A PROPÓSITO DA PROPOSTA DE LEI DE SEGURANÇA NACIONAL – I

O Estado Angolano somos nós, povo, o território e o governo, que o deve ser, e exercer, apenas em representação do Soberano, o povo. Assim sendo, onde esteve o Soberano durante o período de preparação desta proposta de Lei? 

POR CESALTINA ABREU 

A proposta da nova Lei sobre a Segurança Nacional deve acender todos os nossos sistemas de alerta e merecer, em meu entender, um posicionamento da sociedade angolana, e não só – já que uma ameaça a direitos de um, aqui, é uma ameaça aos direitos de todos em qualquer lugar que se encontrem – porque a mesma representa mais um passo em direcção ao estabelecimento (que será consentido se nada fizermos para o impedir) de uma “ditadura de generais”!

E mais, em meu entender, essa lei deve ser “lida” na sequência e como parte do pacote de criação de mais um simulacro da intervenção do Estado no interesse de todos de jure, mas de cerceamento das liberdades dos cidadãos e de impedimento da acção cívica de qualquer natureza, de facto.

O pacote a que me refiro compreende as seguintes outras iniciativas do executivo:

– As alterações – 3 ou 4 – a Lei de Imprensa 1/17 de 23 de Janeiro, a última das quais mantendo a rejeição ao princípio do contraditório, introduziu “deformações” a conceitos como «interesse público» e «comunicação institucional» entre outros;

– As múltiplas e sucessivas propostas de alteração da Divisão política e administrativa do país (pelo menos 3 desde 2022) para criar um ambiente de impossibilidade para a realização de eleições autárquicas e de eleições gerais em 2027, e a condição de necessidade de um 3º mandato, como concluiu o I Ciclo de Debates LAB/GRAD sobre este assunto realizado entre Janeiro e Março de 2023(1);

– A nova proposta de lei sobre as ONG’s aprovada na generalidade, em 25 de Maio de 2023(2), que tem merecido muitas críticas, interna e externamente.

Agrego a Lei 7/16 – Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento das Comissões de Moradores (o simulacro de então, mas que criou a extensão do sistema de vigilância pidesco a todos os níveis da vida em sociedade …) -, no artigo (art.º 4, 1 sobre atribuições) não há espaço para acções de natureza política, nem promotoras de inclusão, e no Cap. V Disposições Finais, o art.º 24 indica que (…) as CM podem ser organizadas por um grupo de moradores “devidamente reconhecido” pelo órgão da administração local, não parecendo possível que tal processo possa ser influenciado pelos cidadãos/moradores considerando a cultura institucional dominante. Angola é o único país na SADC que, ainda(3), não realizou eleições para órgãos do poder local.

Os meus receios são inúmeros e muito fortes. Contudo, nesta primeira abordagem, vou centrar-me na introdução e assinalar um ou dois dos artigos que me parecem fundamentais, para desvendar o “espirito” desta lei e ligar o sinal de alerta.

Logo na introdução da Lei, estipula-se: “O Estado angolano garante a segurança nacional mediante a salvaguarda da independência nacional, integridade territorial, soberania nacional, da defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, enquanto condições que proporcionam a realização plena do homem (sic), sendo o centro e destinatário principal da presente Lei para a legalidade democrática instituída”.

Uma questão imediata que esta introdução suscita: O Estado Angolano somos nós, povo, o território e o governo, que o deve ser, e exercer, apenas em representação do Soberano, o povo. Assim sendo, onde esteve o Soberano durante o período de preparação desta proposta de Lei? Mais, se, de facto, a lei visa a plena realização do «homem» (do que conheço da língua portuguesa, esta ortografia exclui a «mulher» que é a maioria da nossa população, a 2ª pergunta é: da mulher não? Porquê?

Outra questão refere-se ao que o proponente (executivo) não faz, o legislativo não pergunta e nós, o soberano, não questionamos. Trata-se da questão dos Conceitos… todo mundo diz que é teoria, mas não é… precisamos saber o sentido atribuído a “segurança nacional” e ter explicitados exemplos do que se considera um “ameaça à segurança nacional” (art.º 3, definições, e seguintes). Consultando o Dicionário online, encontramos que “Segurança nacional consiste em assegurar, em todos os lugares, a todo momento e em todas as circunstâncias, a integridade do território, a proteção da população e a preservação dos interesses nacionais contra todo tipo de ameaça e agressão externa ou interna. O conceito de segurança nacional é amplo, mas o objectivo é a proteção suprema e incondicional do território e do povo. Não se trata apenas de armas e tropas, mas do controlo dos meios de produção de alimentos, de garantia de energia e de medicamentos, entre tantos outros” (já sabemos que estas questões são consideradas «relativas»…). Os sinónimos de “segurança” são, confiança, garantia, firmeza, estabilidade e certeza. Parece ter o mesmo sentido? Vamos ler bem o art.º 3.

