A PESTE NEGRA

A receita de Trump para a liquidação das democracias e do Estado de Direito é hoje uma espécie de manual de conduta de toda a extrema-direita mundial.

MIGUEL SOUSA TAVARES

Vai-me custar muito não voltar a ver Nova Iorque, o Inverno em Nova Iorque, o Thanks Giving, a árvore de Natal do Rockefeller Center, o Calatrava no Ground Zero, as iluminações e as montras de Natal na 5ª Avenida, os almoços na varanda interior da Central Station, os jantares no Village, ou a Frick Collection, um museu à dimensão de que eu gosto. Mas é assim a vida, estou velho para visitar ditaduras ou ver apodrecer por dentro a civilização em que fui baptizado, não me apetece ser recebido numa fronteira de aeroporto por um polícia de fuzil de guerra apontado, como se turista fosse igual a terrorista, e menos ainda acabar deportado para El Salvador ou Guantánamo, onde podem acabar todos os estrangeiros ilegais ou desalinhados com a loucura MAGA. Trump acaba de declarar os antifascistas terroristas e tornou claro, no funeral de Charlie Kirk, que, “ao contrário dele, eu odeio os meus adversários”. J. D. Vance, esse crânio da intelectualidade de direita, convidou os empregadores, os colegas e os vizinhos a denunciarem esses antipatriotas, para que o FBI e o desemprego se ocupem deles. O Supremo Tribunal Federal cauciona o despedimento de funcionários públicos por estritas razões políticas e inventou a teoria de que a Justiça não pode, invocando o desrespeito pela Constituição, contrariar o programa político de um Presidente eleito — o que significa o fim da separação de poderes, a morte da Justiça e a inutilidade da Constituição. Tudo substituído por uma ditadura unipessoal de um ser, talvez humano, mas doentiamente perturbado, que fez das suas características conhecidas — soberba, ganância material e crueldade — todo um programa político para consumo interno e exportação planetária. A História já viu semelhante e não foi assim há tanto tempo.

Em tempos normais, num mundo regulado pelos valores em que fomos educados, era impensável o que está a acontecer à América. E também era impensável ver a Europa ser humilhada sistematicamente, com o discurso ofensivo de J. D. Vance em Munique, a Dinamarca a ser ameaçada com uma invasão da Gronelândia, Von der Leyen a ser destratada nos domínios escoceses de Trump e depois a assinar a capitulação total da Europa na guerra comercial desencadeada por ele (o descaramento com que o homem nos manda comprar armas e petróleo aos seus amigos americanos em troca de nada) — e, no fim de tudo isto, ver os nossos líderes a rastejar aos pés do “aliado” americano. Zelensky, humilhado em directo por Trump e o seu acólito presidencial, engoliu tudo e respondeu com elogios, súplicas e agradecimentos; Mark Rutte, o secretário-geral da NATO, encaixou a suprema vergonha de ver Trump revelar o conteúdo de uma missiva privada onde o elogiava ao melhor estilo dos subordinados de Estaline; ou o “grupo das boas vontades”, ou lá como se chama, ostensivamente ignorado por Trump nos seus diálogos com Putin, ir em excursão a Washington pedir para serem escutados sobre a guerra na Europa.

Mas a maior humilhação auto-infligida por alguma nação europeia aos pés do ditador americano foi, para mim, a recepção que a Corte e o Governo inglês reservaram ao rei Donald. Duvido que em vida de Isabel II tivesse sido possível assistir aos dois dias em que a velha Inglaterra, pátria da democracia e dos direitos do Homem, se ajoelhou, com pompa nunca antes vista, perante o homem que está a matar a democracia americana e a exportar para o mundo inteiro uma peste negra que aqui costuma ter o nome de fascismo. A Inglaterra que, após sucessivos desastres na escolha de um PM capaz — incluindo o actual Keir Starmer, uma espécie de amiga política —, se prepara para ver chegar ao poder Nigel Farage, o amigo e admirador de Trump, a quem os ingleses devem a saída da União Europeia. E mesmo este ‘aristo-fascista’ é desafiado ainda mais à direita por um ‘hooligan-fascista’, Tommy Robinson, capaz de levar 100 mil pessoas a manifestarem-se contra os imigrantes na cidade de Londres, que Trump descreveu como “irreconhecível” (apesar de cautelosamente a ter evitado na sua visita real). Desgraçadamente, os líderes europeus, que parecem entusiasmados com a eventualidade de uma guerra com a Rússia e que se dão ao luxo de desprezar a China, ainda não perceberam que o maior inimigo da Europa actualmente são os Estados Unidos da América de Donald Trump e J. D. Vance. E o perigo não é apenas a chantagem a que Trump submete a Europa a vários níveis: é o contágio, cada vez mais amplo, que aqui encontra a sua pregação, assente na prevalência dos interesses dos brancos, ricos e poderosos. Quanto mais tempo a Europa demorar a preparar-se para enfrentar o verdadeiro perigo — no comércio, na energia, na ciência, no clima, nos oceanos, na cultura e na ideologia — mais irreversível será a caminhada para o desaparecimento do mundo e do modo de vida em que fomos criados e educados.

A receita de Trump para a liquidação das democracias e do Estado de Direito é hoje uma espécie de manual de conduta de toda a extrema-direita mundial: dos nostálgicos do fascismo ou do nazismo, dos que gostam de ser mandados por “homens fortes”, ou dos que simplesmente não têm nada mais em que acreditar nem descortinam outro canto mais adequado onde se abrigarem. Todos acreditam na expulsão dos imigrantes das suas terras como solução única para a economia e a sociedade, todos consideram a esquerda como um inimigo a exterminar, todos já decidiram que os políticos das democracias são corruptos sem remissão, todos assimilam as “verdades” prontas-a-vestir que lhes servem e que os dispensam de uma alternativa que lhes daria muito mais trabalho: cultivar-se, informar-se, ouvir os outros (não é por acaso que só 12% dos votantes do Chega têm estudos superiores e 56% não concluíram o ensino secundário). E, consequentemente, todos dispensam o trabalho de procurar a verdade, assim como pouco lhes importam as mentiras constantes dos seus profetas, por mais obtusas que sejam (como as mais de 1500 viagens presidenciais de Marcelo, contabilizadas por André Ventura).

Alguns espíritos mais compreensivos ou modernos sustentam que a responsabilidade por esta onda galopante do populismo de extrema-direita é da esquerda e dos erros da esquerda. Sem dúvida que a esquerda cometeu e continua a cometer erros imperdoáveis, como a suprema imbecilidade do movimento woke, a defesa da autoflagelação histórica das nações com História ou as propostas económicas congeladas na análise marxista de há 150 anos. Mas nada disso seria suficiente para derrubar as democracias. O que derruba as democracias é a sua fragilidade natural — e a esquerda não é responsável por isso. A democracia é o mais frágil dos sistemas políticos, porque exige informação, formação, cultura, debate e capacidade de ouvir e dar razão ao outro, alternância de poder. E, sobre tudo isto, um grande consenso social acerca da crença nestes valores e o amor à liberdade como valor primeiro. Mas assim como não é certo que o homem seja por natureza um animal bom, também não é certo que ele aspire por natureza a ser livre. A peste negra explora em proveito próprio o pior do ser humano, individual e socialmente considerado. A missão daqueles que querem continuar a ser livres é fazer-lhe frente. Nada mais.

Expresso 26 de Setembro

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