JAcQUEs TOU AQUI!

Sigo esta tendência normalíssima e não me livro dela. Vem do primeiro dia deste tempo mais recente em que cheguei à Tuga. Neste ultramar, onde por motivo de força maior tenho permanecido. Já vão mais anos que os inicialmente previstos, os que pretendia e esperava estar. Faço disso um hábito, em Lisboa ou nos seus arredores, principalmente, onde apesar dos pesares, sinto uma tranquilidade que me faz bem. Uma paz só comparável àquele sentimento único, falo da paz que nunca foi palavra vã. Fundamentalmente a de espírito, sempre inegociável e, cá para mim, só mesmo capaz de ser encontrada em Calulo, a minha terra natal.
Aqui, por onde ando, hoje aqui, amanhã ali, passando por locais onde se juntam várias pessoas, tento descobrir a presença de conterrâneos nossos, faço tudo por captar uma conversa própria da banda, ultimamente procuro com certa ansiedade, confirmação de notícias que a internet espalha e dá como certas, mas nem sempre com a verdade de como anda ao certo a nossa enorme “regedoria”. Não raras vezes, vejo-me em situação mediática de constituir notícia, quando sou descoberto por alguém. Não foi a primeira vez, não será a última, tão brevemente, creio. Sou frequentemente abordado por pessoas da terra, de algumas lembro-me, de outras não faço ideia de onde as conheço. São, geralmente, mais novas, acontecendo ainda com um ou outro contemporâneo, dos que se movimentam já com alguma dificuldade, a intrometer-se na lista dos que me vão reconhecendo. Já deixei de mostrar admiração nesses encontros. Porque a cada dia o facto é mais comprovado. É certo que está por cá muita gente nossa. Em número está distante da comunidade brasileira, não tem comparação, os brazucas tomaram conta de muito espaço, há áreas do mercado de trabalho em que garantem exclusividade, mas ainda assim, os mwangolé têm aqui boa representação.
Como é kota Jacques!
O grito fez-me seguir a voz. Estava próxima e tinha tom inconfundível. Carregada de forte e cantante sotaque camundongo. O seu dono estava na mesma fila, uns três lugares atrás de mim. Captei-lhe o olhar e lancei a pergunta da praxe.
Não estou a ver quem é. Conhecemo-nos?
Oh mô kota, você é mais-velho não me conhece, eu é que te conheço. Quem é que não te conhece?
A resposta do jovem travestido com roupa e outros vestígios próprios da construção civil, fez-me ficar entre vaidoso e pensativo. Não consegui esconder a emoção que me dividia e me levava a soltar interiormente um habitual c’um caraças! Satisfação e alguma tristeza. À uma, por ter sido reconhecido, à outra, por certificar que o jovem levava na mão um embrulho pequeno e transparente a mostrar envergonhados uns pães, três bananas e um chouriço de sangue. As suas compras resumiam-se àquilo.
Estávamos no Intermarché de Fernão Ferro, o mais pequeno dos centros comerciais que descobri enquanto dura esta interessante, mas forçada permanência na pacata zona da Margem Sul do Tejo. Falo com os meus botões e viajo para tema diferente. Basta de amarguras! Este pequeno país, com gente da terra e de fora, cresce e desenvolve-se a olhos vistos. A sociedade de consumo exposta, com o poder de compra a diversificar-se, faz-me lembrar dos que, lá longe, brigam por comida e sentir inveja dos tugas que andam sempre a reclamar. A fila já fazia duas curvas e esticava-se por entre o aglomerado de prateleiras que mobilavam o enorme espaço e suportavam as mercadorias.
De repente fixei os olhos na moça alta e forte, uns metros à frente. O meu olhar concentrava-se mais nos seus braços fortes. Carregavam há algum tempo carga relativamente pesada. Um garrafão com cinco litros de água mineral, um bojão com produto de limpeza caseira e um mamão inteiro, meio amadurecido. Produtos cujo peso justificavam o carrinho de mão que a maioria utilizava.
Um gentil-homem atrás de si, mostrou os seus préstimos, oferecendo o seu carrinho. A moça recusou, aceitando, contudo, a gentileza. Pelos vistos queria mesmo exibir a força do seu músculo que também se estendia às pernas que, tal como os braços, eram bem torneadas, fortes e musculosas. Deve ser bombeira ou coisa do género, pus-me a adivinhar.
Enquanto a fila andava em bom ritmo, o gentil-homem aproveitou para meter conversa. Começou em considerações acerca das tatuagens que a jovem tinha espalhadas pelo corpo, pareciam ilustrações coloridas de um livro de contos infantis.
“Que desperdício”, ouvi-o murmurar ao mesmo tempo que, atrevidamente, lhe elogiava em voz alta a finura da pele branca-amorenada, a destilar saúde e juventude. O olhar perscrutador, fazia lembrar, desculpem lá o exagero da comparação, o de Harrison Ford nos Salteadores da Arca Perdida. Para ficar bem retratado, só lhe faltava mesmo o chicote.
O gentil-homem foi indo no assédio, enaltecendo a borboleta bem desenhada no pulso esquerdo da jovem. Era obra de mestre, de bom traço.
Sabe quanto custou? Perante o olhar ansioso do gentil-homem, a moça informou vaidosa, “setecentos e cinquenta euros”.
Lá atrás, eu escutava e não deixei de mostrar que também estava aboamado. Avaliado pelo valor anunciado da borboleta, o preço começou a classificá-la na minha ideia, mais como mariposa, uma bruxa e símbolo de morte. Assim sendo, a moça que podia muito bem ser bombeira, teria uma boa quantia, estampada por braços e pernas. Pequena fortuna, caso se estendessem por peito e costas, embora a sua vestimenta não desse hipóteses de outras avaliações. Contive o desejo de perguntar se os desenhos eram susceptíveis de ser apagados. Mas a tempo lembrei-me da marca feita pela mesma tinta, que trago na pele, na região do baixo-ventre, desde quando me submeti a intervenção da próstata, há dez anos, na Clínica Champalimaud. A marca da radioterapia. Um pontinho esverdeado que não sai mais. Comigo correu bem, a outros, nem por isso.
Não quero pensar neste lado triste da vida e, por isso, vou deixar-vos. Despeço-me dos meus amigos, companheiros de luta e amigos. Com abraços para os que são de abraços e beijos para os que são de beijos, espero pelo nosso próximo encontro no domingo que vem, à hora do matabicho.
Fernão Ferro, Portugal, 10 de Agosto de 2025
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