Crónica do Amanuense

Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros

George Orwell

Ao abrir, destaco acontecimentos relevantes dos últimos dias do ano. A tomada de medidas excepcionais para proteger as populações em todo o mundo, constitui sério recado para o que aí ainda vem, para Angola inclusive. Entre nós, a situação da Covid-19 é pouco clara no seu inventário e combate. Para além da pandemia, merecem atenção factos ligados a vários níveis e em muitas circunstâncias, a personalidades que, sendo ou não políticas, revelam o valor da sensibilidade para a defesa da liberdade, da igualdade e dos direitos cívicos. Preocupo-me com a falta de clareza de certos actos governamentais e com a denúncia constante de projectos inconsistentes, do roubo desavergonhado e da mentira que os suporta, questões perturbadoras que, vou condenando mais do que defendo. Este exercício ajuda a encher com sopros de esperança, o meu coração eternamente sonhador. Partiu o Arcebispo Desmond Tutu, Prémio Nobel da Paz em 1984, um símbolo da liberdade e de união dos africanos. Também partiu rumo à eternidade, a doutora Tina Dibala e antes (re) nasceu, no meio de infinitas dúvidas constitucionais que confundem a sociedade, a Ampla Frente para a Alternância em Angola, que prega a igualdade e a justiça social, enfim, a esperança de um país melhor.  

Em vez de abordar estes assuntos, resolvi, nesta semana que vai abrir portas a um Ano Novo, falar de uma pessoa da qual me recuso citar o nome, por ter receio de sujar a minha boca. Devo, antes deste doloroso acto, desculpar-me perante todos os meus familiares e amigos, e dos meus leitores em particular. Todos eles me aconselharam a não dar importância ao fulano, a não me misturar com porcos. Ponderei todos os recados, porém a minha consciência falou mais alto e aqui estou eu a aliviar-me da carga que trazia guardada no estômago, nestes instantes em que o ano de 2021 chega ao fim. Serei objectivo, como convém em casos destes. 

Assim, na pele do simples escrevente, do amanuense sem hipótese de ser notado pelo espertalhão, pergunto-me como terá sido reconhecida a intelectualidade de Óscar Ribas, Wanhenga Xitu, Jaime Araújo, Arnaldo Santos, Fialho da Costa, Adolfo Maria, António Jacinto e tantos outros angolanos, geniais no seu patriotismo? Que pretensiosismo! Pensará o abutre ao ler esta passagem. Mas a verdade é que, na perspectiva do homem cujo nome me recuso a pronunciar, estes homens que eu tento imitar, seriam reduzidos à mediania, jamais sairiam do anonimato, nunca seriam considerados intelectuais, por terem sido amanuenses e não terem estudado em universidades. Seriam sempre serventes. 

Deixo os que construíram dificilmente o nosso orgulho e passo ao que a mim diz respeito. Jogado como estava, sem qualquer critério que não fosse o da raça a prevalecer, enfiado em quatro escuras paredes de um economato, contando impressos e atendendo requisições de papelada, jogando futebol em campeonatos corporativos para representar a entidade patronal, como poderia ter pretensões de ser alguém na vida? Como poderia um pobre coitado nessa condição, mostrar-se, a não ser por via da inteligência que tinha, pela superação inconformada, numa luta dura contra a exclusão engendrada pelos colonos, e a vontade de vencer? Entretanto, como poderia o energúmeno imaginar que um dia, ainda antes da independência nacional, o pobre do amanuense chegaria ao cargo de subdirector de uma companhia de seguros? 

Essa perspectiva não encaixava na ideia de vida bem vivida dos que aqui chegaram e se instalaram, gozando o imenso prazer de serem tratados por patrão, mal pisaram terra angolana e lhe surgiram pretos pela frente para carregarem as suas rústicas imbambas. Umas trouxas em que também traziam aconchegados os seus rebentos, uns crescidotes, alguns deles recém-nascidos. 

