POVO NA POBREZA, POBREZA DE GOVERNO

CONVERSA NA MULEMBA

Será que o TPE, com a ânsia de mostrar serviço a toda a velocidade, como disse no Cuando, não se deu conta de que estamos a viver no “fio da navalha” da sustentabilidade das finanças públicas, conforme denunciou o FMI no seu último relatório?

FERNANDO PACHECO

No dia 30 de Julho passado, o terceiro da onda de protestos que varreu algumas cidades angolanas, com larga predominância para Luanda, o Executivo reuniu e, entre outros temas, apreciou um decreto, divulgado a 8 de Agosto, que aprova o “ajustamento” do Programa Integrado de Desenvolvimento Local e Combate à Pobreza (PIDLCP).

Uma primeira leitura sobre tal decisão poderia sugerir que a mesma viria ao encontro do desejo do Executivo de dar resposta aos protestos da população. Se assim fosse, seria de esperar a divulgação do referido decreto com a usual e mal conseguida carga propagandística, complementada pelos exacerbados comentários do costume a exaltar a rápida decisão do Executivo e do líder, procurando, assim, dar corpo ao lema “trabalhar mais e comunicar melhor” que anda muito esquecido.

Porém, se tal tivesse acontecido, poder-se-ia dar a entender que o Executivo estaria a reconhecer uma causa dos distúrbios que não se coadunava com aquela que havia sido escolhida e depois “comprovada” com a prisão dos cidadãos russos – arruaças concebidas por inimigos externos e internos interessados em derrubar o governo.

Então, nada melhor do que não chamar a atenção para o “ajustamento”. Até porque poderiam aparecer os complicados de sempre a fazer perguntas inconvenientes: porque é que o Executivo se debruçou sobre o assunto da pobreza naquele dia? Quais as verbas que seriam alocadas para que as metas pudessem ser, digamos, minimamente realistas, se até agora, as verbas atribuídas aos diferentes municípios, sem distinção de número de habitantes e de pobres, ou de capacidade de execução, ou de outros custos, foram “inacebivelmente” as mesmas? E, porque, em vez de se falar de avaliação feita ao Programa que vinha de 2018, e que, ao contrário do Kwenda, não tinha, nem tem, visibilidade nenhuma, o Decreto refere capciosamente que “ao efectuar uma incursão nos instrumentos de diagnóstico, metodologia de intervenção, sistema de acompanhamento, monitorização, avaliação e divulgação dos resultados” se constata, entre outros aspectos, que “os programas tiveram um impacto e uma cobertura aquém do pretendido, em termos de benefícios e beneficiários”, e que “a atribuição e a frequência dos benefícios foram irregulares”?

Afinal, o ponto 26 do Decreto explica tudo: a dotação financeira mensal a atribuir a cada município corresponde a Kz: 25 000 000,00. É verdade que o total da verba a desembolsar anualmente pelo Executivo será superior ao da anterior, pois atingirá agora 300 milhões de kwanzas multiplicados por 325 municípios. Mas por que razão se insiste exactamente na mesma dotação de 2018, sem ter em conta outros indicadores, como o aumento demográfico e a inflação? E a última inoportuna pergunta poderia ser porque, no 1.º semestre de 2025, só foram atribuídas ao conjunto dos municípios apenas 1% das verbas orçamentadas para o período em questão, que, de acordo com o INE, corresponde a uma verba inferior ao custo das viaturas que o TPE ofereceu aos campeões africanos de basquetebol.

O PIDLCP é um programa errado na sua concepção, na sua execução e na sua gestão. É de desenvolvimento local, mas é concebido centralmente com uma abordagem totalmente “top-down”; como muitos outros, nada tem a ver com integração de acções; as suas verbas são frequentemente “desviadas” para outros fins, pois é praticamente o único programa em que o Administrador tem autonomia para tal; o aparelho de execução é extremamente frágil e os recursos estão muito longe de corresponder aos resultados pretendidos.

Não pode, pois, o Executivo pretender combater a pobreza desse modo. Na realidade, o modo como o Executivo se comporta permite pensar que não existe esse desígnio. O despesismo é um aspecto que desmente esse propósito desde sempre. Nenhum ministro, ou ninguém, tem a coragem de restringir o acesso à classe executiva em viagens aéreas, internas ou internacionais, pois é uma questão de “dignidade”. Finge-se que se reduz o aparelho de Estado e ele cresce ou mantém-se com despesas absurdas. Na semana em que se trataram de assuntos ligados à governação local e à pobreza, em Benguela, cada governador (ou a maioria) tinha ao seu serviço segurança, motorista, secretária e protocolo, cada administrador municipal quase o mesmo. Alguém faz contas a isso? Ninguém no Executivo tem coragem de confrontar o TPE sobre o dinheiro gasto com hospitais palacianos que depois não têm verbas para as despesas correntes mais elementares e aos quais as “mulheres com bébés-nas-costas” não têm o mínimo acesso? Dinheiro que poderia servir para outros fins não só na área da saúde como na da educação, que precisa, segundo a ministra, de 60 mil professores. Ou para concluir algumas das mais de 70% das obras paralisadas por falta de financiamento.

Será que o TPE, com a ânsia de mostrar serviço a toda a velocidade, como disse no Cuando, não se deu conta de que estamos a viver no “fio da navalha” da sustentabilidade das finanças públicas, conforme denunciou o FMI no seu último relatório? Tudo isto quando a produção de petróleo está a baixar e o seu preço no mercado internacional está abaixo do vermelho – 67 dólares o barril, quando as contas do OGE previam 70.

Não, um governo que olha com desprezo para a pobreza dos pobres e tem a coragem de ver alguns dos seus membros e adjacentes a fazerem uma espécie de concurso público, não já do tipo “o meu Mercedes é mais do que o teu”, como satirizava o nigeriano Nkwankwo Nkem nos anos 70, mas do género “o casamento da minha filha foi mais luxuoso e esplendoroso do que o da tua”, sem que alguém tenha a lucidez de dizer que “si acabó la diversion”, é um governo “incapaz de proteger os cidadãos vulneráveis e de travar a degradação do tecido social e produtivo”, como escreveu Carlos Panzo recentemente neste jornal.

E para que não digam que não falo de flores, no início desta semana, a sala da ADRA, incluindo a virtual, encheu-se para ouvir um compatriota que as curvas da nossa história atiraram para a diáspora, onde tem feito uma carreira a todos os títulos brilhante: António Costa Silva, que foi ministro da Economia de Portugal. Falou de Angola como angolano, com a simplicidade de quem é grande, mostrou estar por dentro de assuntos da terra, muito mais do que deveriam estar certos dirigentes nossos, mesmo quando os temas caíam para áreas estranhas à sua actividade profissional. Apontou metodicamente caminhos para que Angola possa sair da policrise em que se encontra: corrupção,educação, saúde, conhecimento e diversificação da economia. Diálogo e consensos. Longe da abordagem megalómana que nos atormenta, com respaldo na ética, na realidade interna e na descentralização. Com optimismo no futuro da Nação e no contributo da juventude.

Sim, saímos mais optimistas desse encontro.

*Novo Jornal, 19 de Setembro de 2025

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

PROCURAR