A PRECIPITAÇÃO DO GOLPE
Não podemos esquecer, nunca, que o elemento considerado mais influente para justificar o cortejo de mortandade foi a denominada “morte dos comandantes”. Mas quem os assassinou? Este é um elemento que teremos de exorcizar para se comprovar quem praticou tal acto hediondo e aparentemente absconso.
POR CARLOS BENTO
O MPLA, parte do movimento de libertação nacional em Angola, que assumiu unilateralmente o poder com a independência, envolveu diferentes forças para a resistência contra a ocupação colonial. Entre as principais forças em presença no MPLA destacavam-se:
a) Uma força composta por pessoas ávidas por expulsar os colonialistas, sem formação académica ou política, apenas imbuídos por espírito nacionalista ou mesmo, apenas, de revolta contra as forças de ocupação. Talvez possamos cotá-los como a maioria e também sem outro objectivo que não a declaração da independência política.
b) Um segundo grupo de pessoas, com grande pendor nacionalista, alguns dos quais com formação académica superior com tendência social-democrata, mas que, para além da obtenção da independência política, se contentavam em ficar no poder em substituição dos colonialistas. De entre os líderes deste grupo pontificava Lúcio Lara. Este, à Leonor Figueiredo, declarou-se impressionado com a inesperada diversidade política entre os mais novos e disse mais: “Quando a delegação que eu chefiei chegou aqui, encontrámos uma juventude agitada pra burro, como nós dizemos, uma juventude dinâmica, altamente agitada e muito mais marxista do que nós pensávamos, porque não tínhamos ideia semelhante e nem sequer falávamos muito no marxismo, embora por princípio de comportamento muitos de nós fossemos marxistas…”1.
c) Um terceiro grupo de pessoas enquadradas na organização política e militar de resistência ao colonialismo, desde os tempos da guerrilha, não satisfeitos com a obtenção da independência política, buscavam o aprofundamento desta para a satisfação dos interesses das camadas mais desfavorecidas da população. Este grupo também integrava intelectuais comprometidos com estes objectivos. Na direcção política do MPLA pontificavam, entre outros, Nito Alves e José Vandúnem.
Entre os membros da direcção do MPLA existia o presidente Agostinho Neto, como garante da aparente Unidade.
Até à declaração da independência de Angola viveu-se a época do sonho, mesmo após duas fracturas que se precipitaram durante o ano de 1974. Apesar disto, as restantes forças, do interior e as vindas da mata se uniram em torno do presidente, tendo como objectivo a obtenção da independência. De acordo com as circunstâncias e os objectivos imediatos, as três correntes de opinião se foram unindo ou desavindo, sempre com Agostinho Neto como aparente referência de unidade. As desavenças agravaram-se depois da independência política, de meados de 1976 até Maio de 1977, fundamentalmente entre a corrente social-democrata e as outras correntes de pensamento, principalmente no que dizia respeito à execução do Programa Maior do MPLA, as independências socioeconómica e financeira e como conduzi-las.
No dia 27 de Maio de 1977 as forças militarizadas enquadradas pela corrente social-democrata, atrás identificada, realizaram um “golpe de estado perfeito”2 e, no sentido de tomar conta da efeméride durante anos a fio, tomaram medidas repressivas de ordem política, militar, social e económica para que, “pelo menos por 40 anos se mantivesse um manto de silêncio sobre o assunto”3. Aliás, havia gente nas estruturas dirigentes do MPLA que já vinha com alguma experiência repressiva noutros países africanos, como na Argélia, onde, grupos lá exilados na altura, tiveram participação no processo de eliminação dos “partisans” apoiantes de Ben Bella, no decurso e após o golpe de estado realizado por Houari Boumédiène, aliás Mohamed Boukherouba4. Terá sido Dilolwa a proferir as seguintes palavras numa reunião do bureau político do MPLA: “temos que reviver o processo da Argélia com os nossos comunistas”5.
Para os vencidos não é cabível comemorar uma efeméride relativa ao golpe de estado de 27 de Maio de 1977, mas estes 46 anos podem ser caracterizados como uma efeméride, se pensarmos no sentido que a expressão assumiu para a historiografia angolana,
mormente a partir de 26 de Maio de 2019, com o “pedido de perdão” por parte do Presidente da República de Angola.
