VEGETANDO POR AÍ…
O Chefe e os chefitos têm forma e estilo próprio de interpretar a Constituição. O que se teme mesmo, é que se forçarem a saída do Chefe, com todos os poderes que tem e os que numa jogada a Kasparov pode ainda abocanhar, transforme Angola no maior campo de reclusão política de África e quiçá do mundo. Claro que, com os aplausos da “camarilha que o acompanha”.
Apenas para avivar a memória do poder encabeçado pelo Chefe, entre as razões que motivaram a luta armada de libertação nacional que levou ao derrube do colonialismo e à proclamação da independência, para além do “peixe podre, dos panos ruins, da porrada, da discriminação ao monangambééé” que se sente no poema de António Jacinto, o nosso kota Fumaça, constava também a questão dos impostos sobre os indígenas, a falta de oportunidades para os angolanos, preteridos em favor de estrangeiros, ou melhor, dos que vindos da metrópole sem saberem nada, aprendiam a profissão com os pretos (ou negros) explorados, mas usufruíam de salários superiores. Como certa assessoria e força de trabalho expatriada agora. Pelo facto de serem considerados cidadãos de primeira, ao contrário dos pretos (ou negros) indígenas na generalidade, os assimilados, os cidadãos de terceira ou de quarta categoria. Mas foi também, porque se sonegavam, aos pretos e aos brancos, o direito de reunião e de manifestação, se não fosse a favor do regime (salazarista). Tanto que, por isso mesmo, António Jacinto, um nacionalista branco/preto, foi degredado para o Tarrafal. O que mudou afinal?
Analisando todos esses factores e contextos, pode-se concluir que existem, de facto, muitas semelhanças entre aquele passado dos nossos progenitores, e este nosso presente (envenenado), que tem o futuro como uma gravidez de alto risco, que condiciona qualquer optimismo. Pelo menos, enquanto o dono da bola for também o dono do campo, o árbitro e o VAR. E chegados até aqui, neste primeiro meio século de existência, a conclusão é que a diferença entre o nosso passado, do colono branco e opressor, do capataz, do chefe do Posto, dos impostos, com este nosso presente (envenenado) dirigido por um preto (ou negro) ‘libertador’, que até retirou ao “povo heróico e generoso” oprimido “o peixe podre e os panos ruis” deixados pelo colono, porque agora passa fome, só está mesmo na epiderme dos dois colonos. Com o agravante de que o colono de tez semelhante à do indígena, do monangambééé e do assimilado, é mais insensível, tanto que aumentou o nível e a intensidade da “porrada” sobre quem refila. O substituto do colono branco, que é preto (ou negro), transformou os seus indígenas e monangambééés, que não têm como viver do trabalho, em mendigos que se alimentam do lixo. E onde o colono preto (ou negro) não consegue oprimir e explorar, abriu as portas a eritreus, a malianos, a chineses, a vietnamitas que até engravidam as nossas crianças. Sem “contrato”, os escravos da nova era são encarcerados em grandes quintalões onde se fabricam produtos que atentam contra a saúde pública dos indígenas, dos monangambééés e dos assimilados, mesmo nas barbas do regime dirigido pelo novo Chefe do colonialismo, preto (ou negro) que até viveu no mato.
O “libertador das garras do colonialismo e do imperialismo”, que se acha com o mérito exclusivo da proclamação da independência, sente que tem direitos vitalícios para governar a Nação. Persegue, oprime, prende, tortura, mata pretos (ou negros) indígenas, contratados, os monangambééés, os assimilados quando se revoltam. Como fazia o colono branco, que também utilizava o sipaio preto (ou negro), como aquele que ensaboou o Mestre Tamoda (4) com chibatadas, porque falava diferente e tinha medo de que essa diferença despertasse a consciência dos indígenas.
Infelizmente, próximos de assinalarmos o primeiro meio século de independência, a nossa realidade atesta que quem substitui o colono branco, matou a vida dos indígenas e dos monangambééés que viviam no campo, mas também come a carne e os ossos de uma classe média que nasceu nas cidades: os novos assimilados que emergiram fruto de muito empenho honesto mas também de esquemas, uma das marcas de referência da gestão do Chefe do Chefe. Mas o Chefe, não sei se com a contribuição da Chefa que é perita nessa matéria, criou o seu modelo de reformas.
