Sonho e acção: Homenagem ao escritor Manuel Rui

Por Óscar Monteiro

No princípio dos anos sessenta, um grupo de jovens angolanos, nacionalistas aguerridos, veio estabelecer-se numa residência autogerida, o Kimbo dos Sobas, em frente da nossa República. Conhecia vagamente alguns deles da Faculdade de Direito entre os quais o Aníbal Espírito Santo e o Manuel Rui. Estavam também o Fernando Martinho das Medicinas, o Eurico Gonçalves e o Roberto Leal Monteiro, mais tarde Gongo.

O MPLA já́ existia e estendia a sua rede entre os estudantes alguns dos quais vieram a sair de Portugal na conhecida saída em massa de 1961. Mas tinham deixado raízes algumas das quais como o Orlando Rodrigues e o Manuel Balonas na nossa República, e tu Manuel Rui com mais quatro colegas do Kimbo que são presos por ligação ao MPLA. No aniversário da nossa República, fundada por angolanos, o aniversário à moda coimbrã̃ era denominado “centenário” convidavam-se todas as outras. Recordo uma de comunistas, o Prá-Kys-Tão e outra de monárquicos, o Pagode Chinês. Coube-me tomar a palavra na ausência dos mais velhos, presos. Recordo que deliberamos afrontar o problema de frente: “o momento é triste porque temos colegas presos, mas estamos orgulhosos disso” foi o mote.

Digo isto porque os acontecimentos de 1961 estavam ainda frescos: em 1961 tinha havido o 4 de Fevereiro, mas também o 15 de Março com a chacina de fazendeiros brancos e trabalhadores negros ditos os fiéis bailundos na propaganda portuguesa com um estendal de exposições com imagens chocantes que haviam criado horror e uma reacção “patriótica” na opinião portuguesa com reverberações no seio dos estudantes. Ser nacionalista angolano era um acto de coragem, mas não só́. Exigiu acção junto dos colegas, um redobrar de esforços e talvez isso tenha tido algum efeito no papel que os colegas recrutados para a guerra colonial acabaram por ter a bem longo prazo no seio das forças armadas.

Sublinho acção porque esta é uma questão que se coloca às novas gerações. Tu próprio Manuel Rui me pediste a explicação da qualidade dos debates a que vens assistindo entre analistas moçambicanos e que acompanhas pela televisão. A minha tentativa de explicação começa por uma inquietação: o que nos levou a nós e à geração que nos precedeu e mais tarde nos seguiu a passar à acção, rompendo um véu de conformismo, da impossibilidade de mudança, de resignação que a todos envolvia. Terá́ sido sem dúvida a conjuntura mundial, o novo equilíbrio de forças saído das grandes confrontações planetárias, o impulso das independências na Ásia e mais perto de nós em Africa que ocorriam perante os nossos olhos. Do Congo de Lumumba veio a angústia, a revolta, mas também a convicção que as nossas independências eram mais do que isso.

Éramos jovens e sonhávamos. Não por acaso a poesia nos envolvia. Mais do que um texto, um panfleto ou as leituras, foi a poesia que nos fez sentir e agir, um agir que permanece no nosso íntimo a despeito da passagem dos tempos. Eu devo-vos muito.

Esse sentir poético que começa na geração anterior dos Netos e dos Marcelinos fundou o internacionalismo nas colónias portuguesas. A expressão internacionalismo está historicamente ligado à grande revolta social dos movimentos de classe mundiais. O nosso internacionalismo fundou-se num sonho partilhado de liberdade e justiça, nomeadamente justiça para o povo, não tanto ou não apenas na comunidade de língua e de inimigo. Já́ o P do MPLA o prenunciava.

E foi nesses sentimentos que se fundou a estreita ligação entre Angola e Moçambique cujas belas páginas vale a pena hoje recordar. O povo moçambicano sob a impulsão de Samora a dedicar um dia de salário à escala nacional para apoiar Angola, os artilheiros do PAIGC a apoiar a defesa de Kifangondo, e por duas dezenas de anos, vocês nessa costa e nós daqui, a apoiar e pagar um pesado preço para a libertação da África Austral.

E hoje como prosseguir o sonho, já́ como Estados? O nosso poeta Jorge Rebelo pergunta-se “em que curva do caminho os nossos passos se perderam”. Não me cabe falar por todos. Mas eu encontro esse filão na geração da independência, alargada a milhares de cidadãos devotados que mantiveram os nossos estados, jovens recém-saídos da escolas e universidades, no combate físico e no combate pela organização das coisas boas para o povo. Retomando a questão dos debates sobre a qual me questionas, também aí encontro esse filão de humanidade e amor pelo povo.

Esse sonho não terá́ esses mesmos contornos, os modelos não são os mesmos, nem tudo correu bem. E hoje, o dinheiro multiplicou-se de forma exponencial, tanto na riqueza produzida como no dinheiro inventado pelos sistemas financeiros, domina tudo. Mas o filão subsiste em noções intemporais como na defesa do bem público que fundamenta e só́ ele legitima o poder. Servir. Governar merece-se.

Sabemos que as organizações têm o seu ciclo de vida, elas ficam ameaçadas quando se tornam o caminho para benesses e privilégios. É um preço do poder. Mas não é inevitável que seja assim enquanto ensinarmos às crianças “como se ganhou uma bandeira”, enquanto houver pessoas como tu, cuja constância sem peias, com um inconformismo sempre inspirado e permanentemente renovado nos animarem. Enquanto houver jovens e não jovens impelidos para a acção. Agir não é apanágio de gerações excepcionais, pessoas comuns mudam o mundo.

Agora que se aproxima a nossa inexorável saída de cena, vale a pena dizer que a sorte, ou o momento, ou os nossos mais velhos, nos bafejaram com uma imensa felicidade: a de sonhar e de fazer. Não é dado a todas as gerações. E socorrendo-me dos versos de outro poeta, o nosso Vinícius, digamos dessa bênção, que ela “não seja imortal posto que chama, mas que seja infinita enquanto dure”.

(Nos 80 anos de Manuel Rui) Matola, 4 de Novembro de 2021

One Comment
  1. A desgraça é pensar que gravata e carro preto faz mesmo pessoas importantes

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