ÓDIO VERSUS SENSATEZ

A farsa pós-colonial em Três Actos

Por um observador desencantado

Passadas décadas das independências formais, assistimos a um espectáculo global de cinismo perfeito: as elites do Sul Global, herdeiras directas dos aparatos coloniais, celebram a “soberania” enquanto perpectuam os mesmos mecanismos de extracção e exclusão. Este não é um acidente histórico, mas sim um consórcio estruturado de ódio: ódio das elites ao seu próprio povo, ódio do ocidente neocolonial aos povos que dizem querer “desenvolver”. Tudo isto, é claro, travestido com a retórica oca da cooperação internacional e do desenvolvimento económico.

Primeiro Acto: a elite local, ou o “governo de exportação”

Que ironia magnífica! Os mesmos que discursam contra o imperialismo educam os filhos em Eton, em Londres e na Sorbonne, mantém fortunas em paraísos fiscais metropolitanos, replicam os planos de ensino dos ex-colonizadores e tratam os seus concidadãos como uma subclasse inconveniente. A sensatez sugeriria que o poder conquistado com a independência fosse usado para, imagine-se, independentizar a população: criar sistemas de saúde e educação decentes, infra-estruturas duráveis, realizar políticas de classe, governando para o povo.

Mas a realidade é mais “prática”! A verdadeira pátria dessa elite é o extracto bancário em Zurique, não o musseque em Luanda ou Lagos. A sua lealdade é transnacional, classe sobre classe, um pacto tácito com as antigas metrópoles: “Nós mantemos o fluxo de recursos baratos e a estabilidade política (leia-se: repressão), e vocês mantêm as portas abertas dos vistos gold e dos apartamentos de luxo”. Agora sim, somos a burguesia substituta!

Segundo Acto: o Ocidente benfeitor, ou o “ladrão que chama o guarda”

Aqui reside a peça de teatro mais cínica! Os países ocidentais, após séculos de pilhagem colonial directa, reinventaram-se como parceiros para o desenvolvimento. A fórmula é genial: compram recursos primários a preços ditados por eles mesmos, vendem produtos manufacturados e serviços a preços inflacionados, e ainda cobram juros sobre empréstimos para “ajudar” a desenvolver essas mesmas economias que estrangularam, continuando a estrangular.

Este ódio ocidental é especial! É um desprezo revestido de condescendência. É o olhar que vê não parceiros, mas mercados e fontes de mão-de-obra barata. Celebram a “cultura vibrante” desses povos nos festivais, enquanto os seus bancos e multinacionais sugam a sua riqueza real. Chamam “corrupção” aos desvios das elites locais (quando politicamente conveniente), mas ignoram solenemente os seus próprios paraísos fiscais que tornam essa corrupção possível e lucrativa. Que bons parceiros somos…

Terceiro Acto: o povo, ou a “quem paga o bilhete para a plateia”

E no centro deste palco, o povo! A maioria esmagadora, afastada do poder real, sem meios de controlar os “seus” governantes. A eles é oferecido o nacionalismo fútil, a promessa vaga de um futuro melhor, enquanto o presente é de desemprego, serviços públicos em colapso e uma fuga de cérebros que beneficia directamente os ex-colonizadores. O ódio que as elites lhes dedicam é prático: é o ódio do senhor ao escravo que ousasse reclamar, disfarçado de discurso sobre “responsabilidade fiscal” e “reformas difíceis”. Sempre no reforço da burguesia substituta.

A Sensatez que “nunca” chegará (porque não a querem)

A sensatez seria um caminho solitário e pouco glamoroso. Exigiria:

  1. Das elites locais: patriotismo real; investimento interno; rejeição do modelo extractivista; e prestação de contas.
  2. Do Ocidente: reparações históricas concretas; fim dos paraísos fiscais; acordos comerciais justos; respeito verdadeiro pela soberania política, não apenas em retórica.
  3. Do sistema global: desmantelamento da arquitectura financeira que premeia a fuga de capitais, castiga o investimento social e bloqueia o desenvolvimento a Sul.

Mas quem quer sensatez? Ela estragaria todo este esquema. Acabaria com os iates, com as consultorias milionárias, com o ciclo confortável de exploração e desculpas. O ódio, sistémico, estruturado e lucrativo é um negócio demasiado bom para ser abandonado. E quem sofre com tudo isto? O POVO, claro!

A farsa continua porque os actores principais (as elites corruptas e os seus parceiros ocidentais da tramoia) lucram com ela. O ódio ao povo, tanto o interno quanto o externo, é a cola que mantém este sistema perverso unido. Até que essa aliança de interesses seja quebrada pela pressão popular organizada e por uma genuína mudança na ordem global, estaremos condenados a aplaudir, com raiva e sarcasmo, esta tragédia repetida como farsa, onde a única linha constante é o desprezo pelos muitos em benefício de poucos. É a selva capitalista no seu melhor!

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