BRISTOL, RHODE ISLAND: LUSOFONIA PRÓPRIA NO NORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

POR: LÁZARO CÁRDENAS*

Aquele sábado amanheceu duro, de um frio que não pedia licença. Bristol, ainda coberta pelas primeiras nevadas da semana, parecia uma cidade suspensa entre o branco do inverno e o silêncio das ruas vazias. As árvores, despidas, erguiam-se como braços magros contra o céu cinzento, e as casas, com os telhados salpicados de neve, davam a impressão de que a cidade respirava devagar, tentando aquecer-se por dentro.

O ar tinha aquele cheiro particular dos primeiros frios: uma mistura de sal do mar, madeira húmida e o leve perfume das lareiras que já ardiam no interior das casas. Como faço quase todos os sábados, saí cedo para as minhas quatro ou cinco milhas habituais. Normalmente caminho junto ao mar, onde a água azul — quando o tempo permite — me acompanha como memória de outras costas.

Mas naquela manhã o cenário era outro: o vento vinha do Atlântico como lâmina, cortando-me o rosto com a precisão de uma faca quente na manteiga. Cada passo era um pequeno combate contra o ar gelado, que parecia empurrar-me para trás, e o mar, em vez de azul, apresentava-se num cinzento pesado, com ondas curtas e nervosas, como se também ele estivesse irritado com o frio.

Enquanto caminhava, pensava no que esta cidade oferece. Aqui, no Norte dos Estados Unidos, pode-se comer um bacalhau com natas tão honesto como em Lisboa, uma cachupa que lembra Mindelo, ou um rodízio que traz o Brasil para a mesa. Bristol é pequena, mas o mundo cabe nela — e, sobretudo, a língua portuguesa cabe nela, nas suas múltiplas formas, ritmos e histórias.

E eu, que aqui vivo há anos, conheço quase todas as caras: são vizinhos que encontro no supermercado, na rua, na farmácia, no café; gente que me cumprimenta em inglês, mas que, quando se junta entre os seus, regressa naturalmente ao português ou ao crioulo que lhes pertence.

Foi com esse pensamento que entrei na barbearia. O contraste foi imediato: do lado de fora, o vento cortante; do lado de dentro, o calor humano. A barbearia é ampla, iluminada por lâmpadas antigas que lançam uma luz amarela e acolhedora. As cadeiras de couro e metal, vindas de décadas atrás, guardam histórias que só o barbeiro — um madeirense octogenário — sabe contar.

Nesse sábado frio, porém, o salão estava cheio. Homens de diferentes origens — cabo-verdianos de várias ilhas, madeirenses, alguns brasileiros, e portugueses vindos do Norte de Portugal, cuja maneira de falar me trouxe à memória o português tantas vezes escutado no Lubango — ocupavam o espaço com conversas cruzadas. O inglês surgia aqui e ali, mas o que dominava era a música das variantes do crioulo e do português, cada uma com o seu ritmo, a sua cadência, a sua alma.

Era como estar no centro de um pequeno Atlântico, onde as ondas eram vozes e cada voz trazia consigo uma ilha, uma aldeia, uma rua, uma infância. E, apesar das diferenças, todos falavam do mesmo: a carestia da vida, o preço dos alimentos, o futuro imediato.

Um cabo-verdiano de São Vicente comentou, em crioulo, abanando a cabeça: — Tudu sta karu dimais. Arroz, fejon, óleo… nada ka ta baxa. Outro, talvez da Praia, respondeu com aquele crioulo misturado que nasce na diáspora: — Li salário ka ta dá, nha fidju. Rent subi, luz subi… bu ta trabadja só pa paga conta.

O barbeiro, enquanto aparava cuidadosamente a minha nuca, entrou na conversa com o seu português madeirense marcado: — Antigamente a gente apertava, mas dava. Agora, meu filho… tudo vai pró céu, menos o ordenado. Um dos portugueses do Norte acrescentou, com aquele sotaque firme: — Ó pá, isto aqui tá mesmo puxado. Trabalha-se, trabalha-se… e o carrinho do supermercado vai ficando mais leve.

As vozes cruzavam-se, cada uma com o seu ritmo, a sua música, a sua preocupação. Mas havia ali um entendimento comum, quase instintivo. A língua mudava, mas a inquietação era a mesma: como viver, como atravessar o mês, como pôr comida na mesa.

Sentado ali, fui traduzindo interiormente cada expressão para o meu português de Angola, como quem costura fios de um mesmo pano atlântico. Aquele momento deixou-me claro que a língua portuguesa, quando se espalha pelo mundo, não perde a sua essência: transforma-se, adapta-se, mas continua a ser casa.

A barbearia tornou-se, por algumas horas, um pequeno parlamento popular. Ali discutia-se inflação sem números, futuro sem discursos, Natal sem enfeites — apenas com a pergunta prática e urgente do quotidiano. E, ainda assim, havia dignidade naquele espaço: uma força silenciosa, própria das comunidades migrantes, que sabem partilhar a palavra mesmo quando a vida aperta.

Quando saí, com o cabelo cortado e a cabeça cheia de vozes, o frio voltou a morder-me o rosto. O vento soprava do mar com a mesma dureza, e a cidade mantinha o seu silêncio branco. Mas eu levava comigo qualquer coisa mais quente — a certeza de que, mesmo longe das nossas terras, continuamos a reconhecer-nos.

*Leitura crítica

Neste texto, Lázaro Cárdenas, que actualmente está a terminar o Mestrado de Professor em Línguas Internacionais (Português/Espanhol) no Rhode Island College, apresenta uma observação sensível da lusofonia vivida no quotidiano de Bristol, Rhode Island, mostrando como a língua portuguesa continua activa e funcional nos Estados Unidos, apesar de não ter estatuto oficial. O ensaio ganha relevo num contexto histórico específico: embora o inglês tenha sido recentemente declarado língua oficial do país, trata-se de uma formalização tardia, uma vez que os pais fundadores nunca o instituíram como tal. O texto recorda que a vitalidade de uma língua não depende de decretos, mas do uso, da memória e da convivência. Assim como as línguas dos povos originários deste grande país não desapareceram, também o português permanece, plural e adaptado, respirando nos espaços informais onde a vida real acontece. A barbearia surge, assim, como lugar simbólico dessa permanência silenciosa.

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