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A meio da segunda metade da década de cinquenta do século passado, teria uns quinze anos, já eu trabalhava sem horário, feito um valente rapaz. Distante do ambiente familiar, no interior do Libolo, ao balcão de uma loja onde se vendia de tudo. Fuba e peixe-seco, sal, enxadas, petróleo, panos, roupas de fardo e aguardente, entre outras coisas. Aprendi a servir batatas cozidas com bacalhau para os camionistas que passavam e estacionavam na estrada, em frente à porta da loja, para almoçar ou jantar. O meu patrão era um português que prestara serviço militar na Índia e tinha a mania que era cow-boy. Só usava calças justas e calçava botas à mexicana. Tinha muitas ambições, queria ser rico e fazia tudo para ganhar dinheiro. O homem até se armava em enfermeiro e aplicava injecções, utilizando vários medicamentos. Ainda me lembro de um deles, a “atebrina”, cujo uso punha as pessoas com a pele amarelada. O remédio era preparado com uma mistura de água destilada e, à aplicação das picas, precedia um pequeno ritual. O aquecimento da caixa metálica das seringas e das agulhas para as esterilizar, seguida do acto de esfregar fortemente com as mãos as ampolas dos milongos.
Um belo dia o homem adoeceu. Pediu, melhor dizendo, ordenou que eu lhe aplicasse uma injecção. Nunca me tinha atrevido e para além de não ter jeito para a coisa, sempre fui sensível à dor, aos ferimentos, ao sangue. Sem habilidade para desempenhar a tarefa, não foi fácil espetar a agulha na nádega do homem que escaldava em febre. Mas, aconteceu um facto curioso. Pela primeira vez na minha vida, senti naquele momento, ter poder para lhe fazer uma maldade. Veio de mim um prazer malandro, de algum modo mórbido, ao ouvi-lo gritar, uma, duas, três vezes, tantas quantas as tentativas falhadas de aplicar a injecção. Senti esse prazer porque ele era um indivíduo bruto, violento, mau como as cobras. Batia sem dó, surrava com chicote de cavalo-marinho os negros das sanzalas, seus clientes, se não pagassem na hora certa, com dinheiro ou géneros coloniais, as dívidas que contraíam na loja.
Lembro e conto este episódio da minha vida para recordar que o meu convívio com pessoas insensíveis, más, brutais, não é de hoje nem de ontem, vem de muito longe! Lembro-me, volta e meia, de alguns desses tipos. Quase todos acabaram mal, traídos pela própria vida, desiludidos, pobres e isolados. É geralmente triste o fim dessa gente! Curiosamente, foi nessa época difícil que se registou o meu contacto mais adulto com os livros e a leitura. Foi nesse período e nos poucos momentos de lazer que me proporcionava esse homem. Não se sonhava ainda com a televisão, longe estava ela. Aos domingos à tarde, por volta das dezasseis, permitia que eu me equipasse com a minha camiseta do Vasco da Gama da Cabuta, calçasse as botas com traves e fosse para a estrada mostrar habilidades com os jovens da sanzala. O Félix era um portento, o Sacudido não lhe ficava atrás. Depois de me lavar ia para a sala onde o homem recordava tempos duros da sua juventude em Portugal, nas poeiras das minas de volfrâmio. Foi nessa altura que me dediquei a ler. O homem tinha num armário alguns livros e lembro-me de um, particularmente, porque foi o primeiro livro grande que li. “O pajem da duquesa” de António de Campos Júnior. Seguiram-se alguns outros, principalmente de uns autores espanhóis, recordando que o cenário de um deles era o submundo da cidade de Cádis. No me quartito do fundo do quintal, comecei a descobrir o mundo lendo esses livros.
Apareceram depois as várias colecções da Agência Portuguesa de Revistas, que publicava autores especializados em amor, aventuras, cinema, cowboyadas, dramas e também a investigação que elevava a força do FBI e dos seus agentes, os melhores do mundo. Fantásticos, fabulosos, heróicos. Depois de tantos anos passados, o título e o nome do personagem principal de um desses livros, “Vidas Repelentes” e Varka Maras, respectivamente, vieram-me hoje à mente. Envolvidos num mundo de crime e maldade e muita gente má. Figuras que me remeteram à actualidade, como se o ontem fosse hoje. Ah! Como este mundo é maravilhoso, já nos dizia Louis Armstrong no seu imortal What a wonderful word. E, de repente, pequenos sinais alertam-me para o estado da minha memória. Acho que, por enquanto, não me devo preocupar com ela.
Hoje, domingo, é dia consagrado a Iemanjá, a Rainha de todos os mares e oceanos. O 2 de Fevereiro era também o dia da minha saudosa irmã, Carmen Marília. Recordando-a, saúdo os meus amigos e leitores, aguardando por todos no próximo domingo, à hora do matabicho.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2025
P.S.- Registo com tristeza a partida do Cirineu Bastos. Um homem de cultura, uma figura ínclita da cidade de Luanda. Teve o seu tempo e a sua banga, referiu uma amiga. Morreu o preto mais bonito de Angola. Falava assim de si mesmo. Que descanse em paz!
Belas historias amigo.Acompanhoas sempre com interesse devorador.Estarei sempre atento
Aquele abraco