CONDECORAÇÕES DA RECONCILIAÇÃO

Se, por um lado, os três signatários do acordo de Alvor devem ser agraciados com a medalha de honra comemorativa dos 50 anos da independência, por outro lado devemos reconhecer que o processo de condecorações em curso está a ser uma grande jornada patriótica, benéfica no quadro da necessidade de o Estado angolano reconhecer os feitos dos seus filhos de mérito que, de uma ou outra forma, se destacam.

PAULO DE CARVALHO 

Prometi a mim mesmo retirar 4 ou 5 horas do meu descanso, para escrever um texto a respeito das cerimónias de condecorações que se vêm realizando deste Abril deste ano, para assinalar os 50 anos da proclamação da independência política de Angola, caso se anunciasse a condecoração dos três signatários do Acordo de Alvor.

A intenção é esclarecer os muitos equívocos que têm sido amplamente difundidos, à volta deste processo de condecorações.

O anúncio da condecoração de Agostinho Neto, Holden Roberto e Jonas Savimbi (a ordem aqui é alfabética) foi feito pelo Presidente João Lourenço, na Assembeia Nacional, no final do seu discurso deste ano, acerca do estado da Nação.

O local escolhido não poderia ser melhor, visto ser o parlamento o local que reúne representantes dos partidos políticos angolanos, sendo por isso chamado habitualmente a “casa da democracia”.

Vou dividir este texto em duas partes, nomeadamente uma primeira, a respeito deste anúncio; e uma segunda, acerca dos méritos e deméritos dos actos de condecoração, que vão já na anunciada sétima cerimónia, aprazada para daqui a três dias (tudo indicando que venha a haver pelo menos mais uma cerimónia, em Novembro).

Condecoração dos signatários de Alvor

O Acordo de Alvor foi a ante-câmara da independência de Angola, pois reuniu à mesma mesa representantes dos três reconhecidos movimentos de libertação e as autoridades coloniais. Foi esse acordo que estabeleceu as etapas do processo de proclamação da independência do nosso país.

Uma vez que se trata, agora, de comemorar os 50 anos da independência, nada mais justo que recordar os três maiores ícones desse processo de luta pela auto-determinação dos povos de Angola (coisa que ainda não ocorreu, após 2002). Quanto mais não seja, para cumprirmos a regra natural segundo a qual tudo tem uma proveniência; e para cumprirmos também a regra cultural (muito nossa) segundo a qual somos o que somos, graças a quem nos concebeu (seres humanos e projectos).

E temos ainda de honrar o ditado que estabelece que as “honras são devidas aos generais”. Ou seja, não faz sentido honrar “cabolas” e esquecer os líderes.

Durante as discussões da proposta de lei sobre esta matéria, este assunto foi apresentado na Assembleia Nacional de forma indevida, tendo-se depois seguido discussões nas redes sociais (candongueiros incluídos!), todas elas baseadas no falso fundamento de que a lei não contemplava os signatários de Alvor.

Esse erro de abordagem foi esclarecido por algumas poucas pessoas (eu incluído), aquando do debate de especialidade no parlamento.

A questão é que a lei prevê as normas gerais para atribuição da medalha comemorativa dos 50 anos da independência, não deliberando à partida quem exactamente deveria ser agraciado. Essa é competência exclusiva do Presidente da República.

Apesar do esclarecimento e apesar de termos repetido que estávamos a tentar “colocar a carroça à frente dos bois”, por mais absurdo que pareça, a verdade é que (quase) toda a gente discutia como se a lei tivesse determinado que os signatários do acordo de Alvor não seriam contemplados.

De facto, o artigo 3.º da lei estabelece, a dado momento, que “a Medalha da Classe de Honra é atribuída a chefes de Estado e chefes de governo, bem como a outros altos dignitários, nacionais ou estrangeiros, que tenham contribuído de modo especialmente relevante para a Independência da República de Angola, para o alcance da paz e para o desenvolvimento nacional”.

A pergunta que se impunha, logo na altura, era: que outros “altos dignitários” terão contribuído mais e “de modo especialmente relevante” para o alcance da independência de Angola, que os subscritores do acordo de Alvor?

Com a aprovação da lei, estava pois a porta escancarada para tal homenagem.

