E a apologia do santuário para americanos em Angola
O conflito na Ucrânia, cujo início tem como facto incontornável o golpe de Estado de 2014, que resultou na destituição do presidente Viktor Ianukóvytch, com as consequências daí advindas, tais como a ascensão do neonazismo que capturou as instituições ucranianas, a perseguição à população russófona, os 8 anos de ataques contra civis nas então províncias do Donbas, o fracasso dos Acordos de Minsk, até à operação militar especial russa, para além da sequência de gatilhos históricos já conhecidos, como a expansão da OTAN até às fronteiras da Rússia. A todos estes elementos, que não devem ser omitidos num exercício analítico que se quer honesto, é adicionada uma outra componente marcante, que é o facto deste conflito representar um profundo momento de revelação da essência, ou da “matéria-prima”, de que são feitas muitas figuras que ao longo de décadas foram aclamadas como verdadeiros intelectuais.
Para além de ter estimulado um súbito surto de revisionismo histórico e uma onda desonesta de relativização das consequências trágicas da colonização (e neocolonização) protagonizadas pelas potências europeias em África, bem como a omissão imoral das tragédias escancaradas nas acções dos EUA em diversas partes do mundo, cujas feridas ainda são visíveis, a guerra na Ucrânia também derrubou vários mitos do raciocínio contemporâneo, tanto em países europeus, como em Angola.
O mês de Agosto de 2023 podia ter começado sem nenhum facto extraordinário, até que o mais-velho Alberto Monteiro, a partir do Reino Unido, no seu esforço incansável de partilhar informações, me enviou um texto da lavra do escritor luso-angolano José Eduardo Agualusa, publicado pelo Globo, um dos órgãos de imprensa mais reaccionários do Brasil e do planeta. No seu texto, o referido escritor, celebrado em países como Portugal e Brasil (o mesmo que, no mais alto da sua presunção, teria classificado o Dr. António Agostinho Neto como um poeta medíocre), constrói uma verdadeira “pérola”, de tão forçado e contraditório que resultou o encadeamento das ideias, que tem como mote principal a visão segundo a qual “África deu aos russos o avô do seu melhor poeta. Vladimir Putin retribui com esmola de cereais, guerras, pilhagem e mercenários”. Numa verdadeira sopa de letras, o escritor procurou a todo o custo desvalorizar a importância e os resultados da última Cimeira Rússia-África ocorrida em São Petersburgo. Mas, a tentativa deu origem a algo risível, para dizer o mínimo.
Quando apresenta a síntese histórica sobre a descendência africana de Aleksandr Pushkin, o proeminente poeta russo, o escritor angolano e articulista do Globo refere, no seu texto, que Abram Gannibal, avô de Pushkin, tendo sido feito escravo pelos otomanos, teria sido resgatado pelo embaixador russo em Istambul, que posteriormente o enviaria para Moscovo, processo que culminou com o apadrinhamento do czar Pedro, o Grande, de onde veio o suporte para os estudos, o estatuto social e a família da qual Pushkin viria a ser descendente. Aqui reside a primeira contradição: não tivesse ocorrido o resgaste de Gannibal pelo diplomata russo, não tivesse o ex-escravo beneficiado do patrocínio do czar, teria existido algum Pushkin, um descendente de africanos na literatura russa? A afirmação de que foi “África que deu aos russos o avô do seu melhor poeta” pode ser válida única e exclusivamente no espaço semântico da poesia, onde é permitida toda a sorte de desvios linguísticos, mas, do ponto de vista do rigor histórico, trata-se de uma afirmação enganosa.
Durante vários séculos, os países do continente africano foram invadidos, explorados e colonizados por nações da Europa. Em muitas partes de África, as independências foram conquistadas a ferro e fogo. Foram independências obtidas por via da luta armada. Eram grupos de nativos africanos, muitos treinados por instrutores cubanos, ou instrutores autóctones preparados na China. Mas de nada teria valido esta boa intenção, se estes nativos africanos que lutavam contra potências da OTAN, que ocupavam militarmente territórios autóctones, não tivessem recebido armamento da União Soviética, da qual a Rússia era parte.
