DO PROGRESSO TECNOLÓGICO À EXCLUSÃO E RISCO DE EXTINÇÃO

FERNANDO PACHECO

As elites do País recriaram instituições políticas e económicas do passado que geram instituições extractivas, isto é, que visam extrair os rendimentos e a riqueza de segmentos da sociedade para benefício de outros, reproduzindo a desigualdade, a pobreza e a exclusão crescentes em Angola. A sua substituição por instituições inclusivas que visam o oposto, representa o grande desafio da modernização e da simplificação administrativa.

Em meados do século XIX mais de 90% dos habitantes da terra eram camponeses e não faziam ideia nenhuma do que era uma máquina a vapor, um caminho de ferro ou um serviço de telégrafo. A Revolução Industrial acontecera num escasso número de países que adquiriram por essa razão uma vantagem decisiva sobre as sociedades agrícolas tecnologicamente pouco dinâmicas. Essa vantagem seria cada vez mais pronunciada depois da segunda guerra mundial e da guerra fria que se seguiu, com a energia nuclear, os computadores e a internet. Essa vantagem técnico-científica foi determinante para a vitória do capitalismo liberal sobre o capitalismo liberal – mau grado as vitórias por este alcançadas até aos anos 70 – no fim do século XX. Nos dias de hoje, os desafios são outros e para enfrentá-los será necessário compreender as tecnologias, particularmente as respeitantes à biotecnologia e à inteligência artificial e os algoritmos informáticos. É preocupante perceber que os produtos já não serão mais alimentos, viaturas ou televisores, mas sim corpos, cérebros e mentes, e que a distância entre os que sabem manipular tais produtos e os que não sabem será muito maior do que aquela que separava industriais e camponeses no século XIX. Uns terão capacidades quase ilimitadas de criação e destruição e outros estarão sempre em risco, já não apenas de exclusão social, mas sim de verdadeira extinção. A possibilidade de alguém ler os nossos pensamentos é já uma realidade quase actual. Este é o raciocínio de Yuval Noah Harari, o celebrado autor de Sapiens: História Breve da Humanidade e de Homo Deus: História Breve do Amanhã.

É justo que Angola não queira ficar atrás. Mas em que medida? E a que preço? Quando na Proclamação da Independência foi invocado o desejo de ser a agricultura a base do nosso desenvolvimento e a indústria o factor decisivo, sonhei com a determinação do nosso país vir a breve trecho protagonizar a sua revolução industrial. Não foi a guerra o único estrangulamento para a eventual implementação dessa estratégia. Nós cedo demonstrámos não ter capacidades e competências para implementá-la. Hoje quase ninguém tem em conta que havia uma estratégia para a industrialização do país.

Ainda assim, vivemos na ilusão de recorrermos a tecnologias de ponta para solução de problemas do século XX ou mesmo do século XIX. Orgulhamo-nos de possuir um satélite, mas decorridos mais de sete meses da sua entrada em órbitra o público nada sabe sobre a sua utilidade, o que no nosso léxico quer dizer que nada de especial está a acontecer, ou … que as coisas estão a correr mal. A TPA exalta os feitos dos profissionais do sofisticado Hospital D. Alexandre do Nascimento, mas nunca diz nada sobre os graves problemas das doenças responsáveis pelas elevadas taxas de mortalidade de Angola.

Seria, pois, mais avisado e sustentável que procurássemos alargar a prestação de serviços com um mínimo de qualidade a toda a extensão do país.

O sucesso da Reforma do Estado e do Simplifica, que deveriam merecer mais atenção do que a que têm tido, estará condicionado à eliminação dos processos de exclusão que acompanham a trajectória da vida política angolana, no seguimento dos que caracterizavam o colonialismo. Aproveitando a abordagem de Acemoglu & Robinson, em Porque Falham as Nações, conclui-se que as elites do País recriaram instituições políticas e económicas do passado que geram instituições extractivas, isto é, que visam extrair os rendimentos e a riqueza de segmentos da sociedade para benefício de outros, reproduzindo a desigualdade, a pobreza e a exclusão crescentes em Angola. A sua substituição por instituições inclusivas que visam o oposto, representa o grande desafio da modernização e da simplificação administrativa.

Fazer dos municípios os centros de prestação de serviços públicos aos cidadãos parece ser algo que o Executivo angolano persegue desde há muito, sem grande sucesso. As tímidas tentativas de municipalização dos serviços e sua integração a esse nível revelaram-se até agora infrutíferas. O acesso aos serviços por parte dos cidadãos é muito limitado, especialmente para quem vive nas sedes dos municípios, e penoso para quantos ainda residam em comunidades rurais dispersas.

Existe, desde que Angola é independente e num continuum que vem de antes, um preconceito de classe por parte do poder de Estado e das elites políticas e governantes em relação às populações pobres, principalmente as residentes nas áreas rurais – ainda que nos primeiros tempos como país a ideologia operário-camponesa o disfarçasse – expresso no modo como elas foram marginalizadas ou excluídas dos processos de desenvolvimento que, independentemente da sua bondade, foram gizados e implementados, embora com resultados pouco conseguidos. Desde logo, pelo esquecimento a que foram votadas as povoações, enquanto unidades administrativas previstas constitucionalmente desde os primórdios da independência e jamais dotadas de instituições, quer do Estado, quer do enquadramento do poder tradicional. Em segundo lugar, pelo insistente adiamento da institucionalização das autarquias, com argumentos pouco convincentes e indicativos de ausência de vontade política, facto que, com maior ou menor dificuldade, permitiria não apenas a aproximação de alguns serviços à população, mas também um maior envolvimento das populações nos processos de decisão e o seu crescimento como cidadãos, deixando-se o Estado cuidar de outras tarefas, incluindo muitas com incidência local. Em terceiro lugar, pelo modo desprendido como foi encarada a instalação de serviços públicos, originando uma carência acentuada que representa talvez a razão mais determinante do aumento significativo das migrações para as cidades. Em quarto lugar, pelo atraso tecnológico a que se votou a agricultura familiar, sem acesso a factores de produção, a crédito e outros serviços bancários, a assistência técnica e a mercados, resultando tudo isso numa situação em que só a resiliência secular dessas populações permite a sua sobrevivência, ainda que em condição de elevada pobreza multidimensional.

Nestas circunstâncias é simplesmente absurdo falar de modernização e de tecnologia de ponta. O que o cidadão comum almeja são coisas “simples” e “modernas” que resolvam os múltiplos problemas que enfrenta, começando pelo Bilhete de Identidade, nos limites da actual realidade angolana e do estado de desenvolvimento das forças produtivas, isto é, das capacidades humanas e técnicas e das limitações orçamentais, na dimensão holística do país e não apenas das cidades e muito menos da capital. A modernização de Angola, como a de muitos outros países africanos, não pode ignorar relações económicas e sociais informais existentes, por isso será diferente, pelo que a africanização do Estado não deve ser uma fantasia. Ainda que defenda que é errado e perigoso pensar que as autarquias serão remédio para todos os males, pelo modo inqualificável como o partido no poder vem tratando esse dossiê ao longo dos últimos 13 anos sou obrigado a concluir que a sua implantação se tornou uma questão simplesmente inadiável. A institucionalização das autarquias permitirá a ampliação da consciência cidadã e da cidadania, e consequentemente um debate mais qualificado sobre os caminhos da modernização tecnológica.

Novo Jornal, 21/4/23

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