JAcQUEs TOU AQUI!
A naturalidade com que aceitamos certas inconstitucionalidades dos actos públicos. O descarado abuso do poder, a fome do povo que aumenta, a saúde e a escola que não existem, o roubo, a corrupção e a impunidade existentes, tudo isso me incomoda...

Um dia destes, data recente, soavam ainda os acordes do Carnaval, resolvi descer à baixa lisboeta. O sol, uma dádiva dos deuses, acenava-me. Não resisti ao convite. Transportei um pouco de boa disposição, também arredia, e alimentei expectativas. Quem sabe, encontrar algum patrício na zona. Para conversar, porque há dias que falo sozinho. Não foi difícil topar o Carlitos, no sítio do costume. Abraçávamo-nos, quando notei que o acompanhava um indivíduo. Apresentou-me o moço, por sinal um tipo nada simpático, era daqueles que parece ter o rei na barriga. A marca de uma certa estirpe da terra.
– Vamos ao Zé dos Chifres? – Sugeriu a dada altura o Carlitos que sabia do meu gosto pela comida caseira do sítio.
Os grelhados, tanto os de peixe como os de carne, eram magníficas, e aquelas saladas bem temperadas, uma delícia.
– Porque não vamos ao Narigudo? – Contrapôs o amigo do Carlitos, a evidenciar um ar superior, um estilo que detesto. O Narigudo era muito frequentado por tipos balados da banda.
– Não gosto daquele ambiente – marquei posição – principalmente porque não tenho dinheiro para aguentar os preços da casa. Só vai lá quem está podendo. Não é sítio para tesos.
– Se for pelo dinheiro … que não seja por isso – sempre com aquele ar superior, irritante, de tipo com carteira recheada, fez-se ouvir outra vez o rapazola.
O Carlitos começou a mostrar-se incomodado. Eu sou mais velho, conhece-me bem, nem sempre sou agradável, e ainda por cima, sou seu padrinho de casamento. Não foi por acaso que mostrou ainda ter muito respeito por mim. Decidiu-se por um outro sítio. Dirigimos os nossos passos para os lados da Mouraria. Escolhido o local, não tardou que a opinião escondida do amigo avaliasse o local. Aquilo não passava de uma lanchonete, diziam os seus gestos e trejeitos. Incompatível com o seu estatuto. Mas foi mesmo lá, onde decidimos almoçar.
Teve o bom senso de não fazer declarações a respeito do espaço, nem tecer considerações ou falar de aspectos particulares do local escolhido. Mas o clima que nos cercava estava de antemão minado. O rapazola, surpreendente amigo do Carlitos, era mesmo um vaidoso refinado. Pôs-se a mostrar credenciais. Estava acidentalmente em Lisboa, vinha em serviço e no dia seguinte partiria para Londres. Despropositadamente exibia o relógio caro, e o fio de ouro a despontar entre os botões da camisa.
Fizeram-se os pedidos e olhamos todos para a televisão que transmitia o noticiário das treze horas. Na tela e na ordem do dia, imagens da maka que os tugas estão com ela. Um caso que envolve o Primeiro-Ministro português. Uns dinheiros mal explicados fazem com que o Chefe do Governo esteja a braços com um caso complicado.
Empresa familiar, mulher e filhos como sócios, serviços prestados a certas entidades. Facturava verbas que, segundo os comentadores, não eram nada por-aí-além. No entanto, suficientes e capazes de criar problemas inesperados. Os números não assombravam e, cá para mim, fui dizendo que eram assuntos que não nos diziam respeito.
Mas, querendo ou não, estávamos ali a ouvir. Acusações e contra-acusações, defesa e contra-ataques, desconfianças. A televisão noticiava. Vai votar-se moção de confiança depois da moção de censura já discutida. A celeuma entrou mesmo na agenda do Parlamento português. Crise política instalada, já se vai falando em queda do Governo e em rápidas eleições. Coisas da democracia. Será por isso que em países como Angola, os políticos se afastam dela. Só dá chatices!
– Havia de ser na nossa terra, onde há bwé de tempo acontecem uns casos cabeludos que, no mínimo, sugeriam Comissões Parlamentares de Inquérito – segui em devaneio inocente o caminho da verdade que me aflige há longo tempo, sem me aperceber que tocava numa parte sensível, incomodativa, do amigo do Carlitos.
– Quantos casos há em Angola a pedir investigação séria, a mostrar ilegalidades de todo o tamanho e ninguém diz nada?! Nem sequer se fazem tentativas. Aqui o Chefe do Governo é bombardeado com perguntas chatas, mas lá, na nossa banda, o Chefe do Executivo não dá confiança a ninguém. Está-se nas tintas para todos os que tentam chatear!
Os meus companheiros mantinham-se calados. Mas que raio de mania a minha. Lá estava eu empolgado outra vez! Mas a verdade é que não resisto quando se fala em coisas que, quer queiram ou não, me incomodam e essas, sim, dizem-me muito respeito. São coisas que me deprimem.
Quais? Por exemplo, a naturalidade com que aceitamos certas inconstitucionalidades dos actos públicos. O descarado abuso do poder, a fome do povo que aumenta, a saúde e a escola que não existem, o roubo, a corrupção e a impunidade existentes, tudo isso me incomoda. Notei que nesta parte, eu já falava em voz alta, para ouvir quem quisesse.
Era demais para a capacidade de resistência do jovem arrogante. Lá estava eu uma vez mais a pensar mal dos outros. Sem ter provas suficientes. Mas, sejamos honestos, são precisas mais provas, mais evidências?
Fui em frente, não posso evitar. Agora a dizer aos meus botões, enquanto olhava para os dois amigos, sisudos, casmurros. C’um caraças! Há mesmo entre nós, uma malta muito especial. Não toleram, por nada, que se fale mal dos governantes do país. Por mais desonestos que eles sejam. Porque será? Amor à terra, ou simples militância? Mas isto é doença, ou quê?
Nervoso, o amigo vaidoso do Carlitos desculpou-se, levantou-se e foi aos lavabos. Quando regressou, esfregava as mãos para as aquecer e falou, utilizando vocabulário de notado alinhamento partidário. Dirigiu-se apenas ao seu kamba. Nem sequer me olhou. Afinal, disse ele explicando-se, tenho que me retirar. Desculpou-se e lá foi ele. Entretanto chegaram as doses da refeição encomendada. Eu e o meu afilhado Carlitos comemos em silêncio, não havia ambiente para comentários. Da parte do almoço que cabia ao amigo, fez-se um tak away e, por deferência do meu afilhado, coube-me a mim levá-la para casa. Ao jantar, comi restos de choquinhos grelhados com batata-doce assada e salada de pimentos.
É tudo por hoje. Desculpando-me por qualquer coisinha menos agradável, cumprimento os meus estimados leitores. Com a estima de sempre e a consideração habitual. Até ao próximo domingo, à hora do matabicho.
Lisboa, 9 de Março de 2025