Junho de 2022. Um pouco por todos os emissores de informação angolanos a notícia era a da entrega das ossadas de Alves Bernardo Baptista “Nito Alves”, Jacob Caetano João “Monstro Imortal”, Arsénio José Mesquita “Sihanouk” e Ilídio Ramalhete Gonçalves aos respectivos familiares, a ser feita dali a dois dias.
Quatro ossadas de quatro militares e políticos pró-soviéticos filiados no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), acusados de organizarem uma fração dentro do partido com o objetivo de derrubar o governo presidido por Agostinho Neto e conduzirem um alegado “golpe de Estado” que ter-se-á materializado na madrugada do dia 27 de Maio de 1977, eram anunciadas como sendo entregues aos seus familiares 45 anos versados da “intentona” e praticamente 1 ano depois do pedido de desculpas público por parte do actual Presidente da República de Angola, o General João Lourenço.
Estremecer foi uma primeira das minhas reações. Um incomensurável peso a inchar-me as pernas e a subir pelo corpo até arranhar a garganta como o chicote Marx e o cavalo-marinho Lenine com que Cajó e Pitoco açoitavam indiscriminadamente aquela geração nascida nos anos 40 e 50 do século passado. No rio voraz de sangue as margens comprimiam possíveis testemunhas independentes.
Coubera a Zezinho, naquela altura militar recém filiado nas Forças Armadas Populares para a Libertação de Angola (FAPLA), o infortúnio de correr os braços de seu irmão Betinho, meu pai, no último desejo de sentir as mãos geladas do primeiro filho de Dona Bia, acompanhado por dois militares das FAPLA então que o fizeram assistir ao fuzilamento do seu próprio irmão que, saído do interior da Fortaleza de Luanda, tombou sobre o vale comum.
Com a notícia do assassinato de mais um filho de Malange, e com a certeza de que também em Zezinho, o outro seu filho, algo morrera naquela noite, a minha avó Bia, amparada pela minha mãe rumava na manhã seguinte até ao Ministério da Defesa para ouvir de um FAPLA: “A senhora não vai ver nem as cinzas do seu filho, quanto mais o corpo”.
Por estes dias sinto o estranho peso das intermináveis dores de ouvido a desceram pela cana do nariz para se alastrarem pelo pescoço e de seguida deixarem-se cair sob os ombros. Os meus olhos a ferver, as mãos a limpar o suor a cair em bica e as lágrimas a molhar os lábios gretados. Dentro de mim algo me dizia que perdia novamente o meu pai Betinho e desta vez para sempre.
Dias depois recebo uma mensagem onde se podia ler no título: Filhas mais velhas de Nito Alves rejeitam ossadas duvidosas. O texto prosseguia: “Duas filhas de Alves Bernardo Baptista “Nito Alves”, terão também feito exigências quanto a autenticidade das supostas ossadas do pai, mas não foram atendidas pelas autoridades. As duas, que atendem pelo nome de Marília e Eunice Baptista decidiram distanciar-se do processo, e não participaram no acto de recolha de amostras para os exames de DNA.
Colocadas de fora, o governo angolano que deseja ver este assunto resolvido o mais breve possível, foi buscar uma suposta filha de Nito Alves, Olivia Santos.”
Pai, 45 anos depois e voltaram para enterrar-te ainda mais fundo
Ligo para Luanda para confirmar por fonte segura, através de uma órfã, as notícias que se publicavam acerca deste processo: “Sim, é tudo verdade. Eles praticamente chantagearam-nos para aceitarmos estar presentes na cerimónia da entrega das ossadas. Recusei que me usassem a mim e ao meu pai na encenação que mentaram para as eleições.”
No turbilhão das lembranças as palavras amontoam-se como areia em carros de mão que os homens despejam sem escutar cada sino dobrado a amplificar a dor como uma carruagem em descarrilhe. São as palavras de Pitoco gritadas à minha mãe enquanto encostava a arma dele ao pescoço dela: “Ou nos dizes onde é que está o teu marido ou ficamos com a tua filha”. E minha mãe, naquela força única a contar-me que respondeu: “Vocês são piores que a PIDE”. Ainda ouviu o gatilho da arma. Não temeu. Ao lado dela a minha tia Mena parecia-lhe mais ausente que nunca, ainda que sempre ali. Próxima. O pressentimento da morte é assim. Um vendaval na vida. Era urgente tirar-me de Angola, embarcar-me em qualquer avião para Lisboa e fazer-me desaparecer daquele cacimbo que se aproximava à velocidade das balas.
E dou por mim a cobrir-me na areia em que tu, pai, tombaste como tantos outros cravado de balas naquele ano de 1977. No meu Terço rezo as contas. A voz de Waldemar Bastos faz-se ouvir: “Não me perguntes quando volto porque eu nunca saí daí.”