O 11 DE JULHO, O KILAMBA E A TRANSIÇÃO PARA A INDEPENDÊNCIA

Estas escolhas estão alinhadas com a continuada ausência de estratégia por parte do partido no poder e do seu governo e com o carácter errático da governação que, por sua vez, resultam da recriação do quadro institucional político e económico do passado gerador de instituições extractivas, que visam extrair os rendimentos e a riqueza de segmentos da sociedade para benefício de elites, reproduzindo a desigualdade, a pobreza e a exclusão global crescentes em Angola.

FERNANDO PACHECO*

Para o meu saudoso filho Hayleka, no seu 47º aniversário

No dia 11 de Julho de 2011, o então Presidente José Eduardo dos Santos inaugurou a centralidade do Kilamba com a pompa habitual. Era o início do cumprimento da promessa de construção de um milhão de casas para resolver os problemas de habitação no país, no âmbito mais geral do ambicioso e mirífico projecto de modernização acelerada de Angola adoptado pelo MPLA desde muito cedo, e cuja implementação tem sido adiada pela guerra, por más escolhas políticas, pelas frequentes descidas do preço do petróleo, sem que alguém preste atenção aos clamores de quantos têm avisado da nudez do rei e para a necessidade de este olhar à sua volta. 

Um ano depois, a BBC divulgou uma reportagem sobre a centralidade mostrando as suas ruas assustadora e penosamente vazias, que mereceria o título “Cidades-fantasma chegam a África”, e motivo de gozo jornalístico. O então director do Jornal de Angola não se fez rogado e publicou um violento editorial contra o, ou a, jornalista, com os habituais insultos, o menor dos quais era o de mentiroso, pois, segundo ele a centralidade estava vibrante com os seus alegres moradores. Azar o do director, pouco tempo depois o ex-Presidente deslocou-se ao Kilamba e, claro, viu o mesmo que o, ou a, repórter da BBC havia visto, uma cidade vazia, e tomou medidas que permitiram, então, sim, que a centralidade passasse a ser habitada. Nada que fosse novo: a mentira do Jornal de Angola, a estratégia de desenvolvimento pecaminosa, a abençoada intervenção “superior” e mais um descaminho de fundos públicos para os bolsos de certos políticos-empresários. Pelo meio, uma dívida de, diz-se, mais de três mil milhões de dólares a uma empresa chinesa que, diz-se também, ainda não foi totalmente paga, e uma cidade satélite que já não pode ser mostrada aos ilustres presidentes visitantes, como foi no início, como a inovadora solução para o problema habitacional em África, pois, para além da ausência de equipamentos e serviços, dos problemas de gestão, de viciação de contratos, de manutenção dos edifícios, e tudo o mais, os habitantes têm de conviver com o cheiro nauseabundo derivado da ausência de saneamento. Diz-se que a centralidade, 13 anos depois da sua inauguração, pode desabar devido aos inúmeros erros de construção, de fiscalização e de uso.

Como é apanágio, para não dizer vício, do Executivo, esse descalabro não mereceu uma avaliação nem uma “inspenção” de qualquer dos muitos órgãos de tutela e de regulação do uso de fundos públicos. E voltaram a ser construídas novas centralidades quase sempre com os mesmos defeitos (se assim não fosse, os exemplos apresentáveis ser-nos-iam mostrados pela TPA como exemplo da Angola a crescer) e sobretudo com o mesmo tipo de gestão caótica: vendas, quando não simples “entregas”, sem critérios definidos e frequentemente favorecendo quem não precisa, pagamentos de rendas exorbitantemente atrasados sem quaisquer tipos de penalizações.

No início da era João Lourenço foi decidido acabar com o modelo, mas, entretanto, aproximaram-se as eleições e ficou assim, mas agora, sim, o modelo será eliminado a favor da construção privada e da auto construção. Até que 2027 surja no horizonte. E com isso, apenas cerca de 30% do milhão de casas prometidas foram de facto construídas.