Ele pretende ser referenciado pela história como o reformista. Provavelmente, do novo modelo de (neo)colonialismo. Não soube capitalizar os poucos mas significativos ganhos que a economia conquistou e recebeu de herança do seu Chefe. Assassinou o poder de compra, o consumo interno, o emprego e deprecia os salários; levou à falência e ameaça a sobrevivência das empresas, desagregou famílias, exagerou na carga fiscal e criou outros corruptos, para substituir os que pretendeu combater. E o país foi à pique.
Agora, tudo se encaminha para que o Chefe tenha um glorioso e feliz final, sozinho. Não! Em companhia da Chefa. Porque com o seu modelo de reformas tornou-se numa figura cruel, indiferente com o facto da juventude do país que se diz ter libertado, procure agora a sobrevivência, oportunidades de trabalho e até de dignidade e acesso a coisas básicas que por cá faltam, na pátria do colono opressor. Quem diria! Que é na terra do colono branco, onde o colono preto (ou negro) investe o que saca do seu país, mantem as suas famílias na abastança e procura por serviços médicos competentes, enquanto os libertados indígenas, assimilados e monangambas, têm em cada dia, um sufoco que parece não ter fim.
Já que o domínio do colono branco durou quatrocentos e tal anos, falta-nos saber, finalmente, quanto durará o do colono ‘libertador’ preto (ou negro). Até agora, apenas consumiu quase meio século, mas, o mar até então rico de variadíssimas espécies, já não tem peixe. No afã de se tornarem cada vez mais ricos, comem tudo, mancomunados com estrangeiros, particularmente com o colono branco, que come agora mais do que levava e não precisa de usar o chicote, porque tem quem escraviza por ele: comem com o contrabando de combustível e ferram-nos com ‘ajustes’ no preço; comem da exploração do petróleo, dos diamantes e até da madeira, comem do erário, comem das comissões e distribuem os privilégios entre si. Os indígenas, os assimilados e os monangambas desta nova era, pagam a factura dessa fome insaciável de recursos públicos e de negociatas, que bem serviriam para a redução efectiva da miséria, com a implementação de projectos que assegurariam a fixação e a sustentabilidade das populações do interior nas suas zonas de origem, sem necessidade das migalhas de kwendas, distribuídas pelo colono preto (ou negro) como ajuda, quando afinal são disponibilizadas por outro colono branco travestido em Banco Mundial.
O que o colono preto (ou negro) e seus apaniguados gostam mesmo, é de poder. A qualquer preço, e se for acompanhado de dinheiro e de luxo, melhor. A acomodação do próprio Chefe, agora o representante e responsável desse novo colonialismo de pretos (ou de negros) sobre pretos (ou negros), é disso exemplo. Contas feitas, e por alto, provavelmente, para além de primeiro herói da Canata, ficará na história como o Chefe que mais recursos públicos consumiu para se instalar, para exercer as suas funções e satisfazer o seu ambição de ser eleito a figura africana de maior destaque, relegando para segundo plano o bem-estar e a felicidade que é obrigado a dar ao seu povo.
Desde as reformas efectuadas no casarão que não é dele, mobiliários, aquisição e aluguel de aviões, de frotas de viaturas, promoção e participação em cimeiras, viagens com numerosos acompanhantes, acomodação nos melhores e mais caros hotéis, férias incluindo para familiares e acompanhantes, tratamento médico, festas, atavio e outros invisíveis… a factura que os indígenas, os assimilados e monangambas têm pagado nesses sete anos, pode ter atingido já os 2,5 mil milhões de dólares. E se se incluir os das eleições legislativas em benefício do seu ‘inteiro’, bem podem chegar aos 4 mil milhões. E ainda faltam três anos, e as habituais estratégias de Troia para barrar o exercício democrático que exigem muito dinheiro, que o Chefe não tem, mas sabe onde ir buscar.
Ninguém faz esse ‘investimento’ tão alto para se retirar, de forma voluntária, porque tem de respeitar a Constituição. O regresso à “saudosa Maloca” não faz parte da perspectiva do Chefe nem da Chefa. Por isso vão espremer a teta até deitar sangue. Para nossa incredulidade, com uma plateia que aplaude. E o Chefe, naquele seu sorriso cínico, acompanhado pela ‘cara trancada’ de pouco amiga de tudo e de todos da Chefa, sentado na poltrona daquela sala que mandaram decorar com as cores semelhantes as de um salão da Casa Branca (já trabalhava para receber o outro aí em fim de mandato?) com as pernas abertas e mostrando o formato das esferas, segurando a taça de champanhe francês ou de vinho tinto que já não é o Amicon, como se fosse um copo reco-reco, como fazia na Canata, pergunta-nos se sabemos quem manda: é claro que sabemos. É só ver a quem os Serviços de Inteligência, as Forças Armadas, a Polícia Nacional, os Tribunais, os gestores de finanças e dos recursos públicos, e até das fabriquetas de gelado de mucúa, obedecem. Porque servem o Chefe e não o Estado, que é pertença dos milhões de indígenas, monangambas e assimilados.
