DAQUI E DO OUTRO LADO DO RIO

JAcQUEs TOU AQUI!

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

E.T. – Alertado por um leitor atento, conferi o erro. Na crónica de domingo passado, mencionei, repetidas vezes, o título e o tema que inspirou o romance do inglês Aldous Huxley. Todavia, descrevi “Admirável mundo novo”, laborando um lamentável erro. Um lapso que terá, certamente, conduzido muita gente ao entendimento de um mundo maravilhoso, sublime, quando, na verdade, o texto de Huxley trata exactamente o contrário. Um mundo horrível, tenebroso. Por esse lamentável facto, apresento aos leitores o meu pedido de desculpas.

Posto isto, e para descomprimir, desanuviar as ideias, passo imediatamente ao assunto que me traz aqui hoje. 

No seu jeito provocador, a Fatinha cutucou-me via WhatsApp. Assim mesmo, nos modos que estão na moda que se usa. “Para quando uma sentada?” Aqui na Tuga, sem condições, como vamos conseguir isso? Ingenuamente, respondi perguntando, para logo a seguir comentar, ‘minha amiga, não estou habituado a sentadas aqui no ultramar’. “Vá lá, reúne alguma malta nossa”, insistiu a minha amiga. ‘Mas para festejar o quê, recordar o quê, então’, fui contestando. “Só mesmo os velhos tempos do Povo Maravilhoso”, explicou-se melhor, quanto à intenção. A menos que fosse para assinalar o “Dia da Raça”, que até estava a acontecer para os tugas, em muitos sítios, resmunguei para não ficar quieto.

De imediato imaginei perigos. A raça ou a estirpe, como queiram, é, para mal dos nossos pecados, o assunto que mais preocupa líderes europeus, nomeadamente tugas, também americanos, principalmente os mais chegados aos extremos da direita, Até mesmo alguns puristas angolanos se incomodam com a “coisa”. Afastei-me da abstração e cheguei-me a coisas mais interessantes. 

Como dificilmente nego fogo a pessoas como a Fatinha, principalmente quando estão na onda de falarem assim, com determinação no argumento, não deixei de ir a jogo. A Fatinha, para além de tudo, é, sempre foi e será eternamente, uma kamba daquelas que deixaram de se usar.

Puxei dos meus galões de razoável mobilizador de massas – não foi à toa que ganhei o currículo que ostento – e, quando dei por ela, já tinha convocado aí, umas vinte pessoas! Faltava apenas definir o local de encontro e o programa para desenvolver a ideia, pô-la a caminhar. Lembrei-me então do Orlando, eterno conhecedor de coisas desconhecidas, meritoso mestre a preparar boas entradas. Coloquei-lhe a questão, e ele foi lesto a responder. Propôs, após curta meditação. “Vamos até Cacihas, há por lá muitos restaurantes. Que tal uma boa caldeirada de peixe? Não viria mesmo a calhar? Há comboios e até tem metro para nos levar aos barcos. Também tem igrejas, para quem goste de rezar”. Começou então a desenhar-se nas nossas mentes um cenário à nossa maneira, multirracial, festivo, e entre nuvens de fumos de cozinha, surgiu rapidamente o tacho ou a panela grande, vários peixes em refogados, cebola e pimentos a cozer, aquele cheirinho a emergir, fazendo cócegas nos narizes. 

Cuidadoso, como sempre, o Orlando alertou para a condição primeira do seu clausulado de encontros. Cada um deve aguentar com o seu estrago!

Foi quando me lembrei do meu calcanhar. O raio do Aquiles incomoda, ainda me arrasto a espaços, mais quando esfrio. Portanto, justifica-se aquecimento! Afastei-me da dor que me provoca e fui pensado convictamente que o melhor de tudo isto, é mesmo estar-se vivo. E comecei, uma vez mais, a fazer contagens. Contar com tudo, não esquecendo as possíveis faltas. O Peco Melo está aflito, à rasca mesmo, “através” da coluna, disse-me ao telefone. Não poderia comparecer, ainda mais porque a Santinha está ausente. A Mizé garantiu que tinha vontade, mas só vontade não chega. As tarefas extraordinárias não a deixam confirmar programas desses. Passou a duvidosa. Fiquei eufórico quando ouvi o sim da Branca. Gosto dela, da sua forma de ser e de estar. Maravilhosa a escrever. Mas não tardou que desse o dito por não dito. Não estaria porque surgiu um inconveniente não muito bem revelado. Pus-me novamente a pensar nos outros, esquecendo-me que não sou único. Há sempre por perto gente como eu. Que fica preocupada com os outros. Quem vem, afinal? Perguntei-me, pela enésima vez. O duo de Anas, mais as suas contradições com o sono e com os autocarros, seria provavelmente o mais problemático, mas desta vez havia garantias de que iriam cumprir.  Surgem então desconfianças. De tal ordem que até me levam a desvios políticos. Levam-me a meditar sobre a dificuldade de governar. Se não é fácil organizarem-se simples encontros, como será governar?! Deve ser vida de cão, a vida dos governantes, né?

