A cidade de Luanda piorou imenso nos últimos três meses, foi a avaliação que um observador atento da cena económica e político-social angolana fez depois de uma ausência no exterior do país. Muito mais crianças a pedir e a dormir na rua, mais gente nos contentores de lixo e muito mais jovens parados ou a deambular – e sobretudo um olhar ainda mais baço no rosto dessas pessoas, cada vez mais desesperançadas.
Estas constatações compaginam-se, sempre de acordo com o tal observador, com o continuado percurso errático de uma governação desnorteada que continua a acumular erros de actuação e que em vez de encontrar soluções estruturantes para os gravíssimos problemas do país e de procurar recuperar a abalada confiança da população, lança mão de estratagemas que apenas contribuem para piorar o que está mal. A par de muitos outros, encontramos a aprovação recente da Lei sobre a Vandalização de Bens Públicos e da Lei de Segurança Nacional que, associadas à contestada lei a aguardar tratamento que representa um garrote às ONGs, todas elas representando retrocessos democráticos e caminho livre para o reforço do autoritarismo.
Em 2021 o Executivo angolano decidiu iniciar um processo que levaria à alteração da Divisão Político-Administrativa (NDA) do País, com a apresentação de uma proposta para criação de mais províncias e municípios cujos totais atingiriam 23 e 581, respectivamente, em lugar de 18 e 164 actuais. O principal argumento para a racionalidade da proposta era satisfazer as “exigências do crescimento demográfico e das infra-estruturas, da expansão dos aglomerados populacionais, e dos limites geográficosterritoriais, da necessidade de reduzir as assimetrias regionais, promover o desenvolvimento harmonioso do território nacional e a qualidade da organização e prestação dos serviços essenciais básicos às populações”.
O processo teve uma evolução errática, desde logo pelo modo como se fez o que se chamou de consulta pública ou auscultação. O poder instalado em Angola não tem um bom entendimento sobre o que é, e como se deve fazer, uma consulta pública ou uma auscultação. Uma versão preliminar da proposta foi apresentada à Assembleia Nacional a 7 de Dezembro de 2022, com 20 províncias (devido à alteração de Moxico e CuandoCubango, mas sem nenhuma explicação para a eliminação das alterações de Lunda Norte, Malanje e Uíge) e 581 municípios, tendo o Executivo previsto a sua aprovação e implementação em 2024. Em 2023, à margem das consultas oficiais que na generalidade saudaram e caucionaram a iniciativa, um grupo de actores e organizações da sociedade civil elaborou um documento que chamava a atenção para os custos exorbitantes que essa aposta acarretaria, nomeadamente naquilo que se denomina má despesa, por representar essencialmente salários e outros itens não reprodutivos, e ao mesmo tempo questionava a possibilidade de se conseguir o financiamento necessário. Posteriormente, numa sessão do Conselho de Governação Local realizado no Uíge ainda em 2023, foi anunciado que a NDA seria feita por fases e que, numa primeira, seriam criadas apenas duas províncias, resultantes da divisão do Moxico e do Cuando Cubango – uma ideia que já vinha do tempo em que Bornito de Sousa era ministro da Administração do Território, tendo-se chegado a fazer alguns estudos nesse sentido, receando eu que se tenham perdido – e aumentar o número de municípios para aproximadamente o dobro. Foi esta a proposta que chegou à Assembleia Nacional no início de 2024 e foi aprovada na generalidade.
Em mais uma evidência da falta de estratégia e de uma linha coerente de actuação, como tenho vindo a questionar, quando se aguardava o agendamento da discussão e aprovação final da NDA pela Assembleia Nacional, e numa aparente iniciativa do Secretariado do MPLA, surgiu já em Junho último uma nova proposta, agora para a divisão de Luanda em duas províncias, que apanhou toda a gente de surpresa, suspeitando eu que inclusive o próprio Mistério da Administração do Território e o Grupo Parlamentar do MPLA. Mais uma vez sem os necessários estudos e enfatizando-se o mesmo argumento da aproximação dos serviços aos cidadãos, agora com a necessidade de se tornar Luanda mais e melhor governável pelo seu tamanho, como se cidades como Paris, Nova Yorque, S. Paulo ou Xangai fossem mais pequenas do que Luanda.
Nessa última versão, os municípios de Viana e Cacuaco, quase na totalidade, passariam a fazer parte da, chamemo-la assim, nova província. Em mais um exercício inusitado, talvez explicado pelo recurso ao algoritmo/software ChatGBT que indicou a melhor composição demográfica para um determinado resultado eleitoral, decidiu-se, “de kaxexe”, manter Viana e Cacuaco, ainda que sem Calumbo e sem Sequele, respectivamente, comunas com pouca expressão demográfica, o que faz com que as duas novas províncias passarão a ter cerca de nove milhões de habitantes, uma e meio milhão outra. Para mim não ficou claro como, com os processos de consulta usados, 70% dos luandenses aprovaram a divisão da sua província, e sobre qual das versões demográficas recaiu a sua aprovação. Ora, perante isto, fico com todo o direito de pensar se não teremos uma futura nova divisão de Luanda quando alguém chegar à conclusão que esta nova Luanda terá de voltar a ser dividida para permitir uma boa gestão e maior aproximação dos serviços aos cidadãos.
Por mais que o MPLA e o Executivo jurem que a Nova Divisão Político-Administrativa nada tenha a ver com a implantação das autarquias, só alguém muito ingénuo pode acreditar. Desde há muito venho dizendo que é preciso não colocar demasiadas expectativas na ideia de que as autarquias serão a panaceia para todos os males do País, pois isso pode ser perigoso. Em primeiro lugar porque os assuntos que serão do seu pelouro, principalmente os de carácter económico, são bastante limitados. Depois, porque a conjuntura interna e externa dificultará imensamente o desempenho de qualquer força política e social interessada em mudar o rumo dos acontecimentos. O maior dividendo das autarquias, numa primeira fase, será o rompimento do monopólio do poder e do modo como ele é exercido em Angola, e isso terá uma valia inestimável para os angolanos, incluindo para o próprio MPLA, que, pela sua incapacidade política actual e no seu afã de manter o status quo, não compreende como tal seria benéfico para si próprio a médio prazo.
O Fórum das Cidades e Municípios em Malanje veio provar que a implantação das autarquias está longe de acontecer enquanto depender do MPLA. Tendo sido um bom espaço, ou um espaço possível, de discussão dos problemas dos municípios sem que os habituais filtros inibissem totalmente os Administradores, ficou claro que o processo de desconcentração de competências e de recursos humanos e financeiros, que se vem prometendo há muitos anos, não acontece de facto, pelo menos naquilo que é substancial, o que compromete ainda mais a boa vontade do Executivo para com a desconcentração e a descentralização. Mesmo em relação ao PIIM a fatia de leão fica com a “central” ou com “a província”, isto apesar de se constatar que a maior parte dos atrasos ou incumprimentos se registam a esses níveis, o que pode pôr em causa a ideia de que não há condições para a desconcentração e para a descentralização. Por isso, não causou estranheza que as autarquias estivessem fora da agenda do Fórum e que assim continuará enquanto a vontade depender deste Executivo.
*Refrão de uma marchinha brasileira em voga nos anos 50
**In Novo Jornal edição de 16.08.24