O argumento que mais se ouvia, contra a inclusão de Jonas Savimbi no leque de homenageados, era de que tinha sido responsável pelo arrastar da guerra e pela morte de angolanos durante o período trágico que terminou apenas em 2002.

E cada um dos que defendiam este argumento, dizia que tinha familiares mortos nessa altura, sendo Savimbi responsável por isso.

Ninguém, no seu perfeito juízo, nega os efeitos negativos que a guerra causou em todas e cada uma das famílias angolanas. Não é isso que está em causa.

O que está em causa é que o final da guerra trouxe consigo o desencadear de um indispensável processo de reconciliação nacional, cujas principais consequências são (1) o perdão, (2) a convivência política sadia e (3) a convivência social harmoniosa entre os angolanos antes desavindos e agora reencontrados.

E depois, temos de ser honestos e perguntar, a bem da verdade histórica: qual dos três signatários do acordo de Alvor não mandou matar ou não caucionou a morte de angolanos? Qual deles?

A resposta é apenas uma: – Nenhum deles!

Enquanto líderes, Holden, Neto e Savimbi (a ordem é novamente alfabética) assumem a responsabilidade pela morte de milhares de angolanos, seja no decurso da luta armada pela independência, seja após a proclamação dessa mesma independência.

Sobre quem estava a fazer a guerra, não há dúvida. Quanto a quem ficou deste lado da barricada, quem não se recorda, por exemplo, das mortes por fuzilamento (e sem julgamento digno desse nome) no tristemente famoso Campo da Revolução, aqui em Luanda?

Temos de passar a ter consciência de que não há uns de quem devamos recordar apenas os méritos e outros de quem recordemos apenas aquilo que fizeram de mal (ou menos bom). Nos três casos, há coisas boas e coisas más, que a História tem de assinalar.

A pena de morte só acabou em Angola, com a subida ao poder do Presidente José Eduardo dos Santos (honra lhe seja feita).

Claro que continuamos, até hoje, a assistir a mortes absurdas, sem julgamento e por decisão de chefias intermédias – muitas delas sem que se sancionem os seus autores e mentores. E também continuam as mortes por deliberada má execução de políticas públicas, o que também tem de ser aqui assinalado.

Tudo isto são coisas que não devidam ocorrer, passados 50 anos da data de proclamação da independência política de Angola. Mas ocorrem, lamentavelmente.

Para terminar o primeiro dos aspectos que aqui afloro, diria que é chegada a altura de acabarmos com acusações que fazem recordar o tempo de guerra.

O compromisso que todos assumimos em 2002 foi de esquecer as mágoas do tempo de guerra, até porque cada um dos três signatários do acordo de Alvor (sem qualquer excepção!) tem milhares e milhares (se não milhões, mesmo) de apoiantes no seio dos angolanos. Apoiantes esses que os veneravam (ou ainda veneram).

E esses milhares/milhões de apoiantes querem ver o seu ídolo homenageado, nesta importante etapa do processo de reconciliação.

A conclusão aponta, pois, para a obrigatoriedade de condecoração dos três signatários do acordo de Alvor, com a medalha de honra.

Se, entretanto, o critério a adoptar fosse a exclusão de todos quantos têm mortes de angolanos na consciência, então nenhum dos três seria condecorado. Nem eles, nem muitos dos que receberam este ano medalhas do PR ou medalhas das forças armadas.

Méritos e deméritos das cerimónias de condecoração

Temos ouvido críticas em relação à decisão do Presidente da República, de homenagear aproximadamente meia dezena de milhar de angolanos, no período de Abril a Novembro deste ano, por ocasião dos 50 anos da nossa independência.

Estará essa decisão errada, do ponto de vista da acção patriótica que o Estado angolano deve desenvolver? Penso que não. Pelo contrário, o Estado precisa de homenagear os seus heróis e cidadãos de mérito.

Não falando mais no já mencionado (falso) argumento da não condecoração de alguns dos signatários do acordo de Alvor, há quem considere que não se justificam tais condecorações, pelo facto de haver muita pobreza (inclusivamente, fome) e ser elevado o índice de desemprego juvenil.

Prefiro enquadrar estes males no âmbito mais geral de execução de más políticas públicas sociais e económicas.

