NO PAÍS ONDE TUDO É (A)NORMAL

Os problemas de uma nação podem ser comparados com pequenos buracos numa estrada. Se não houver intervenção, tornam-se grandes, o impacto e os estragos que causam são superiores e a solução torna-se mais difícil e onerosa. No fundo, é isso que acontece todos os dias em Angola. 

POR RAMIRO ALEIXO

Decorridos quase 50 anos de independência, 20 dos quais já em paz, em Benguela, segunda praça económica, mas de forma geral em todo o país, não se consegue emitir uma carta de condução na hora ou ao fim de trinta dias, porque a aquisição dos consumíveis é feita apenas pelos órgãos centrais em Luanda, mas eles não enviam para as suas representações provinciais, alegadamente porque faltam recursos. E fala-se em desconcentração de políticas e de exercícios de gestão, e agora até mais, para justificar a nova Divisão Política e Administrativa e proximidade de serviços.

Como resultado, o cidadão que paga ao Estado por via da Direcção de Trânsito e Segurança Rodoviária, órgão do Ministério do Interior e da Polícia Nacional, a quantia de 40.050,00 Kz (quarenta mil e cinquenta kwanzas) pela prestação de um serviço completo, recebe apenas um Verbete Provisório para Condutor, com validade de 30 dias, prorrogáveis por vários meses e até anos. Entretanto, nesse período, o cidadão é obrigado a deslocar-se periodicamente à representação da Direcção de Trânsito e Segurança Rodoviária, para averbamento do respectivo carimbo e assinatura do chefe da repartição, sob pena de estar a cometer uma infração, prevista e punível ao abrigo das leis de trânsito e da interpretação rigorosa do agente, outro beneficiário do sistema, por imposição de uma outra lei, aquela… a da gasosa.

Ora, o mesmo Estado, ou se quiserem, a mesma Direcção de Trânsito e Segurança Rodoviária, que actua em representação do Estado, que é incompetente na realização integral da prestação de um serviço público que é pago pelo cidadão, é o mesmo (Estado/instituição) que depois manda os seus efectivos p’ra rua, a fim de interpelarem, sancionarem ou extorquirem (opção comparticipada) o cidadão, que por alguma razão perfeitamente justificada, não fez a revalidação do dito cujo verbete no prazo devido. Até porque não é normal andar a carimbar documentos oficiais por anos a fio, como já aconteceu com livretes de viaturas.

Como é óbvio, estamos diante de um comportamento que não só desqualifica o próprio Estado porque se coloca numa situação de incumpridor, mas, facto para mim mais grave e intrigante, de indevida responsabilização do cidadão por um incumprimento a leis evocadas pelos agentes, mas que tem o incumpridor perfeitamente identificado logo no início do processo, porque mesmo sabendo da sua incapacidade, continua a prestar um serviço cujo resultado é a arrecadação de receitas para o Estado incumpridor. Mas a máquina só se apega e castiga o ente final.  

Se essa questão se pusesse num desses países onde se respeitam direitos do cidadão, mereceria debate aceso ao nível da comunicação social, do Conselho de Ministros, da Assembleia Nacional enfim… de todos os envolvidos na defesa dos interesses do Estado e do cidadão, porque na verdade, o fim último da prestação do Estado, é o serviço competente e qualificado ao cidadão. 

Mas o que se passa com as cartas de habilitação de condução, é só a ponta de um iceberg enorme e visível ao nível de quase todos os procedimentos administrativos a cargo do Estado, que não acompanha a evolução do sector privado, como é o exemplo da banca comercial. Hoje, em qualquer balcão de um banco, mediante a apresentação do Bilhete de Identidade, podemos obter na hora, ou num máximo de 24 horas, um cartão que nos dá acesso aos multicaixas, mas também para efectuar transações financeiras internacionais. E se a partir de fora, um cidadão estrangeiro não consegue efectuar, pela mesma via, o pagamento de serviços em Angola, a culpa também é do próprio Estado porque mesmo necessitando de recursos não investe na alteração dessas barreiras sobretudo técnicas. Até para a entrada de dinheiro no país é uma complicação muito grande. Parece brincadeira, mas é verdade…

A conclusão a que se pode chegar, é que quem governa o Estado percebe pouco dessa matéria, está a enganar-se e a enganar-nos, e certamente continuará a ter dificuldades de perceber, que a sua intervenção em quase tudo, é prejudicial para o bom funcionamento da economia e da prestação de serviços competentes ao cidadão. E deveria analisar o caso da implantação de novas chapas de matrículas, que em vez de um negócio promíscuo, deveria ser limpo e extensivo à outros domínios de intervenção do Ministério do Interior, que está provado, tem um desempenho assente em muitas práticas que descredibilizam o Estado diante do cidadão.