Dezenas de movimentos armados em África foram apoiados com armamento e assessores russos. Isto foi determinante. Mesmo depois de muitos países africanos terem obtido a independência, foram potências ocidentais, que financiavam e ainda financiam grupos rebeldes, que espoletam guerras civis e assassinatos que resultaram na morte de africanistas convictos. São os mesmos países ocidentais que têm mantido os países africanos amarrados às correntes das dívidas eternas e das “bulas” económicas impostas pelas instituições de Bretton Woods, colocam presidentes títeres no comando de nações africanas, alimentam políticas económicas que perpetuam a prisão da dependência externa e do lobby das exportações a que a maior parte dos países africanos está sujeita.
Mais de meio século depois, os países africanos não são autossuficientes do ponto de vista alimentar, mesmo possuindo vastas extensões de terras aráveis e várias fontes de água. Na acepção do escritor a que nos referimos, a Rússia é a culpada por esta situação. É necessário ter muita coragem para afirmar que, ao oferecer cereais aos países africanos mais afectados pela carência de alimentos, “Vladmir Putin está a retribuir com esmola”. Isto é de uma desonestidade intelectual sem precedentes. A Rússia não deve nada ao continente africano. Vladmir Putin não tem de retribuir nada ao continente africano, antes pelo contrário. O continente africano é que tem uma dívida enorme para com a Rússia. Uma dívida material e uma dívida moral.
O Ocidente financiou ou actuou directamente no derrube de sistemas de matriz socialista que vigoravam no continente africano. Experiências políticas e económicas que visavam dar primazia às soluções dos problemas das populações locais, adaptadas às realidades de cada povo, foram brutal e prematuramente abortadas por golpes e assassinatos aos líderes que as defendiam. Penso que até os alunos do ensino médio sabem quem foram os mandantes do assassinato de Patrice Lumumba. A CIA não é uma agência da Rússia. Uma pesquisa de Tahar Mansour (2021) enumera um total de 22 chefes de estado africanos assassinados a mando de potências ocidentais, com destaque para a França, de 1963 a 2011, que vão desde Sylvanus Olympio (Togo, 1963); Marien N’gouabi (Congo, 1977); Anouar El-Sadat (Egipto, 1981); Thomas Sankara (Borkina Faso, 1987); Juvénal Habyarimana (Ruanda, 1994); Ibrahim Baré Mainassara (Níger, 1999); Laurent-Désiré Kabila (RDC, 2001); Mouammar Gaddafi (Líbia, 2011), apenas para citar estes.
Em 2021, soldados de um país europeu, envolvidos na missão da ONU na República Centro Africana, foram apanhados a traficar ouro do país africano para a Europa. Depois da descoberta, uma mega investigação revelou a existência, nesse mesmo país europeu, de uma rede de militares que traficava, da RCA para a Europa, drogas, ouro e diamantes. Logo, falar dos soldados Wagner, que estão em alguns países africanos com base em contratos celebrados pelas autoridades políticas locais, e omitir as dezenas de bases militares da França e dos EUA espalhadas pelo continente africano com objectivos inconfessos; criticar a relação do grupo Wagner com determinados governos africanos, mas não citar as atrocidades e pilhagens praticadas, no Iraque, pelo Blackwater, um grupo de mercenários que nunca foi convidado pelas autoridades legítimas locais a estar naquele país; dizer que é Putin quem envia mercenários para África e esquecer-se dos treze mercenários ocidentais (9 britânicos, 3 americanos e 1 irlandês, incluindo o famoso Tony Callan) capturados e julgados em Angola em 1976, é faltar com a verdade de forma tendenciosa.
