estiver a conduzir sem cinto de segurança, o sr. multa-me?
– Claro, o Código da Estrada diz que é obrigatório o uso de cinto de segurança…
– Sr. Agente, mas o Código da Estrada também diz que é obrigatório o uso de capacete, tanto para o condutor como para o passageiro, no caso dos motociclistas, e porque é que o sr. não faz nada a estes kupapatas que vão a passar agora mesmo por aqui?
– Com esses não dá para falar.
Diálogo bastante esclarecedor, sem dúvida… Melhor não podia ser.
É natural que as pessoas tenham todo o direito de se interrogar sobre a acção das autoridades, diante destas duas realidades: as vendedeiras são escorraçadas, são-lhes retirados ou destruídos os bens se estiverem a vender fora dos locais estabelecidos, porque há regras a cumprir, e em nome desse cumprimento de regras até morrem pessoas. E não há regras a cumprir para os kupapatas?
Estas duas realidades representam, de facto, os dois pesos com que a sociedade tem de lidar diariamente. No entanto, é mais do que evidente que, em nome de um mesmo propósito, a manutenção da ordem pública, as medidas não são as mesmas, nem iguais, muito menos parecidas.
O resultado de combater as consequências, em vez de atacar as causas, é o surgimento de “braços de ferro” que acabam sempre por gerar situações desagradáveis, excessos, abusos, quem tem mais força acaba por se exceder na acção de se impôr, ou então assobia-se para o lado como se nada estivesse a acontecer. Para não perder votos, deixa-se a coisa andar e, quando isso acontece, quem deve exercer a autoridade fica enfraquecido e, claro, fortalece-se quem está à margem.
Rebaldaria, NÃO! Desordem, NÃO! Cumprimento de regras, SIM! Mas também SIM, à justiça e igualdade!
Ou há moralidade, ou comem todos…