Se me perguntarem de quem é a culpa, é claro que não atribuirei ao Presidente João Lourenço, nem ao modelo de gestão danosa do MPLA ao longo desses quase 50 anos, 20 dos quais, já não têm como justificação a guerra. Mas também não posso dizer que é nossa, de cidadãos comuns, porque a parte que nos cabe, que é pagar, fazemo-la e às vezes com sacrifícios enormes, financeiros, de tempo e até de falta de conforto na acomodação no interior das instituições, onde nem de um copo de água ou de uma casa de banho decente podemos beneficiar. Mas o pagamento por esses serviços, por si só, deveria significar a existência de um contrato com uma entidade pública, faltosa, que ainda pune quem lhe paga. 

Claro que não é justo. E nem adianta também dizer que a culpa é do Comandante da Polícia Nacional, porque vai dizer que não tem verbas nem tem autoridade para alterar a Lei; nem do ministro do Interior. Conclusão: a culpa, para não variar, é sempre do cidadão, o que também é verdade, porque é ele quem vota na continuidade que há muito está mal, insistindo ele próprio na manutenção do que não está bem.

Qualquer um de nós sabe que um país não se constrói só com obras megalómanas. Sabe que esse processo que exige comprometimento, persistência e rigor deve ter início, sobretudo, pegando na resolução de coisas pequenas, para desbravar caminho que conduzam à grandes. Mas também, que é impossível fazer tudo de uma só vez. Exactamente por isso e para merecerem o nosso respeito, deveriam então pegar e resolver pelo menos um problema pequeno por mês, por trimestre, por semestre, ou por ano. Mas resolver mesmo. 

Os problemas de uma nação podem ser comparados com pequenos buracos numa estrada. Se não houver intervenção, tornam-se grandes, o impacto e os estragos que causam são superiores e a solução torna-se mais difícil e onerosa. No fundo, é isso que acontece todos os dias em Angola. Alguém perdeu a capacidade de ver a largura e a profundidade dos nossos buracos quando eles eram ainda pequenos, porque a existência deles passou a ter identidade de normal. Daí até a ‘sã’ convivência com o lixo e a incompetência, foi um simples passo.

Mas será que tudo anda mal em Angola? É claro que não. Existem também bons exemplos. Estive recentemente numa dependência do Guiché Único da Empresa e fiquei maravilhado com os procedimentos, a celeridade e acima de tudo, com a qualidade do atendimento e com o trato dos seus funcionários. Apesar de não ser tão refinado, pelo seu carácter e espírito de certo modo militarizado (e pensam que todos nós usamos farda e vivemos num quartel), o atendimento que nos é dado também pelos efectivos da Direcção Provincial de Trânsito e Segurança Rodoviária, dentro das limitações que têm, é bom. O que falta lá, depende de Luanda. É sempre de Luanda… é sempre de Luanda…

Alguém acredita que nesse ambiente alguma coisa mudará com a nova Divisão Política e Administrativa? Eu não, nem mesmo aqueles que na Assembleia Nacional e fora dela, tentam fazer crer que sim!

Vamos completar meio século de existência, as instituições do Estado continuam a não inspirar confiança porque não se consegue distinguir os interesses do Estado dos interesses de quem serve o Estado. Nem mesmo nos sentimos seguros, quando estamos diante de um agente da Polícia Nacional. Porque diante deles, a percepção que se tem é que vai começar um problema, porque na verdade, pouca coisa vai bem. Ou seja, as faltas de quem não organiza o Estado, passam a ser da responsabilidade do cidadão.

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