Ao contrário do que o referido escritor luso-angolano asseverou no seu texto “Global”, que a Cimeira Rússia-África não terá corrido bem, afirmação que pode ser interpretada apenas no quadro do desejo de uma mentalidade antiprogressista e pró-ocidental, com certeza que, o facto do escritor falar a partir de um lugar elitista e dirigir-se a um público que habita maioritariamente numa bolha composta pela oligarquia brasileira, o terá impedido de tomar ciência de que nesta última Cimeira Rússia-África, para além das inúmeras vitórias políticas granjeadas pelos Estados participantes, São Petersburgo revelou ao mundo um dos mais célebres discursos proferidos por um líder africano nas últimas décadas, que foi a intervenção de Ibrahim Traoré. Enquanto uns estão preocupados em agradar as elites brasileiras e portuguesas, o discurso de Ibrahim Traoré, a partir da Rússia, convenceu a larga maioria da juventude africana que se identificou com a imagem reflectida nas suas palavras. Se um país como a Rússia, alvo do maior pacote de sanções da história da humanidade, atacado de todas as formas e de vários lados, apesar de toda a pressão dos países ocidentais no sentido de convencer os africanos a frustrarem a iniciativa de Moscovo, ainda assim foi capaz de realizar uma Cimeira com Estados do continente africano, em que estiveram presentes 17 chefes de Estado (como o próprio diz), se isto não é uma demonstração de grande vitória diplomática e política da Rússia, que revela efectivamente que não é um país isolado, então, alguém fala uma realidade paralela.
O início deste mês de Agosto, no entanto, não pararia de me surpreender. Como faço com frequência ao sábado de manhã, ouvia um debate radiofónico numa das rádios de Luanda, quando, em reacção ao comentário de um dos integrantes do programa, que citara um ditado russo, que reza que “a quem dispara um tiro contra o passado, o futuro responderá com uma bomba”, citação que induziu para uma analogia da relação do actual governo de Angola com a Rússia, suscitando de seguida um misto de reacções bem humoradas e sarcásticas dos presentes. Foi neste contexto que, ao tomar a palavra, o economista angolano e professor universitário Heitor Carvalho afirmou discordar de que seja Angola que tenha dívida histórica com a Rússia, porque a Rússia, no seu entendimento, teria apoiado apenas um dos lados do conflito. Mas o economista foi muito mais longe, ao afirmar mesmo, em pleno espaço radiofónico, que tanto a Rússia como os americanos teriam contribuído para a guerra civil em Angola. Uma declaração extremamente grave, principalmente quando emitida por um professor universitário que, mesmo não tendo simpatia pelo partido que governa Angola (o que é de seu direito), não deve distorcer a história.
À medida que nos vamos desligando das bases políticas e históricas que fundaram o Estado angolano, o que venho observando é um aprofundamento dos níveis de degradação da razoabilidade e da coerência intelectual em Angola. Num primeiro instante, tal como já referi anteriormente, a URSS apoiou militarmente diversos grupos que combatiam o colonialismo europeu em África. Este apoio foi determinante para o nascimento dos Estados pós-coloniais no continente. Independentemente de quais os grupos que terão liderado posteriormente de facto os governos pós-independência, este facto não apaga a evidência histórica de que a URSS apoiou grupos de vários países africanos. No caso específico de Angola, apesar do facto da URSS ter estado mais próxima do MPLA, e ter sido o MPLA a formar governo logo a seguir à independência, ou seja, o facto de ter havido relações entre a URSS com apenas um dos lados do cenário político angolano, fará algum sentido afirmar que este apoio não foi prestado ao país? Quando afirmamos que Angola prestou um apoio determinante para o fim do apartheid na África do Sul, é óbvio que Angola não podia, em simultâneo, apoiar a luta do ANC e do Nasionale Party (NP). Trata-se de uma questão de raciocínio lógico, que é de se esperar de um intelectual.
