Não terá chegado a hora de suspirarmos e gritarmos em coro pelas autarquias locais?
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Há indicações de que Angola alcançou no antepenúltimo sábado, 14 de junho, uma enorme vitória no domínio da saúde pública. Um grande avanço na modernização do Sistema Nacional de Saúde. A notícia ecoou assim, vitoriosa, nos tons costumeiros. Passeou-se, vaidosa, pela comunicação social angolana. O facto aliou-se à modernização do Complexo Hospitalar de Doenças Cardiopulmonares Cardeal Dom Alexandre do Nascimento, em Luanda. Justificava-se plenamente a euforia, já que, se assinalava a realização da primeira cirurgia robótica transcontinental de prostatectomia radical, envolvendo angolanos. Um procedimento cirúrgico para remover a próstata, realizado à distância por um médico americano, o dr. Vipul Pate, a partir de um Hospital localizado na Florida, Estados Unidos da América do Norte. A uma distância de 11 000 quilómetros, o paciente de 67 anos, era operado à próstata em Luanda. Magistral. Um procedimento inédito. Um êxito rotundo e prestigiante.
Perante o inegável sucesso que coloca Angola no mapa da inovação médica global, pus-me a pensar. Comecei pelo que diriam os nossos mais velhos, os ancestrais. Como reagiriam os kotas que, libertos há muito desta vida descontente, se adiantaram a nós na partida, se acaso fossem confrontados hoje com uma notícia destas? Se nós mesmos, os que vamos lançando para o vento atoardas assentes em modernos descontentamentos, estamos a ficar de “boca pra nuca”?!
Não há dúvidas. A evolução do mundo obriga-nos a enfrentar estas coisas estranhas que vão acontecendo e que nos perturbam seriamente. Deixam-nos aboamados, literalmente aparvalhados! O meu espanto elevou-se ao quadrado, ao saber que três dias depois, o paciente já estava em casa, recuperando, sem problemas de maior.
“A operação correu bem”, disse aos jornalistas o dr. Masseca, director do Hospital Cardeal Dom Alexandre do Nascimento, um médico que não conheço pessoalmente, mas do qual guardo boa recordação. Em meados do ano passado, salvo erro, tive o prazer de falar com ele ao telefone, por causa de um problema delicado, relativo à saúde de um velho amigo. A sua atitude de então, humana e profissional, justificava que o felicitasse vivamente, pelo sucesso da intervenção robótica.
Contudo, uns factos não invalidam outros. A cirurgia ultramoderna realizada nos Estados Unidos não podia impedir que entrasse novamente, tal como fizera em anteriores ocasiões, no âmago do sensível campo da saúde pública em que vive mergulhada a nossa população.
Nestas circunstâncias, questionei, logicamente, a base do agora elogiado Sistema Nacional de Saúde, face ao êxito da dita cirurgia realizada na Florida. Haveria, finalmente, novidades na precariedade do nosso Sistema? De concreto e ao que sabia, não havia nada. A menos que estivesse distraído! Tendo, por diversas vezes, abordado o tema nesta coluna, não me dei conta de nada que alterasse o vazio existente na assistência primária à saúde do nosso povo!
De qualquer modo, a operação ultramoderna realizada a partir dos Estados Unidos, não deixou de me fazer meditar sobre o grande problema que estamos com ele. Sem dúvida, a dificuldade da introdução nas nossas comunidades, de acções abrangentes no domínio da saúde pública e de outras que lhes são inerentes. Contudo, tais obstáculos não se justificam, diga-se de passagem, se tivermos em conta, a ligeireza com que nos envolvemos noutras empreitadas bem mais complexas e dispendiosas, e certamente de menor impacto social.
Por essa e outras razões, tento, persistentemente, fazer valer o direito que me assiste de levantar dúvidas. Esta é pertinente: Como é que se consegue esse extraordinário êxito e não se alcança, no mínimo, a intenção – ao menos a ideia, meus senhores – de coisa bem mais fácil? Como não programar, pelo menos isso, um combate sério às lixeiras e, consequentemente, a erradicação do paludismo, da febre tifoide, da cólera e se melhora a assistência médica às populações?
Nesta fase de vida em que tudo o que acontece à nossa volta merece alguma reflexão e análise, sinto que tenho tempo para isso, o que não quer dizer que me sobre espaço para apaparicar erros ou tolerar absurdas incompetências. Nunca serei injusto com quem não deva, e jamais me considerarei um tipo diferente dos outros. Tento ser apenas um cidadão que no auge da sua indignação se sente no direito de perguntar: afinal, o que é que está a acontecer connosco? O que se passa aqui, afinal de contas?
A verdade está aí e não pode ser negada. Quem deveria responder por estes erros crassos (funcionários municipais de todos os níveis, incluindo os que têm voz no Conselho de Ministros), não têm noção das suas incapacidades, não se incomodam com o ciclo de violência que magoa a população, não sentem o peso do ridículo trabalho que realizam, da nenhuma serventia dos espaços que lhes foram confiados para cuidarem e melhorar a vida dos munícipes. Sejamos francos, senhores políticos. Não terá chegado a hora de suspirarmos e gritarmos em coro pelas autarquias locais?
Nada mais me resta dizer, senão remeter, para além do grito contido na epígrafe desta crónica, o reforço do brado que ecoa, todos os dias, no meio de nós. Aproveito ainda o momento para recordar uma célebre frase de um homem admirável: José Mujica, o malogrado ex-presidente do Uruguai: “O pior inimigo de um pobre é outro pobre que se acha rico e que defende aqueles que os tornam pobres”.
Sem mais assunto que valha a pena, envio as minhas habituais saudações, enquanto aguardo pelo nosso encontro que terá lugar aqui mesmo, no próximo domingo, à hora do matabicho.
Fernão Ferro, Portugal, 6 de julho de 2025