A INVENÇÃO DE UMA TRADIÇÃO: O SEMBA E A CONSTRUÇÃO DE UM MITO OFICIAL

O Semba não é uma prática nem constitui um marco de referência para a maioria dos angolanos. A prioridade dada a Benguela, Huíla e Namibe como pontos iniciais de um percurso denominado “Rota Turística do Semba” constitui um exemplo perfeito da construção artificial que se encaixa numa ideia de “produto turístico” esvaziado do seu valor de pertença.

ANA CLARA GUERRA MARQUES*

A história demonstra que, sempre que se procura definir a identidade nacional através de um símbolo cultural único, corre-se o risco de transformar a cultura numa ferramenta de propaganda. Aconteceu no Brasil com o Samba, aconteceu em Portugal com o Fado e, se não agirmos com precaução e seriedade, poderá repetir-se em Angola com o Semba promovido na imprensa como “símbolo de união”. No Brasil de Getúlio Vargas, o Samba foi instrumentalizado por um regime empenhado em consolidar uma imagem nacionalista, popular e unificada. Elevando o Samba a bandeira cultural oficial e a expressão homogénea da “brasilidade”, Vargas juntou a esta estratégia o Carnaval, enquanto extensão do seu projecto político, resultando na construção de uma identidade brasileira simplificada e esvaziada da sua pluralidade.

Em Portugal, embora o Fado tenha conhecido um percurso político mais ambíguo e apesar de Salazar não ter demonstrado particular apreço por este género musical, o seu governo acabou por lhe atribuir um lugar importante na construção da narrativa nacionalista. Ao reconhecer o seu potencial simbólico, utilizou-o como instrumento de legitimação do Estado Novo, associando-o à saudade, à tradição, à disciplina e à resignação que o regime pretendia promover.

Ao contrário do Samba e do Fado – que ao longo do século XX beneficiaram de estudos consistentes, debates públicos alargados e investigação continuada – Angola continua marcada por uma produção científica praticamente inexistente (ressalvam-se as raras excepções) nas áreas dos estudos culturais, da antropologia e da etnomusicologia.

Esta ausência de investigação sistemática, de documentação musical rigorosa e de trabalho de campo representativo deveria, por si só, impor uma maior moderação na emissão de afirmações sobre aquilo que poderia definir a matriz cultural angolana. Paradoxalmente, é neste vazio de conhecimento que se tem instalado a promoção do Semba como símbolo nacional absoluto e nova bandeira de um nacionalismo cultural emergente e fervoroso, num processo de uniformização idêntico ao que sustentou a criação do actual “Carnaval Nacional” angolano.

De forma precipitada e sem validação académica, tem-se vindo a desenhar uma visão monolítica que apresenta o Semba como “a dança da nossa identidade” ou mesmo “a verdadeira essência de Angola”. A urgência de o converter em “bem comercializável” reforça esta lógica de apropriação e reconfiguração, impondo um elemento particular sobre a vasta e complexa realidade cultural do país.

Longe de serem neutras, estas formulações fortalecem o pressuposto, tão frágil quanto politicamente conveniente, “um só povo, uma só nação”, slogan repetido ao longo de décadas, mas que não corresponde à realidade sociocultural de Angola – um território formado por múltiplas matrizes culturais, diversas línguas, cosmogonias e sistemas simbólicos consideravelmente distintos.

Ainda que incómoda, a verdade é que o Semba não representa a totalidade dos povos de Angola. As suas raízes estarão historicamente associadas à região do Kwanza-Norte e o seu desenvolvimento ter-se-á dado no contexto urbano / periférico de Luanda, ao longo do século XX. Fora deste eixo específico, o Semba não é uma prática nem constitui um marco de referência para a maioria dos angolanos. A prioridade dada a Benguela, Huíla e Namibe como pontos iniciais de um percurso denominado “Rota Turística do Semba” constitui um exemplo perfeito desta construção artificial que se encaixa numa ideia de “produto turístico” esvaziado do seu valor de pertença. Ao privilegiar regiões onde o Semba não tem origem comprovada, cria-se uma receita promocional instantânea.

Longe de rejeitar a integração do património cultural e artístico em estratégias de turismo – cuja relevância social e económica é inegável – a crítica à proclamação do Semba como “a voz do povo angolano” apenas sublinha o risco de se avançar sem a profundidade e o rigor necessários, convertendo uma conveniência institucional numa suposta verdade cultural.

Ao Ministério da Cultura caberá a grande responsabilidade de garantir rigor intelectual e combater a criação de ficções identitárias, impedindo a redefinição de significados que coloca em risco a autenticidade da memória colectiva.

Deste departamento estatal esperam-se, igualmente, acções no sentido de impedir que a atenção pública recaia apenas sobre os itens culturais já popularizados mas, essencialmente, sobre aqueles que, embora menos visíveis, constituem a expressão profunda e ancestral das regiões a que pertencem (muitos dos quais, actualmente, em vias de extinção). A preservação deste património menos exposto exige programas de investigação direccionados e uma estratégia que ultrapasse a visibilidade mediática.

Deve-se evitar o simplismo de tomar a parte pelo todo e de generalizar uma experiência urbana geograficamente circunscrita, deturpando o passado, preterindo outros universos culturais e oferecendo à juventude discursos sedutores, mas desprovidos de fundamento, sobre identidade nacional.

A esta distorção histórica soma-se uma certa indefinição entre géneros musicais. Será que se está, na realidade, a falar de Kizomba, mas acha-se mais chamativo e conveniente alterar para Semba? Será que existe a noção de que este género se desdobra em música e dança, mantendo a mesma designação (Semba) mas com autonomias distintas?

O género (música e dança) que verdadeiramente já conquistou o mundo e, de alguma forma o País, foi a Kizomba. Na prática, o Semba como dança sobrevive hoje quase exclusivamente nos grupos de Carnaval, podendo mesmo discutir-se a validade dessa designação para a dança de pares que precedeu a Kizomba. Enquanto esta desordem se instala, a “Rebita” (ou Masemba? Ou Semba?) testemunha, esquecida, a diluição do seu próprio legado, tornando-se a vítima colateral do empobrecimento identitário que resultará desta abordagem redutora.

A unidade nacional não se constrói uniformizando as diferenças, mas reconhecendo-as e valorizando-as. Se Angola deseja eleger símbolos nacionais representativos, precisa urgentemente de um trabalho de base exaustivo e validado que respeite a diversidade do país. A verdadeira unidade nasce do conhecimento e do consenso; não de ímpetos circunstanciais.

Sem este compromisso com a verdade, qualquer tentativa de definir “a essência angolana” será sempre incompleta, imprecisa e facilmente usada de forma indevida. É crucial evitar que o Semba – uma expressão cultural legítima e valiosa – seja absorvido por discursos incontestáveis de exaltação, como aconteceu com o Samba no Brasil e com o Fado em Portugal, que se converteram em peças da engrenagem propagandística. Quanto aos cidadãos comuns, muitas vezes alheios a estas subtilezas, acabam por legitimar involuntariamente estes processos de massificação, através do seu entusiasmo acrítico, tornando-se, assim, participantes na erosão de um património multifacetado, cuja herança exige não apenas celebração, mas também o respeito e a vigilância crítica de todos.

Legenda da foto: É neste vazio de conhecimento que se tem instalado a promoção do Semba como símbolo nacional absoluto e nova bandeira de um nacionalismo cultural emergente e fervoroso, num processo de uniformização idêntico ao que sustentou a criação do actual “Carnaval Nacional” angolano.

Luanda | Novembro 2025

*Investigadora

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