Depois de 1975, a independência proclamada pelo MPLA, em Luanda, vingou interna e externamente, tendo Angola sido aceite no concerto das nações, nas tribunas internacionais, assumindo o estatuto de sujeito de Direito Internacional. Logo, quando o economista refere que tanto a Rússia, como os EUA teriam apoiado a guerra civil em Angola, trata-se de um revisionismo histórico e de um relativismo que peca pela inverdade factual. Se estávamos diante de um governo que combatia uma insurreição armada financiada por uma potência estrangeira (EUA), tendo este governo a faculdade de celebrar acordos para a obtenção de armamento junto de um país que é seu par, em termos das Relações Internacionais, no intuito de pôr fim à guerra civil (depois dos sucessivos fracassos da diplomacia), é gravemente errado afirmar que quem fornece armamento ao Estado nos termos de contratos celebrados, seja colocado em pé de igualdade com quem financia uma força rebelde envolvida numa insurreição ilegítima. Igualar o papel da Rússia ao dos EUA, tanto no contexto africano, quanto na realidade angolana, é faltar com a verdade histórica de forma grave, independentemente de se ter ou não simpatia pelo partido que governa Angola. Mas a história não pode ser falseada na tentativa de sustentar teses ou interesses que convêm actualmente a um determinado grupo.
Nem o escritor, nem o economista citaram a importância da ajuda militar prestada pelo oficial do exército cossaco, o russo Leontiev, ao imperador Menelik II, em 1895, na Segunda Guerra Ítalo-Etiópe, durante a batalha de Adwa. De igual modo, nenhum dos dois intelectuais angolanos terá citado, por exemplo, o artigo assinado por Caryle Murphy, publicado pelo Washington Post a 2 de Setembro de 1981, onde as autoridades da África do Sul do Apartheid celebram a captura e morte em combate de alguns assessores soviéticos que prestavam apoio ao governo angolano e às forças da SWAPO. No entanto, vale sempre recordar que, enquanto angolanos, namibianos, cubanos e russos morriam na luta contra o regime do Apartheid, em 1987, durante a votação na Assembleia Geral das Nações Unidas, que deliberava sobre a votação de um apelo internacional pela libertação incondicional de Nelson Mandela, 129 países votaram a favor e enquanto três países votaram contra a libertação de Mandela. Estes países são: os EUA (governo Reagan), o Reino Unido (governo Thatcher) e Portugal (governo Cavaco Silva).
As evidências históricas e provas factuais sobre quem, ao longo de séculos, tem efectivamente pilhado o continente africano, quem de facto tem retribuído com esmolas tudo o que vem sendo roubado do continente, quem tem fomentado guerras em África, e quem tem espalhado vários contingentes de mercenários camuflados em trajes oficiais, têm sido apresentadas por verdadeiros intelectuais, curiosamente, muitos deles pertencentes aos países agressores.
Georges Wright, no seu livro “A Destruição de um País – A política dos Estados Unidos para Angola desde 1945”, denuncia o papel da sua própria “nação” na desestabilização de Angola; Piero Glejeses, no seu livro “Missões em Conflito – Havana, Washington e África”, também estende um quadro histórico, que testemunhou ao longo de décadas, sobre quem foram os verdadeiros algozes de África e quem ajudou os africanos. A nível das relações entre o continente africano e o Ocidente, o autor suíço, que já foi relator especial das Nações Unidas, Jean Ziegler, no seu livro “O Ódio ao Ocidente”, fala sobre “a mentira da igualdade; a armadilha dos acordos e os reféns do sistema”; no quadro da verdadeira essência do sistema capitalista neoliberal e suas consequências, tanto para as populações trabalhadoras dos países centrais do sistema financeiro, assim como, e principalmente, para as nações do Sul global, John Perkins, autor de “confissões de um Assassino Económico”, revela quem são os enganados e decifra os sintomas da implosão do fundamentalismo do mercado. O facto de, mesmo com tamanho historial de destruição, países como os EUA ainda reivindicarem a bandeira da defesa da “democracia”, das liberdades e de um mundo baseado em regras, é explicado pelo que Noam Chomsky (ele próprio norte-americano, Professor jubilado do MIT e considerado o maior linguista do século XX), no seu livro “Mudar o Mundo”, classifica como “pensamento duplo”, o que considera como definição da cultura intelectual dos EUA, que por arrasto acaba por caracterizar a cultura intelectual colectiva do Ocidente e dos seus acólitos nos países periféricos. E o facto de, mesmo perante várias evidências, ainda existirem supostos intelectuais que defendem o imperialismo e o neocolonialismo com os quais as potências ocidentais dilaceram nações e povos no Sul global, Chomsky explica este fenómeno como consequência do que designa por “controlo das massas e controlo das mentes”.