Durante estes 46 anos houve produção de muita informação, principalmente da narrativa dos vencedores. Estes investiram bastante na sua narrativa e pensaram que esta seria eterna. Os vencidos foram enviando artigos para os jornais em memória das vítimas e umas quantas cartas dirigidas ao então presidente, José Eduardo dos Santos, das quais nunca receberam qualquer resposta. Embora ingrato, o 27 de Maio de 1977 tem de ser entendido como um acontecimento importante. Assim, é oportuno que efectuemos o balanço de toda a produção de informação relacionada com a data e equacionemos o que há para fazer a nível táctico e estratégico.
Nos 3 últimos anos tem sido notável o interesse despertado pelos eventos que vão marcando a data, diferentemente do que se tem passado nos 4 últimos decénios, principalmente ao nível da juventude.
Qual a origem de tal aceitação?
Relativamente à academia, apenas existia interesse pela narrativa dos vencedores. Era a única que lhes chegava e reinava um grande temor em mostrar interesse pelo acontecimento. Neste momento, os interesses vão-se alterando e os vencidos já vão sendo ouvidos. Velhos mitos estão a ser quebrados, graças à intensa busca histórica efectuada pelos sobreviventes e familiares das vítimas6, devido a algum “desprendimento político” motivado pelo distanciamento histórico: mesmo alguns “tabus” vão sendo criticados sem que as críticas sejam consideradas contravapor. Processa-se uma mudança geracional, sendo cada vez mais frequente que pesquisadores do tema não tenham parti pris. Assim, acaba por ser destacado maior interesse pelo acontecimento, mesmo menosprezando os revolucionários vitimados no dia e nos anos seguintes.
O actual “deslocamento de sentido” do interesse pelo tema do 27 de Maio de 1977 apresenta-se como resistência para obtenção de alterações sociais de características democráticas. A juventude de que se vem falando, entre os quais existem muitos órfãos, terão a responsabilidade futura pela obtenção da verdade histórica e pela desconstrução da propaganda emitida pelos vencedores. Vem-se confirmando que os civis também tiveram responsabilidades na tortura e nos assassinatos. As diversas instâncias não constituíam um todo homogéneo e articulado, desconectado da direcção política7, etc. Por tudo isto podemos considerar que entramos numa nova fase para produção da história sobre o período em apreço. Embora o interesse maior, ou seja, a quantidade de eventos de memória não tenha sido realizada no interior do país, pois o temor ainda impera, acreditamos que o actual interesse pela história recente de Angola predomine sobre as pesquisas históricas acerca de outros períodos. A juventude está directamente envolvida na funguta8 e interessada nas batalhas pelo poder.
O que poderia incentivar e dar um maior impulso no interesse da juventude e dos historiadores? Certamente seria a abertura dos arquivos dos serviços de segurança, do MPLA, das FAPLA e da fundação Tchiweca9.
Em 1977 os militares eram uma instituição autónoma, marcada pelo isolamento, ou estariam ao serviço de determinados grupos sociais? Em que modelo poderíamos enquadrar o regime militar angolano à época? Qual a singularidade do caso angolano?
Qualquer destes temas dá “pano para mangas”, havendo, entretanto, alguns elementos que podem ser trazidos à pitança: deveremos trazer à memória as circunstâncias em que se realizou a guerrilha contra as tropas de ocupação colonial10; a luta entre os diversos movimentos de libertação nacional; o suporte ou não dado pela direcção do MPLA às suas regiões político-militares; as traições; o estado em que se encontrava o movimento de libertação nacional à época da revolta militar ocorrida em Portugal no dia 25 de Abril de 1974; e a tentativa de reorganização do movimento de libertação nacional. A partir destes temas (e o que mais se possa acrescentar) se elegerá a memória que constituirá o conjunto de versões que revelará o por que e como se instalou o poder em Angola (na independência), por que motivos a guerra prosseguiu com envolvimento directo de interesses internacionais enquadrados pela guerra fria e como se processou a luta pelos interesses dos grupos sociais menos favorecidos em Angola.