Não sendo exemplo que se aplique a todos os que chegaram a Angola nas condições em que chegou o malandro sem nome – muito longe desse errático conceito –, o tempo encarregou-se de marcar e mostrar por actos e palavras, os miúdos que eram bons, que se tornaram dignos cidadãos, patriotas, combatentes, separando-os dos putos maus e canalhas que traziam por força da genética e do consequente mau carácter, o perigoso mal da superioridade do homem branco, desenvolvido à medida que cresciam. Muitos livraram-se da peste, mas houve os que pegaram a doença, o oportunismo e a defesa da tese segundo a qual em terra de cegos quem tem um olho é rei, outra das várias moléstias que se acentuaram mais quando alcançamos a independência nacional. Foi um corrupio de aproveitamentos que culminaram com o surgimento de fulanos como o que está em causa, nas mais diversas áreas de actuação do país novo, mostrando à saciedade que queriam a todo o custo ser mais indígenas que os próprios nativos. Nessa onda oportunista, ei-lo agora, qual pavão vaidoso, vivendo o tempo novo sonhado, de comprometimentos e de narrativas mentirosas, olvidando que foi cúmplice no delapidar de património e riqueza nossa, a querer mostrar que foi ou é dos melhores filhos de Angola. Ridículo! O super-homem, ao mesmo tempo que vai deleitando os incautos com o relato bem estruturado das suas incomparáveis notícias, onde cabem tanto as noções de jornalismo com aulas magnas sobre a redacção e a arte de bem escrever, etc. e tal, como a defesa intransigente de um recluso que é acusado de actos menos próprios e mancha, por via indirecta, o nome do Presidente Agostinho Neto. O dito cujo, vai mostrando as suas múltiplas aptidões e sabedoria vária, conhecimentos que já o levaram até ao cinema. Contudo, os seus discursos escondem as técnicas utilizadas e as alianças estabelecidas na compra de uma rotativa para o jornal onde capitalizou imensas patifarias, máquina com mais de trinta anos de uso e prestes a cair no ferro-velho europeu, operação onde foram limpos mais de quinze milhões de dólares. A sua prodigiosa memória não lembrou de informar o povo que defende, como e por que meios se adquiria o papel e as tintas para o jornal, nem onde foram parar os carros com que se aboletou, como acumulava bilhetes de passagem e ajudas de custo elevadíssimas para passear pelo mundo. O personagem, que já foi esbofeteado em plena rua, tem um percurso de vida comparável ao herói Rambo, supera em cada episódio contado a estrela Sylvester Stallone. Vai preenchendo assim todos os pedaços da sua triste existência feita de ficção da mais reles. Ele esteve em todos os sítios e momentos importantes da nossa história moderna, combateu em todas as linhas das muitas frentes, lidou de perto com as emblemáticas figuras do país, conheceu comandantes, os planos e as estratégias militares, inclusive as secretas da Segurança de Estado. Mas a verdade é que, não sei porquê, no tempo mais difícil da refrega que Angola conheceu, o execrável, o sicário (um termo que recorrentemente atira contra os seus inimigos de morte) encontrava-se encolhido no bem bom da terra que o viu nascer. Esquisito! Teria o abominável homem o dom da bilocação ou, enganando meio mundo com a sua natural habilidade, acreditava na capacidade espiritual conferida pelo ocultismo? Os factos conhecidos obrigam-me a questionar. Mas quem deu ou dá tanta confiança a um ser deste quilate, que se aproveitou farta e ilicitamente de dinheiro e muitas benesses do Estado angolano? Quem permite que um indivíduo de educação e carácter tão soez, fale como fala do nosso país, dos seus cidadãos e dirigentes, como quem fala do tio Zé ou da mãe Joana da sua santa terrinha? Como um indivíduo destes não é levado à barra de um tribunal? Só o conluio e as alianças poderosas podem justificar essa falha. Tamanha é a capacidade atrevida e mentirosa do biltre, que só faltou dizer num dos inúmeros textos que espalha como panfletos, que discursou, envergando camuflado e boina à laia de Che Guevara, a representar e a defender Angola, na Assembleia Geral das Nações Unidas.

Alguém que merece todo o meu respeito, disse-me que este projecto de homem, malvado e venenoso como as cobras, de tal modo que até é repudiado por alguns dos seus filhos, prestou no início da luta armada, relevantes serviços à causa angolana. É um facto que me faz meditar seriamente nas transformações que se podem operar no comportamento das pessoas. E o que me leva a tirar-me do sério, a não ser como nunca fui habituado a ser, a perder cabeça, desiludindo parentes e amigos? É, seguramente, a constatação de como a força do dinheiro mal ganho e gerido indevidamente por alguns dos nossos compatriotas, é capaz de fazer com que um homem que poderá ter sido bom um dia (não sei se será o caso dele) possa ser agora intérprete das barbaridades, dos insultos, dos abusos, das faltas de respeito, não apenas para com a minha pessoa, mas para com dezenas de angolanos que ele escolheu como alvos preferenciais da sua ira incontida, vivendo praguejando, sem que ninguém reaja. Nos últimos meses, isolado e à falta de melhor, o trapaceiro vai disparando tiros em várias direcções, cada tiro cada melro, agora que as coisas não lhe correm de feição. Com mão tremente de bêbado e a partir de tabernas do Bairro Alto, em Lisboa, vai disparando enquanto aguarda a chegada das sacolas com dinheiro que paga o nojento trabalho de calúnia intrépida e desesperada, defendendo o indefensável. É este o trabalho obscuro que desenvolve na actualidade.

Como pensa ou reage perante estes factos, o coitado do amanuense? A primeira intenção é a de perseguir o animal raivoso. Mas como o pobre do condutor auto-rodas usa o bom senso, ainda pensa que é perigoso enfrentar um cão doente de raiva. Quando eu era menino, presenciei no meu Calulo, o filho do velho João, padeiro do senhor Sá Teixeira, a babar-se e a morrer horrivelmente, por ter sido mordido por cão raivoso. Espectáculo horrível! Desde essa data, tive sempre muito cuidado com os cães raivosos.

Com o meu renovado pedido de desculpas a todos os meus leitores, compatriotas, familiares e amigos pela violência do meu escrito, prometo ser mais curto e menos agressivo nas minhas próximas crónicas. Desejo que o ano que se avizinha, provavelmente o ano das nossas mais fundadas esperanças, possa reverter a situação miserável em que vivemos e seja o melhor para o povo angolano. Fico a aguardar por vós, no próximo domingo, à hora do matabicho.

Lisboa, 31 de Dezembro de 2021

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