De facto, poderíamos estar muito melhor do que estamos a este respeito, se várias apostas tivessem sido mais sérias, ao longo destes últimos cinquenta anos. Se tivéssemos realmente apostado em quadros sérios para assegurar a gestão do país, na agricultura e na indústria e em políticas redistributivas adequadas, os números relativos à pobreza e ao desemprego estariam abaixo de um terço dos actuais valores que o Instituto Nacional de Estatística e a Universidade Católica de Angola apresentam.

E se tivéssemos apostado em políticas educativas sérias, ao invés da aposta em quadros de competência (profissional e ética) duvidosa para gerir o sector de educação, ao invés de hoje mencionarmos aqui a Universidade Católica de Angola (que tem apenas 33 anos de vida), teríamos mencionado a Universidade Agostinho Neto (já com 63 anos de existência).

Mas não, a maior e mais importante universidade do país nem dinheiro tem para investigação científica, para não falarmos já na forma como vem sendo gerida, da base ao topo.

Para se ter uma ideia do que aqui digo, acrescento que eu mesmo apresentei há 5 anos um sério projecto de investigação com a participação de acima de 70 investigadores de várias universidades, com valores até módicos para a dimensão do projecto, mas que até hoje não foi financiado por nenhuma instituição angolana. Apenas a representação da Organização Mundial da Saúde financiaria parte de uma das suas nove componentes, ligada aos efeitos da covid; e a reitoria da UAN prometeu financiar outra pequena parte do projecto. Já vamos em meia década de espera e instituições como a Sonangol, a Unitel, o Banco Nacional de Angola, empresas petrolíferas e bancos comerciais contactados, nenhuma delas se pronunciou positivamente. Este ano recorremos, por via da reitoria da UAN, à fundação ligada à ciência e tecnologia, a ver se por esta via se consegue financiamento.

Continuamos sentados, à espera. Como nós, certamente outros investigadores da maior universidade do país.

Portanto, para se investir no desenvolvimento, é preciso também apostar em investigação científica de qualidade, nas várias áreas do saber.

Mas, bem vistas as coisas, não me parece que deixar de haver condecorações possa de algum modo resultar (como num passe de mágica) em melhores políticas públicas, económicas e sociais. Isso não ocorrerá, enquanto não mudarmos pessoas e forma errada de gestão.

Não sei quanto se terá gasto na aquisição das medalhas, mas posso assegurar que a proposta que chegou ao parlamento estava bastante longe de incluir as hipóteses mais caras. Acredito, pois, que se tenha mantido a ideia de gastar o menos possível.

O que é preciso será verificar até que ponto os méritos desta opção superam os seus aspectos negativos, acabados de mencionar. É este exercício que vamos aqui fazer.

O primeiro dos méritos a mencionar aqui está relacionado com o incremento da aposta na reconciliação nacional. De facto, temos acompanhado a menção a figuras dos diferentes quadrantes políticos e diferentes faixas etárias, que o Estado angolano tem vindo a homenagear.

Se algumas dessas figuras têm recusado essa distinção, é matéria do foro estritamente individual, que não vamos aqui analisar.

O que se pode dizer, apenas, é que se trata de uma honraria atribuída pelo Estado angolano e não por qualquer partido político ou por qualquer pessoa singular. A honraria envolve a Assembleia Nacional (que aprovou a lei) e a instituição Presidente da República.

O segundo mérito tem a ver com o reconhecimento de feitos nobres por parte dos homenageados.

Devem ser factores objectivos a determinar a inclusão de alguém na lista das pessoas e instituições a homenagear.

Tem de haver critérios, que devem ser o mais objectivos possível. Depois de definidos, tais critérios devem ser realmente seguidos.

Não pode funcionar o: “E eu não sou condecorado porquê?”

Temos de convir que, nas cerimónias de condecorações realizadas nos últimos 50 anos, tem sido esquecida muita gente que lutou pela independência de Angola, de forma mais e menos conhecida.

Felizmente, essas pessoas estão agora a ser recordadas, de modo que a decisão do Presidente da República, de condecorar largas centenas de pessoas, tem sido acolhida de muito bom grado por dezenas e dezenas de famílias, que reclamavam do esquecimento a que estavam votados os seus entes queridos.

Quanto a críticas, uma das principais está relacionada com uma eventual ausência de critérios, nalguns dos casos mencionados.