Numa abordagem séria sobre os tempos da guerrilha, tendo em consideração os relatos que vêm sendo feitos ao longo dos anos, exceptuam-se as acções realizadas contra a ocupação colonial nas chamadas 1a Região político-militar, na 2.ª e na 3.ª, entre outras, até ter ocorrido a “Revolução dos Cravos” a 25 de Abril de 1974. Com o decorrer dos tempos pode ser que tenhamos mais informação e as fontes nos forneçam expressivas revelações, para reforço da memória, ainda que se trate de depoimentos individuais11. Alguns dos relatos serão bastante difíceis de comprovar pois, como se vem sabendo, quando um antigo ou actual politicamente exposto falece, a polícia invade a sua casa e “caça” tudo quanto é documento, de escrita manual ou em computador12. Podemos invocar exemplos como os de Dilolwa, do Ciel da Conceição (Gato). E não falemos de Nzaji ou do Pitoco13, só para citar estes…
No âmbito das histórias individuais, cumpre-me lembrar que Saydi Mingas, supostamente assassinado pelos vencidos, teve um funeral de herói em 1977, mas só 45 anos depois foi entregue a certidão de óbito à sua família e preparado um cenário de filme propagandístico, entregando a dita certidão no mesmo dia que se entregou a certidão de Nito Alves, com as filhas de ambos em ambiente de encenado “perdão”. Foi de muito mau gosto, Sr. Ministro14 da (in)Justiça e dos Direitos (des)Humanos!
Para efeitos de todo o processo de guerrilha, bem como dos acontecimentos relativos ao 27 de Maio de 1977, do lado das pessoas que defendiam os interesses da população menos favorecida certamente não estão esgotadas as fontes capazes de mais revelações. Não podemos esquecer, nunca, que o elemento considerado mais influente para justificar o cortejo de mortandade foi a denominada “morte dos comandantes”. Quem os assassinou? Este é um elemento que teremos de exorcizar até às últimas consequências para se comprovar quem praticou tal acto hediondo e aparentemente absconso. Esta é a maior controvérsia actual já que vai estando cada vez mais evidente quem efectuou o “golpe de estado”. Mesmo a existência de aceitação escrita por qualquer detido nada prova pois, com a tortura exercida pela DISA, qualquer “sequestrado” assinava qualquer confissão15, até para tentar salvar outros.
Uma situação controversa, mas hoje mais evidente, foi também a condescendência de Agostinho Neto para com a “linha dura” do MPLA, ou seja, os social-democratas aliados à extrema-esquerda. Até se pode entender a perspectiva de não-alinhamento, o que desalinha é a prepotência, o despotismo. Esta ala do MPLA cometeu uma série de arbitrariedades, o que provocou a paulatina degradação da luta pelos objectivos estratégicos por que se lutava depois de se haver conseguido a independência, ou seja, depois de se haver cumprido o Programa Mínimo do MPLA. Quanto ao Programa Maior, isto é, a luta pela independência socioeconómica e a formação de um partido capaz de orientar as fases da sua implementação, de acordo com as realidades da República Popular de Angola, aqui se notava a grande controvérsia política, aqui se digladiavam as duas posições: a favor e contra a sua consecução. Como esta venceu, vemos hoje o desenrolar de todo o cortejo neocolonial, acompanhado pela desqualificação do ensino e hipoteca do futuro, com o olhar silencioso, mas participativo, de Cuba.