Ah, mas pelo menos as centralidades estão aí, os mal dizentes é que se recusam a ver! Ah, dizem, por sua vez, os ditos mal dizentes, e o dinheiro que poderia ter sido poupado e encaminhado para casas sociais e outros equipamentos igualmente prioritários se tivessem havido outras escolhas na construção? E o erro colossal de não se ter aproveitado o vento para a criação de uma indústria de materiais de construção robusta? E, tanto mais haveria a dizer…

A última semana trouxe, para além do aniversário do Kilamba, uma mini remodelação do Executivo. Uma vez mais os cidadãos não puderam saber as motivações das ditas, porque quem de direito, apesar das promessas nos bons tempos, não os valoriza a ponto de os manter informados sobre assuntos relevantes, e porque a comunicação social não tem a competência nem a permissão para ouvir os analistas de diferentes quadrantes sobre o assunto. O que foi dado ouvir foi que o Titular do Poder Executivo, ao nomear as novas governadoras mostrou ter um profundo conhecimento dos quadros a todos os níveis. O que não permite perceber a prática de se nomearem ministros, não por competências que se ignoram, mas pelo facto de se terem destacado pelo modo como defenderam o partido no poder nas suas prestações televisivas. E, assim sendo, o número de flops vai aumentado, como se tem vindo a verificar – o que põe em causa o tal profundo conhecimento e a política de quadros que se supõe existir. Mais uma vez se verifica entre nós a bondade das ideias de Noam Chomsky, o intelectual americano que ousou listar as estratégias de manipulação da sociedade através da comunicação social, como, por exemplo, a estratégia da distracção, que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e económicas; a das decisões impopulares apresentadas como necessárias seguidas de doses de propaganda para fazer crer que “tudo irá melhorar amanhã”; ou a utilização do aspecto emocional para implantar ou ideias, desejos ao invés de se promover a reflexão. Ou ainda a promoção do vulgar, do inculto e da mediocridade. É isso o que se vê na nossa comunicação social, onde a justificação para o investimento em novas instalações públicas visa mais a dignidade do que a funcionalidade da instituição.

Estas escolhas estão alinhadas com a continuada ausência de estratégia por parte do partido no poder e do seu governo e com o carácter errático da governação que, por sua vez, resultam da recriação do quadro institucional político e económico do passado gerador de instituições extractivas, isto é, que visam extrair os rendimentos e a riqueza de segmentos da sociedade para benefício de elites, reproduzindo a desigualdade, a pobreza e a exclusão global crescentes em Angola. Enquanto não forem substituídas por instituições inclusivas, que visam o oposto, instituições que conformem um Estado enraizado na cultura e na idiossincrasia dos povos que fazem a Nação angolana, um Estado capaz de providenciar serviços a todos os cidadãos e não exclua o “povo” sem sequer os seus dirigentes se preocuparem com isso, enquanto isso não acontecer, o grande desafio da modernização e do desenvolvimento será uma miragem.

Neste 11 de Julho passaram-se 50 anos do acontecimento que considero ter despoletado a desastrosa transição para a independência. Nesse dia, um taxista apareceu morto na estrada da Cuca. Não era acontecimento inédito, pois essa classe profissional, exclusivamente integrada por portugueses, era afoita a negócios ilegais, principalmente de tráfico de diamantes ou kamanga, o que por vezes ocasionava ajustes de contas violentos. Mas, nesse dia, um grupo significativo de colegas – convém dizer que entre os taxistas havia muitos informadores da tenebrosa PIDE – decidiu usar o pretexto para atacar a população negra dos musseques, como em 1961, e assassinou centenas de pessoas. Mas, dessa vez, a população contra atacou nos dias seguintes e queimou e expulsou os comerciantes – todos portugueses – dos musseques. Ao mesmo tempo, os angolanos que serviam no exército português fizeram uma marcha de protesto contra os massacres, o que despoletou mais ódio e mais mortos e feridos junto do actual Ministério da Defesa. A partir daí, nada voltou a ser como anteriormente.

*Novo Jornal, 19.07.24

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