Já li, nas redes sociais, críticas em relação a casos que podiam de facto merecer condecoração, em dependência dos critérios adoptados.

Mas tem também havido casos duvidosos, de pessoas até conhecidas, a quem a sociedade não reconhece o devido mérito.

A este respeito, uma coisa temos de reconhercer: foram abertos alguns precedentes, difíceis de ultrapassar.

Outra crítica (que eu também subscrevo) está relacionada com a quase ausência de cidadãos comuns, com méritos profissionais conhecidos ou com séria acção social nas comunidades, que simplesmente não são incluídos – não se sabe porquê.

O que mais leio são casos de professores e médicos. Mas podem mencionar-se outros profissionais conhecidos nas comunidades, para além de pessoas comuns que há anos vêm trabalhando nos bairros das suas cidades ou vilas, prestando assistência social de forma desinteressada.

Trata-se de pessoas que, não sendo figuras públicas, têm o mérito de “trabalhar na sombra”, dignificando a sua região e as suas gentes, e contribuindo para o desenvolvimento comunitário. Muitas delas figuras humildes, mas com mérito, que não obtêm o devido reconhecimento, talvez mesmo por serem desconhecidas figuras humildes, sem nomes sonantes.

Se eu decidisse ou se a minha voz fosse ouvida, tendo em conta o elevado número de pessoas a homenagear, em cada cerimónia teríamos aproximadamente 20 professores, 20 profissionais da saúde (incluindo alguns dos eternamente esquecidos enfermeiros e parteiras), 10 pessoas que prestam assistência social nas comunidades e 10 outros profissionais – esquecidos no dia-a-dia, mas com séria acção que tem feito com que os índices sociais não sejam mais alarmantes do que são hoje.

A sua ausência tem sido notada e criticada pelos cidadãos.

Já a sua presença teria dignificado ainda mais as diversas cerimónias de condecoração. E ocasionaria maior dignificação da entidade responsável pelas condecorações – a instituição Presidente da República.

Já agora e porque se fala no reconhecimento de feitos nobres, menciono a seguir alguns casos caricatos.

Por que razão se condecoram os integrantes do agrupamento musical Ngola Ritmos, mas se esquece (dizem que de forma propositada, mas eu acredito que seja apenas por teimosia ou, digamos, falta de vontade) um dos seus integrantes, que por sinal, além de músico consagrado, era também bailarino e actor? Tinha o mesmo mérito que todos os outros no que à luta pela independência diz respeito, mas os seus familiares perguntam-se por que razão nunca, em momento algum, foi recordado até hoje.

Ou, também: por que razão activistas culturais de mérito não são homenageados, mas são-no muitos daqueles que eles lançaram?

E acrescento: como é possível homenagear actores do Carnaval ou da rebita e esquecer deliberadamente um Mestre Geraldo ou um Horácio Van-Dúnem, por exemplo?

Ou por que razão se condecora este escritor ou investigador e se decide não condecorar aquele, quando o primeiro até pode ter menos mérito? Terá sido incluído por ter nome mais sonante?

Ou ainda por que razão não se condecoram as pessoas ligadas ao conteúdo local no sector dos petróleos? E alguns campeões africanos nas suas áreas desportivas?

Vários casos destes haverá, não apenas nas áreas do desporto, da cultura e da ciência.

Em suma, vamos concluir por haver mais méritos que deméritos, no que à opção por tão elevado número de condecorados diz respeito. Até porque é a primeira vez que se o faz numa tal dimensão, considerando décadas de actividade nacionalista e cinco décadas de independência.

Que tenha havido insuficiências e, até, alguns erros, temos plena consciência que sim. Mas estes não apagam os muitos elementos positivos à volta destas cerimónias, que vêm sendo aplaudidas por muitas famílias.

É importante que se corrijam os erros e se ultrapassem as insuficiências, para que diminuam as críticas.

No que à reconciliação nacional diz respeito, sugiro que se considere este marco dos 50 anos, a linha que separa a permanente hostilização da verdadeira reconciliação – tão badalada, mas muitas vezes espezinhada.

E, já agora, para quando uma estátua a assinalar a luta de libertação, com os bustos dos três signatários do acordo de Alvor?

 21.10.2025 (WhatsApp)

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