Percebe-se, finalmente, que o projecto do Chefe nunca foi Angola. Foi sempre unilateral. O que vendeu, naquele discurso frontal de à sete anos, a esperança mas também de deselegância com o seu Chefe – recordam-se? – foi apenas um sonho lubrificado com ‘banha de cobra’ para sentirmos menos a dor da penetração. Porque ser Chefe, ‘cuia bué’. Ser Chefa e rodar o mundo a fazer compras de borla, ‘cuia bué’. Se até ser cachico do Chefe ‘cuia’, imagine-se ser o Chefe. Não fosse por isso, por que razão tanta gente aplaude o mau desempenho do Chefe, para depois vê-lo pelas costas?
O que observamos, é que o poder angolano é incivilizado, retrogrado, insensível. Doentio. Para ele, danem-se os pretos (ou negros) indígenas, contratados ou assimilados. Se já nem “peixe podre e pano ruim” têm, safem-se nos contentores de lixo. E quem não estiver satisfeito, que imigre para a terra do colono branco. “Se refilarem” apanham “porrada” ou são metralhados com o 333.º do novo Código Penal, que suprime liberdades expressas numa Constituição, que o Chefe e os chefitos têm forma e estilo próprio de interpretar. O que se teme mesmo, é que se forçarem a saída do Chefe, com todos os poderes que tem e os que numa jogada a Kasparov pode ainda abocanhar, transforme Angola no maior campo de reclusão política de África e quiçá do mundo. Claro que, com os aplausos da “camarilha que o acompanha”. A mesma que, depois, elegerá outro Chefe e com este ainda vivo, para castigo, lhe mostrará o que lhe espera, o tratará como traidor de anseios, como se fosse portador de um novo vírus altamente destrutivo. E já estamos a ver o filme: mais um ministro dos Transportes a sentar num banco de réus, só que, desta vez, acompanhado por duas ou três ministras: a das Finanças, a da Saúde e se apertarem um bocado, a da Educação. E a sua assinatura no documento em que intercede dizendo que as orientações foram suas, não será reconhecida. Não sei se o tal chefe general que coordenou a operação do sequestro do cadáver do seu ex. comandante-em-Chefe escapará. Tanta boca, tanta arrogância quando foi o caso, “porque eu não falho” não ‘bohonho’ mas agora, bate a bola baixa, porque lhe falta coragem para dizer quem são os contrabandistas de combustível. Afinal, também tem medo ou receio que lhe destampem as cubas?
Mas ele sabe porquê. Sabe bem que lá em cima, no poder, há jacarés com 20 metros de comprimento. E nessa sequência de práticas criminosas dos que estão lá em cima, percebe-se que às denúncias de Man Genas não falta substância. E por isso mesmo, não tarda, nas calmas, será apagado. Juro que ainda pedirei ao ilustre visitante grande amigo do Chefe, para nos emprestar um pouco da assessoria do IBF para desmontar essa “camarilha que acompanha o Chefe” (3). Mas, sinceramente, vai dar-me um gozo do caraças vê-lo descer naquele jatão no aeroporto todo lavadinho que está a brilhar como ouro, e nos encontros entre as partes, ser saudado e estar no face to face com corruptos, traficantes de combustíveis, de fuba de bombô que provoca alucinações e de acessórios humanos.
Se há quem ainda duvida que o Chefe está ferrado e mal-acompanhado, não é o meu caso.
Benguela, 2 de Outubro
Referências
(3) “… E a camarilha que o acompanha”, expressão utilizada por um comissário político, ao apresentar Lúcio Lara e sua delegação num comício realizado em Malanje, finais dos anos 70. Os jornalistas dos diferentes órgãos de comunicação, incluindo o autor deste texto, também foram apresentados como fazendo parte “da camarilha” acompanhante.
(4) Personagem criada pelo escritor Wanhenga Xitu, pseudónimo de Agostinho Mendes de Carvalho, colega de cárcere de António Jacinto, em Tarrafal.