Antes de ser remetida à Assembleia Nacional, esta Lei deveria ter sido submetida a uma consulta pública. Obviamente não a «consulta pública» que o executivo costuma realizar e que foi já publicamente denunciada como tendo deficiências metodológicas crónicas e por não ser inclusiva, aberta, transparente e satisfatória, não permitindo que o povo, a sociedade, sejam suficientemente informados sobre a necessidade, as razões, os critérios, os custos e os benefícios de uma dada proposta(4).

Reafirmo aqui (e tenho certeza que estarei a dar voz a muitos/muitas que gostariam de assim se posicionar publicamente): “Nós temos de ser parte activa da vida do nosso país. Enquanto soberano nós não concedemos uma carta em branco aos governantes eleitos (apesar das subsistentes dúvidas sobre a lisura dos pleitos eleitorais recentes)”.

No ciclo eleitoral de 5 anos, o período entre as eleições deve ser encarado como um processo social de permanente negociação dos termos que levaram à eleição «daqueles governantes», que devem trabalhar COM o povo para a realização das acções necessárias para garantir que haja a governação (participação incluída) necessária para garantir a paz social como BEM PÚBLICO, assente em princípios éticos e afirmada como princípio constitucional. Isto implica:

• A afirmação da Democracia e do Estado de Direito como condição para a realização de Direitos Humanos e do Dividendo da Paz;

• A despartidarização do Estado e das instituições, fomentando a liberdade de ser, de estar e de se expressar;

• O reconhecimento do valor do pluralismo e o valor do outro, desconstruindo a ‘figura do inimigo’.

Trata-se de conceber a paz não como “o fim da guerra”, mas como «o» processo que conduza e produza:

• A Justiça Social nas suas várias dimensões (restaurativa e redistributiva) pela eliminação das desigualdades e todas as formas de exclusão e de violência;

• A recusa de uma cultura de medo e da violência estrutural;

• O perdão, baseado na verdade, no diálogo e no respeito, como condição de futuro comum;

• A construção de uma memória social problematizando o passado e criando as condições para a progressiva afirmação da Angolanidade enquanto processo de aspiração e construção de um novo humanismo numa sociedade brutalizada;

• A reconhecimento da centralidade do papel da EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA, que nos ensine a pensar e não a obedecer(5);

Com um entendimento de paz social nestes termos a questão da segurança nacional deixa de ser um problema de alguns, passando a ser uma preocupação e um cuidado de todos;

Em jeito de nota sobre reflexões a desenvolver na continuação desta primeira abordagem, gostaria de lembrar uma série de outros problemas, relacionados e derivados da maneira como as questões acima apenas esboçadas forem encaradas e decididas. Defendi, acima, a ideia que, se nos centrarmos na construção da Paz Social estamos a trabalhar para a Segurança Nacional na perspectiva mais sustentável possível: ninguém mais do que a sociedade tem interesse em preservar uma paz que sirva a todos. Ou seja, precisamos trabalhar no que garante a Segurança e não continuar trilhando o caminho do que, crescentemente, vai criando e generalizando Insegurança.

Na contramão, é mister chamar a atenção para outras questões muito pertinentes, como por exemplo, os considerados “órgãos de direcção e de consulta” (Secção II, art.º 14 e seguintes) – ignorando mais uma vez o poder legislativo e criando mais um Conselho -, a Secção VI (Direcção e emprego das forças e serviços do sistema de segurança nacional) art.º 33 e seguintes, e muito particularmente a Secção VII, art.º 36 e seguintes (medidas e formas de actuação). Neste último caso, a importância de se conhecerem tanto as disposições constitucionais quanto as normas internacionais sobre direitos humanos em situações de excepção e de emergência, e a competência de declaração dos Estados de Sítio, de Emergência e de Calamidade Pública.

(1) Quem estiver interessado pode solicitar os 2 documentos finais: o Documento de Síntese e Considerações Finais, e o Dossier das Comunicações;

(2) Abreu, Cesaltina. “A propósito da nova ‘tentativa de assalto’ ao espaço de acção cidadã”, Kesongo, 21 Maio 2023;

(3) Vale lembrar que Angola e o único país de língua oficial portuguesa em “Ainda” funciona como «adverbio de negação», ou seja, significa não feito/realizado e sem data nem ideia de quando isso irá/poderá acontecer;

(4) “Posicionamento Conjunto sobre a proposta da nova DPA”, OPSA, LAB, ADRA, 9 Janeiro 2023;

(5) “Os Pilares para a construção do edifício da Paz”. II Ciclo de Debates LAB/GRAD sobre «A Paz que não temos». Sessão de encerramento, 5 de Outubro de 2023.

29 Janeiro 2024

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