Dizíamos então que os social-democratas angolanos foram conquistando cada vez mais espaço e poder, com tempo para arquitectar um projecto repressivo baseado numa “operação de limpeza” violenta e longeva iniciada bem antes do golpe16. Como exemplo paradigmático da estranha repressão que se ia operando em Angola, refere-se o de uma primeira detenção de Sita Valles no decurso do ano de 1976: circulava por Luanda um documento dos Comités Amílcar Cabral (CAC) e, como militante do MPLA integrada no Departamento de Organização de Massas (DOM) Nacional, esta deu uma orientação a um militante17 do sector estudantil para o policopiar e distribuir aos membros das células de base (Grupos de Acção) para discussão; este foi efectuar as cópias nas instalações da pró-Associação de Estudantes da Universidade de Luanda (pro- AEUL), tendo sido visto a fazê-lo por um funcionário da Universidade que o foi denunciar; este estudante foi detido pela DISA e, durante a sua inquirição, descreveu o trabalho que realizava e de quem havia recebido orientação; foi libertado e, acto contínuo, a DISA deteve Sita por vários dias. Ainda assim, Nito Alves foi, até ao fim dos seus dias políticos, acreditando na seriedade da direcção política do MPLA no que se refere ao cumprimento dos seus Estatutos. Esta direcção soube aproveitar-se da inocência e pureza dos ideais e ideias de Nito Alves até ao seu aniquilamento e de quem defendia os mesmos ideais, dentro e mesmo fora do MPLA. Só o que se acaba de relatar justifica a evolução que bem caracterizou diversos episódios do período pós-independência. Vejam-se os resultados da 3a Reunião Plenária do CC do MPLA18; a constituição da comissão de inquérito ao fraccionismo sem a divulgação de quaisquer resultados, mas com “desfecho” antecipadamente previsto19 ; a “orientação superior” para que não se divulgasse as “13 Teses em minha defesa” de Nito Alves; e a “sentença de morte” para quem tivesse lido as ditas Teses. A não ser verdade o que se vem dizendo, pergunta-se: o que temos agora em Angola? Com a prostração de políticas em defesa de quem mais sofreu com a colonização, não é uma sociedade neocolonial? Até a sustentação de que houve “um golpe dentro do golpe” é falsa. No pós-independência, para os social- democratas surgiu uma fase completamente distinta das anteriores: tornou-se necessário “deitar para o lixo” o Programa Maior do MPLA. Quem o quis implementar teve de ser abatido. Os social-democratas trataram de afirmar a necessidade de um projecto autoritário para eliminação de qualquer forma de alteração da ordem social vigente, mas permitindo o alastrar da “corrupção”, tendo como finalidade a inclusão de Angola no “âmbito da democracia ocidental e cristã”20.
A crença de implantação de uma chamada “democracia de tipo ocidental” em Angola empolgou de maneira diferente as diversas linhas de pensamento do movimento de libertação nacional angolano. Os social-democratas desde muito cedo se preocuparam em “tomar conta” das forças militares21. É óbvio que, quando foi possível, passaram a mostrar o seu poder utilizando a tortura, o assassinato e o extermínio, dispensando Neto de praticar martírios com as próprias mãos. Quanto à repressão após o “golpe perfeito”, não cola a atribuição de responsabilidades a militares subalternos, praticantes de “excessos que possam ter desvirtuado a repressão”, sem a aprovação dos “oficiais-comandantes”. Pelo contrário, o golpe foi preparado por estes com um grande auxílio/comando de civis como Lúcio Lara, Paulo Jorge, Luandino Vieira, Rui de Carvalho, Costa Andrade (Ndunduma), Manuel Rui, entre outros. E, uma fatia importante das operações de tortura e repressão violenta foi açambarcada por civis dando, mesmo, ordens a militares: Lúcio Lara mudou-se de armas e bagagens, uns dias antes do 27 de Maio de 1977, da Sede do MPLA para o Ministério da Defesa e dava ordens a todos os níveis da hierarquia militar, orientava listas para prisões e execuções22 , sem nos esquecermos da tristemente célebre “Comissão de Lágrimas”, maioritariamente constituída por civis, integrando dois carrascos confessos (Manuel Rui Monteiro e Costa Andrade – Ndunduma).
Foram, definitivamente, as estruturas dirigentes dos militares e dos civis que coordenaram, orientaram e executaram, a seu bel-prazer, as acusações, as torturas e as execuções sumárias no “golpe e depois do golpe”. Mesmo a preparação do clima de terror antecipadamente adubado para depois do “golpe” foi devidamente previsto para que, durante décadas, ninguém ousasse falar do assunto. Existem, mesmo, relatos de que ocorreram outras repressões mais recentes, obra dos mesmos estrategas de Maio de1977, e suas consequências.
