A árvore, a luz e a sombra

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

JAcQUEs TOU AQUI!

Aquele que plantar uma árvore,                                                 

descansará à sombra dela

Autor não identificado

A partir de data que não sei determinar, porém numa época anterior à independência nacional, o ausente (e por essa razão muito contestado) pulmão ecológico da cidade de Luanda, restringia-se à floresta da Ilha do Cabo, ao esplêndido Eixo-viário, a uma área também conhecida como pequena floresta (tutelada pelos serviços de Agricultura), um micro território situado nas proximidades do Museu Nacional de História Natural, e ainda às tímidas amostras na Zona Verde de Alvalade e ao Parque Heróis de Chaves no Casuno, nas traseiras do cinema Restauração onde por muitos anos se viria a instalar a Assembleia Nacional. Acrescento à lista a zona do Palácio do Governo e da Imprensa Nacional e com um pouco de boa vontade o pequeno eucaliptal que apanhava o fim da Avenida do Brasil e o Bairro do Caputo, e também uma zona verde no Cazenga (ou seria no bairro da Cuca?), onde por mero acaso descobri certo dia um sítio maravilhoso de sombra e frescura, a exalar cheiro bom das rosas de porcelana que ali abundavam. Nesse sítio organizei alguns almoços e pic-nics com os meus amigos de sempre, momentos que hoje recordo com saudade. Tanto quanto a lembrança me permite desfiar factos, o terreno encontrava-se sob a alçada do GPL, ou talvez dos Serviços de Agricultura e Florestas. O grande e incaracterístico casco suburbano, tal como acontece hoje, não era, por razões óbvias, tido nem achado para o plantio de árvores. 

Que me lembre ainda, eram escassas as árvores nas ruas da zona urbana da capital de Angola e mesmo as poucas existentes e herdadas do tempo colonial (a velha baixa, Coqueiros, Pelourinho, Campo do Atlético, Baleizão, etc. tiveram sempre árvores), não foram merecedoras da atenção que seria desejável e necessária, na conturbada época pós-independência, cheia de muitas mais coisas em que se pensar, muito mais importantes que o tratamento de árvores para dar sombra. 

Do antigamente, registo ainda a velha presença da mulembeira plantada no passeio da antiga Portugália, muito perto do Palácio da Palmeira que durante décadas albergou a mítica Livraria Lello, um edifício que, tal como a mulembeira, se manteve firme no seu lugar, apesar de não ter conseguido ser preservado para continuar a ser o que sempre tinha sido. Uma casa de livros, uma casa de cultura para servir o povo que a procurava diariamente. Outras mulembeiras situadas no antigo Largo D. João IV, hoje Rainha Ginga, nas imediações da conhecida praça de táxis 265 (não cheguei a conhecê-la), vão resistindo contra as intempéries e mantêm-se úteis na sua missão de dar sombra à nossa gente. Mas, tudo o que havia e há, era e continua a ser pouco para a imensidão de Luanda. 

Infelizmente para a nossa história moderna, nem todas as árvores tiveram a mesma sorte de vida, algumas conheceram boas podas, outras um fim triste, morreram quando ainda podiam ter durado um pouco mais. Inserido num processo que não pode deixar saudades, foi, de um modo pouco menos que criminoso (pelo silêncio que sempre rodearam decisões desta natureza), paulatinamente sendo abatida a pouca sombra das árvores plantadas na cidade-capital. Do mesmo modo que desapareciam as árvores, surgiam na cidade edifícios de grande porte, erguidos nos mais estranhos locais, como aconteceu no caso caricato da usurpação de parques de estacionamento de viaturas reservados a salas de espectáculo, que não foram poupados para satisfazer a sofreguidão do betão armado. 

Ainda no outro tempo, recordo tristemente a longa avenida, uma enorme recta ladeada por árvores centenárias que ofereciam uma sombra assombrosa mais a sua frescura, na via que nos conduz (ia) a Cacuaco, depois da Cadeia Comarcã. Aquelas árvores eram símbolos da preservação da natureza. E vizinhas da célebre Mulemba Xangola, procurada amiúde e citada por poetas e cantores e não apenas por estes. Pois, para espanto das pessoas sensíveis, adeptos das coisas que fazem a história dos países, até essas árvores foram sacrificadas. Não descarto a ideia de terem existido razões poderosas a dar aval ao seu abate, mas não posso silenciar o meu desapontamento pelo acto praticado, (ainda hoje penso que foi enorme na sua crueldade), como terá sido também frustrante, para muitos mais cidadãos de Luanda. 

Quando comecei a dar corpo a este texto e defini que iria falar das árvores, da luz e das sombras de Luanda, veio-me à lembrança uma pergunta a que eu gostaria de responder ou ver respondida com alguma propriedade. Não descobri fontes que me elucidassem cabalmente e, por essa razão, fui levado a fazer por minha conta e risco um percurso atrasado no tempo e na história, levando-me, inclusive, em visita precária à Luanda dos séculos passados, XIX e XX, nomeadamente, para perguntar se a cidade linda desses tempos, era suficientemente arborizada.

