
A sala da Livraria Sá da Costa, ao Chiado (Lisboa), foi pequena para albergar cerca de 120 pessoas que atenderam à chamada do escritor Arlindo Jacques dos Santos, o nosso Mwadyakimi Jacques, para o lançamento do seu novo livro, Fabuloso Mundu Iêtu.
Nesse final de tarde lisboeta de quinta-feira, 25 de Setembro, Dia Mundial do Sonho e do início da Luta Armada de Libertação Nacional de Moçambique, desencadeada pela Frelimo, o acontecimento à volta do livro, do seu autor e de boa música angolana na voz e arte do intérprete e compositor diáspórico Chalo Correia, transformou-se num belo momento de interação geracional, de nacionalidades e intelectual.
Momento de sonho com consciência da urgência em atender o clamor de um Povo que anseia por um país diferente e melhor, e de (re)afirmação da necessidade de continuarmos a lutar para que se materializem os sonhos de ontem e de hoje, por liberdade com dignidade.
Sonhos em tudo diferente dos da Nação Wakangu (palco central da fábula do Mwadyakimi Jacques), dirigida por Katambi (pequeno óbito, em kimbundu), ou seja, um pequeno ditador e onde se “sonha mentirosamente com processos de democratização da sociedade”.
No lançamento, capitaneado pelo multifacetado jornalista Carlos Gonçalves, tive o privilégio de apresentar essa agora incontornável fábula, um retrato político de Angola nos dias de hoje, e uma pedrada no charco do endocolonialismo qui tamu cum ele, atirada por um autor que faz da integridade um valor inegociável.
E, nos seus olhos e actos, podemos ler a indispensabilidade da integridade, num País em que tal valor ético parece em vias de extinção e que, a continuar nesse caminho, dentro de pouco tempo, será objecto de museu.
Li este Fabuloso Mundu Iêtu, no intervalo da releitura dos contos do Nós Matámos o Cão Tinhoso, do moçambicano Luís Bernardo Honwana, quando me preparava para escrever um ensaio sobre um dos contos do livro, concretamente, Papa, Cobra e eu, agora inserido na Antologia O inventário da Memória – Ensaios (2024), alusivo aos 60 anos dessa obra referência da literatura de Moçambique.
A leitura quase que em simultâneo da fábula do Mwadyakimi Jacques e dos contos de Luís Bernardo Honwna fez-me pensar no papel central das parábolas, provérbios metafóricos e ditados na educação e no processo de socialização em África.
Luís Bernardo Howana sem ser em fábulas, mas em contos, usa animais para simbolizar o opressor, neste caso o colonialismo e denunciar a ditadura e o racismo portugueses. Por seu lado, o Mwadyakimi Jacques, com a sua fábula, de texto elegante como a escultura de uma kianda, agradável e cativante que se lê num fôlego, desnuda o totalitarismo na sua/nossa Pátria no pós-independência.
Nessa Nação Wakangu, onde não faltam as famigeradas “ordens superiores” e é proibido discordar do NganaChefe, a justiça não é justa, não julga, a comunicação social é conivente com o poder e a resignação de alguns mais parece apoio à miniatura de ditador, como se percebe da expressão em kimbundu “Tu rila ngo, Tu banga Kiêbi”,ou seja, não podemos fazer mais do que chorar.

Por isso, escrevi no meu primeiro texto de opinião sobre a fábula, que generosamente o Mwadyakimi fez questão de incluir na obra, em jeito de prefácio, que estamos perante «um texto belo, muito bem escrito, onde Maribondo e hienas definem o “retrato implacável da maldade” dessa sociedade totalitária, ao estilo de Louis XIV e o seu L’ Etatc’est moi, que nos mostra que “ser chefe dá direito a ter sempre razão”.
Na obra, a sensibilidade do autor perante dramas ou chagas sociais fica bem resumida nesta frase: “o horrível e temido homem era um indivíduo feio como a fome”. E tem razão, porque no Nosso Mundo de pornográficas riquezas nada pode ser mais feio do que a fome, que condena injustamente à morte milhões de seres de todas as idades.
Por isso, a sociedade do Fabuloso Mundu Iêtu precisa de instituir um “dia de clemência e do perdão”(qual Política de Clemência e Harmonização Nacional!?), consagrado ao pedido (verdadeiro) de desculpa. Um perdão também àqueles que o Mundu Iêtu, assente em desigualdades, retirou o direito a ser parte de um Mundo próspero, ou seja, o direito a uma existência sadia e livre.
Neste fabuloso conto, a magistral tradução do kimbundu, sem parecer tradução, valoriza o recurso a expressões dessa língua nacional angolana.
Estas duas passagens: “Kuku ua bangue, kuku ua futa, diz-se que aqui se faz, aqui se paga” e “maji iá ndende, o sagrado óleo, produto essencial da dieta dos nativos…”, exemplificam um casamento perfeito de expressões em Kimbundu com o texto em português sem qualquer conflito e reforçando a compreensão da mensagem».