Uma hora antes do embarque, estava eu no Cais do Sodré. Olhando para todos os lados, do jeito dos gatunos, tentando controlar as coisas. Também, para ter a certeza que a neófita nas andanças, a Elsa, mestre em cozinhados internacionais, mais o seu herr alemão, Detlef de sua graça, iriam mesmo comparecer. Não tardou que certificasse a qualidade do casal. Impecável em tudo, na postura e no cumprimento do horário, como no brilho emprestado ao ambiente em que se enquadraram perfeitamente. Não podem ser confundidos com vulgar malta do Dombe Grande, de modo nenhum. Apesar de um certo feitiço que emana da presença deles, principalmente dela. Entretanto, antes e com o intuito de aproveitar pedaços radiosos do sol da manhã, tinha-me sentado lá fora, num banco da paragem dos autocarros. 

Estava embrenhado nas minhas cogitações excursionistas e não só, quando, inesperadamente, me surgiu na frente um rapaz difícil de definir. Seria muçulmano? Ou católico? Era, de certeza, um tipo de religião estranha, sem regras ou maneiras. Porque, no cúmulo do atrevimento, dirigiu-se a mim, dizendo-me, com uns olhos ameaçadores, bem metidos dentro dos meus, “estás muito gordo”. Enquanto falava, tentava empurrar-me do banco onde eu estava sentado. “Sou mesmo um azarado, havia logo de me aparecer um tipo destes, sem respeito pela minha idade, num dia como o de hoje!”. Falei para mim, decidindo que não valia a pena pensar muito mais. Levantei-me e deixei o moço com as suas loucuras, vindas provavelmente de um “charro” manhoso que, àquela hora, já tinha chupado exaustivamente. Sinceramente! Sem qualquer dúvida. Tinha de haver qualquer coisa a perturbar o meu programa. Tive de explicar isso ao Orlando.

Vejam só como andam as coisas. Eu que me estafo a procurar entendimento para fenómenos importantes da sociedade, dos que colocam drogados profissionais e do mais alto quilate, envolvidos nas grandes makas da política internacional, ter de aturar agora um liambeiro de alpendre, de meia-tigela, numa radiante manhã de quarta-feira que até parecia ser de domingo! Eu que me chateio, nem sei mesmo porquê, das atitudes de alguma da nossa gente, mesmo sabendo que a nossa malta é mesmo assim, não sei porquê! Pensei até na facilidade com que se transformam espaços do Aeroporto Internacional de Lisboa numa espécie de Comité de Acção do Éme. Havia necessidade disso em terra alheia? Talvez houvesse, mas não importa porque eles é que sabem, aliás, sabem de tudo. Confesso que não fiquei molestado, mas também interiorizei, se todo o mal fosse só esse! Fui mais longe no pensamento, “à política o que é da política, sim senhor, mas as manifestações e o delírio são lá para os comícios da banda”.

Já no outro lado do rio, e após uma breve e agradável travessia, confirmaram-se as ausências já quase anunciadas, a da Branca, inclusive. Até da própria Fatinha, a mentora da sentada. Mas tudo foi superado. Fiquei encantado com novas coisas que eu não conhecia. Portugal no seu melhor, sempre a surpreender. Até na caldeirada de peixe que acabou por não ser a que constava nos nossos planos. As panelas mostraram-se em bom plano, apesar de mostrarem nenhum peixe de escama, só pedaços de safio, de raia, cação e tamboril. Nem sequer sardinha, o peixe de personalidade rara, o especial, segundo o especialista Orlando. 

O programa foi melhorado com a presença do Zé Da Silva e da Ondina que, inesperadamente, surgindo quase do nada, do interior de um metro de superfície, vejam só, fizeram-me lembrar, por essa via, episódios da nossa vida real que ainda me confundem.  Deram-nos a graça da sua presença e porque, segundo o próprio Da Silva, depois dos tratos dados, não sobram pratos, restou-nos, no final, assinalar as faltas quer de peixes quer de pessoas – a do Tonecas foi imperdoável – e, finalmente, reconhecer que passamos momentos de um bom convívio, relaxante, na companhia de gente que nos faz bem à alma.

Com isso e após constatar que os discursos do Dia da Raça na Tuga não tinham sido bem apreciados por todos – muito difícil agradar a gregos e a troianos – resta-me recordar tudo o que vivemos naquele dia, nas duas margens do majestoso rio Tejo. Nestes termos, vou despedir-me, cumprimentando todos os companheiros de jornada, os meus amigos e a meia dúzia que formam os meus estimados e leais leitores. 

Entretanto, fica a certeza de que, se nada de anormal acontecer, estaremos com todos, no próximo domingo, à hora do matabicho. Até lá, aquele abraço.

Lisboa, 22 de junho de 2025

PS – Já tinham passado uns dias quando, à última da hora, chegou-me a triste notícia da partida do nosso camarada Brito Sózinho. Mais um que nos deixa, neste caminho tortuoso. Até sempre, velho combatente. 

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