É suposto que nesse período, a cidade tivesse árvores plantadas nas suas ruas, nas suas praças e avenidas que não seriam muitas, nem nos seus largos e jardins que seriam alguns. Não me dei ao incómodo de investigar porque, estou em crer que a intelectualidade angolana daquela época, inserida numa sociedade em desenvolvimento, mesmo que submetida às leis coloniais, teria já alguma sensibilidade para as questões que hoje apelidamos de ambientais. E afirmo-o com alguma convicção, por certificar que foi nesse período que despontaram, em épocas distintas, nomes angolanos de família como e entre outros, os de Geraldo António Vítor, Botelho de Vasconcelos, José de Fontes Pereira, Cândido Pereira dos Santos Van-Dúnem, todos eles letrados e identificados como “filhos do país” (por alguma razão seriam assim apelidados) a desempenharem cargos prestigiantes no funcionalismo público da época. Na verdade, os cargos não passavam de medidas engendradas pelas autoridades coloniais derivadas essencialmente do fim do comércio de escravos, até aí explorado com altos rendimentos pelos funcionários portugueses, que foram abrindo, por essa causa, espaço no serviço público aos tais “filhos do país”. Escusado será dizer que os seus salários se situavam a um nível muito mais baixo do que os dos portugueses que passaram a dedicar-se a tarefas mais rentáveis, com aplicações dos seus rendimentos resultantes do tráfico negreiro acima referido. 

Recordo brevemente António José do Nascimento, descrito por Mário António como “um dos últimos cónegos indígenas do século dezanove”, que fora enviado para estudar em Portugal, no Convento de Santarém, ao que tudo indicava por um convento franciscano, cujos ensinamentos eram pautados pelas ideias liberais da chamada Revolução do Porto. Chegou a cónego da Sé de Luanda e foi também professor. Mais tarde seria vilipendiado pelas autoridades portuguesas com as mais pérfidas histórias que metiam envolvimento com mulheres e outras coisas que foram contadas sobre ele.

Mas não é das vidas desses “filhos do país” que pretendo falar, apenas os referi para sustentar a ideia de que, com gente desta envergadura naquele tempo, a questão da arborização das ruas de Luanda deveria, em algum momento, constar das suas preocupações. Falarei sim dos novos tempos que proporcionaram o surgimento de várias entidades e associações com pessoas de ideias e iniciativas voltadas para a árvore, dando lugar a campanhas massivas de plantação de árvores, acácias rubras e outras espécies, a maior parte da mesma família, em muitas cidades e localidades do país. Dezenas de ambientalistas esforçaram-se e continuam dedicados à causa, e o resultado do seu trabalho começa agora a mostrar-se, talvez não com o impacto desejado, mas, mostrando-se. Também eu plantei uma árvore no quintal da União dos Escritores Angolanos, num dia de há muito tempo em que participaram muitos confrades nessa tarefa louvável. Há dias fui visitar a minha árvore e verifiquei com ela cresceu, já é adulta, já dá sombra. 

A capital começa assim a estar mais verde e fresca. Caminha devagar mas vai em direcção segura à preservação e sustentabilidade ambiental, um processo contínuo de arborização da cidade, difícil mas cujos resultados começam agora a ser visíveis em várias artérias onde, se não fossem alguns casos de indisciplina do mercado ambulante, dos muitos mendigos e dos muitos passeios degradados, já daria algum prazer caminhar.

Mas nem só a falta de sombra e a ausência de passeios perturbam a vida do cidadão luandense. Há situações graves que atingem a população, como a que está explícita diariamente, em enormes grupos de pessoas, nas cercanias das maternidades, ocupando sítios sem sombra nem passeios de jeito, a darem uma imagem muito negativa da cidade e dos serviços que presta à população. Existem outras negatividades como o caos do trânsito automóvel e as obras mal pensadas e pior executadas a magoarem a nossa visão, uma flagrante violação do ar puro que se deseja, como são os casos do Shopping da Fortaleza e dos prédios erguidos na baía de Luanda a castigar severamente o que de mais belo tínhamos na cidade, um crime em termos ambientais (como de resto, tudo o que concorreu para a modificação daquela zona privilegiada) a constituir contraponto da estética e da beleza da cidade, para além de configurarem largas hipóteses de futuros prejuízos no domínio do turismo (quando ele chegar de verdade), para além de estarem sujeitos a consequências delicadas nas ameaças do tempo que não perdoa, das marés e das calemas, frequentes na Ilha de Luanda. Veremos que atitudes poderão tomar os actuais “filhos do país”. O tempo nos dirá, quem está certo ou está errado. 

Não havendo hoje mais nada que mereça relevo, para além de ser já conhecida a data das eleições, do registo da realização do ansiado Congresso da Nação que, apesar das boas intenções dos organizadores, não foi mais do que uma pequena decepção, segundo o testemunho de alguns dos que estiveram presentes, do Dia Mundial da Criança (toda a comunicação social lembra-se das crianças no dia 1 de Junho, não podia ser diferente), esquecida entretanto nos outros dias como sendo o Futuro do País, e para lá das infalíveis imagens das redes sociais, sempre activas, sempre actuais nas fake news sensacionalistas, ainda assim a fazerem constantes apelos a uma sociedade civil organizada, despeço-me dos meus leitores, dos amigos, camaradas e companheiros de luta. Então, até domingo, à hora do matabicho.

Luanda, 4 de Junho de 2022

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