Durante séculos, os países africanos foram submetidos a um modelo de relações de subserviência com as potências ocidentais, tanto a nível político, quanto a nível financeiro e económico. Se a ascensão económica da China, que ao contrário do que o economista angolano considera ser resultado da acção indirecta da economia ocidental, o que é uma flagrante contradição, na medida em que a China ultrapassou todas as economias da Europa, que, entre outros aspectos, sempre tiveram abertura de mercado, o que prova que o crescimento do gigante asiático está relacionado com o modelo político e exactamente com o facto do governo intervir na economia. Sim, e não o contrário, tal como é esgrimido pela economista italiana Loretta Napoleoni, na sua obra “Maonomics – Why Chinese Communists Make Better Capitalists Than We Do”.
Se esta ascensão representa uma estrada de possibilidades de afirmação de múltiplos polos de alavancagem de crescimento económico, no qual a Rússia e os países dos BRIC em geral têm um papel histórico, na construção de outros sistemas financeiros globais e de geração de plataformas de trocas comerciais mais justas para os Estados do Sul global, não precisamos de questionar de que lado devem estar os adeptos da emancipação dos povos oprimidos e explorados de África.
Em relação aos discursos sobre democracia e ditadura, embora se tenha constatado, mais uma vez, o típico equívoco em se definir o conceito de forma monocromática com as lentes da democracia liberal (que não é exclusivo), ignorando a existência da democracia popular, ocorrendo o mesmo em relação ao conceito de ditadora, que tem sido propositadamente conduzido para uma visão de senso comum que oculta a ditadura do capital, embora tenha sobressaído isto no debate radiofónico do qual o citado economista angolano fez parte, ainda assim, concordo plenamente com a opinião dos demais integrantes daquele painel, em relação ao facto de que, a premissa sagrada deve ser o bem-estar das populações e o desenvolvimento humano.
E não é verdade que nas democracias liberais exista a liberdade de se fazer o que se quer. Caso assim fosse, os EUA seriam o país com mais partidos políticos. Mas não é! Nos EUA, não basta a simples vontade de um colectivo de cidadãos de formar um partido político, por maior legitimidade popular que os mesmos tenham. Há 200 anos que a ditadura do capital não permite que uma terceira força política governe a “terra da liberdade”. Exemplo que pode ser válido para a situação nas “terras de sua majestade”. E ainda existe a confusão incessante dos adeptos do liberalismo, em relação aos conceitos de liberdade e de igualdade (formal e material). Mas isto era suposto ser apenas um parêntesis.
Enquanto cidadãos do mundo contemporâneo, temos testemunhado in loco o nascimento de uma nova era das relações entre os Estados, em que, mais uma vez na história da humanidade, a Rússia assume a linha da frente, tal como ocorreu para a aniquilação do projecto racista de Hitler. Hoje, combate-se a continuidade de um sistema imperialista atroz, que há séculos tem infligido as mais cruéis humilhações aos povos de diversas regiões não-ocidentais do globo. Enquanto inclusive a ultradireitista italiana Giorgia Meloni critica a França pela manutenção do neocolonialismo em África e pela repugnante e criminosa exploração dos recursos minerais do Níger, um escritor e um economista angolanos consideram que a culpa dos males de África é de Vladmir Putin e da Rússia, pois, para estes, e para alguns “intelectuais” angolanos, principalmente com fortes vínculos com a Europa, a salvação dos africanos está na veneração servil dos ditames germinados no jardim de Josep Borrel. Para estes, o jardim de Borrell e a crença inquestionável na “democracia liberal” são o caminho, a verdade e a vida.
Lamentavelmente para os dois compatriotas, existe uma outra África ávida por soluções locais para os problemas reais do continente. África é diversa. Logo, as receitas não serão iguais para todos os países. Para alguns Estados africanos, a estabilidade económica passa pelo estreitamento de uma relação de trocas comerciais com a China ou com a Rússia, relações que permitem intercâmbios com vantagens mútuas. Para outros, a segurança política e militar é mais bem garantida com um contrato de assistência técnica com o grupo Wagner. Felizmente, a maioria dos africanos tem memória. A maioria dos africanos não é ingrata, mesmo nos casos em que são governadas por títeres, as populações não esquecem quem esteve com África no passado e quem contribuiu para a nossa desgraça. Com certeza, o povo africano e angolano não aplaudiria a edificação de um santuário para americanos nesta terra.
Não existe nenhum mandato divino que determine que as potências ocidentais estão predestinadas a ter acesso privilegiado às possibilidades de cooperação (ainda por cima injustas) com as nações de África. Os africanos têm e devem ter o direito de escolher os seus parceiros comerciais e/ou militares, sejam eles asiáticos, euroasiáticos ou mesmo marcianos. Um novo homem africano renasce das cinzas. A prolongada fome de liberdade e de progresso faz ecoar um grito de revolta e a necessidade de novas revoluções mentais, sociais, culturais, intelectuais, políticas e militares. E nesta jornada, “lamento” informá-los que, assim como a Kalashnikov na bandeira de Moçambique, a história de amor entre a África e a Rússia persiste perene.
Luanda, 13 de Agosto de 2023.
*Analista de Relações Internacionais.
Excelente artigo! … cumprimentos ao autor.
A generalidade dos povos de África possui, hoje, um índice de literacia política bastante superior ao dos europeus. Espero que continue sendo assim, e que a memória histórica seja preservada.
Na Europa, hoje em dia, não é fácil a qualquer um escapar aos efeitos nefastos da intensa lavagem cerebral processada, sem descanso, através de uma comunicação social sectária, que falseia a verdade e aliena os cidadãos, e se limita a servir de altifalante ao discurso fabricado pelas agências especializadas anglo-americanas.
Esta guerra que (por enquanto) se desenrola em território ucraniano, foi cuidadosamente preparada ao longo das últimas três décadas (desde a implosão da URSS) pelos falcões belicistas dos EUA/OTAN, grandes especialistas, com vasto currículo no fabrico destas coisas. Ela começou a ganhar forma a partir de 2014 e é, de todas, a que tem objetivos mais arrojados e perigosos, pois destina-se, resumidamente, a submeter e desmantelar a Federação Russa, à semelhança do que foi feito com a Federação Jugoslava, com o Iraque, ou com a Líbia, por forma a disponibilizar as imensas riquezas, que o imenso território russo contém, ao saque dos oligarcas do império terrorista do ocidente.
A História diz-nos que a Rússia sempre foi um alvo para os oligarcas ocidentais. E, hoje, a ordem mundial concebida pelos falcões de Washington passa pela sua desintegração, qualquer que seja o sistema político que a governe e independentemente de quem seja o seu líder – o czar Nicolau, o comunista Stalin, o liberal Putin, ou uma matrioska qualquer. Embora nos queiram fazer crer que não é assim, fica claro que a questão não é o regime russo, ou o seu atual presidente. A questão é a Rússia como tal, porque a sua existência como grande país, detentor de grande poderio militar e de gigantescas reservas de matérias primas, é um obstáculo à realização da ordem mundial unipolar ambicionada por Washington.
Bravo!