Como é sabido, criou-se uma polícia política com uma mistura de polícia civil (CPPA), polícia militar, militares dos diversos ramos das forças armadas, polícia de fronteiras, populares militarmente organizados e entregues ao comandante Paiva Domingos da Silva e, até, bombeiros. Estas foram as forças responsáveis pela execução directa da tortura e extermínio; faziam o trabalho sujo que surgia aos olhos da população, eram a força avançada que garantia a vitória completa sobre quem defendia os interesses dos desfavorecidos no interior do movimento de libertação nacional angolano. Isto não significa que, por maior autonomia que tivessem aquelas forças, as tornassem independentes em relação aos “oficiais-comandantes”23. Não podia ser de outra forma para não se correr o risco de haver quebras de sigilo das operações com maior secretismo24. Quem estivesse informado destes assuntos e não fosse parte do círculo golpista também foi liminarmente executado. As justificações que podem surgir hoje por parte de alguns civis que participaram na repressão e vêm desvalorizando a sua intervenção25, para estes a tortura tinha o mesmo significado que para os torturadores, ou seja, era um mal menor. A dita “comissão de lágrimas” até pode ter sido criada com o objectivo de salvar vidas, mas, salvo raras excepções, o que aconteceu foi precisamente o inverso, acrescentou repressão.
A partir do que foi anteriormente exposto, torna-se fácil surgir hoje a tese dos “excessos”. Este discurso é substantivamente fraudulento. Em 2022, o poder apenas teve uma questão em consideração para a sua estratégia: festejar, em Setembro/2022, o centenário de nascimento de Agostinho Neto, como o “herói maior”, logo após ser anunciada a vitória prevista para as eleições “democráticas” que então ocorreram. Mas podemos afirmar, baseados nas evidências empíricas e relatos diversos, que a tortura e o extermínio foram oficializados como práticas autorizadas de repressão pelos “oficiais- comandantes” e, até, pelo “comandante-presidente”, após o logro da apresentação da célebre “morte dos comandantes”26 . E não devemos esquecer que, quem se oponha a este objectivo imediato do poder, o espantalho da “corrupção” ou outro poderá surgir sempre como fantasma “impeditivo” da sua actividade e contra si serem executados processos de censura e repressão, que poderão provocar o seu desaparecimento precoce.
As altercações
Durante pouco mais de 4 décadas se repetiu traiçoeiramente a versão de que houve “golpe e contragolpe”. O poder paga a bocas e mãos de aluguer, sempre na perspectiva de que a narrativa oficial é a verdadeira versão dos factos. Até no Brasil se assestou influências para consumo interno e internacional, através da academia. No Brasil, entre 1971 e o ano 2000 publicaram-se 214 teses de doutoramento e dissertações de mestrado sobre a ditadura militar neste país27. Na “tentativa” de criar uma narrativa internacional credível, o poder em Angola apostou em aproveitar a experiência brasileira e avançou para a academia deste país. Nunca quis nada com a academia nacional, ao invés, recrutou 2 ou 3 académicos de aparente verticalidade para propagadores da narrativa oficial. De recordar, ainda, que o Brasil foi o primeiro país a reconhecer oficialmente Angola, como República Popular, mesmo em plena ditadura militar, à altura com o general Ernesto Geisel e “sus muchachos” da linha dura. Estava-se no início das particularidades da história recente de Angola.
De início, talvez a produção histórica tenha sido influenciada pelo marxismo, mas não sem oposição. Que o diga Edgar Valles quando, membro da Comissão Instaladora da Faculdade de Direito em Luanda se dirigiu ao coordenador do grupo para elaboração da história de Angola (e coordenador daquela comissão) – Henrique Abranches – e lhe referiu que, de momento, “havia todas as condições para se criar uma faculdade vermelha”. Abranches imediatamente se pôs a caminho para informar o Lúcio Lara e trataram de mover, sem muito ruído, uma feroz perseguição a Valles.
Algumas aproximações marxistas ainda podem ter ocorrido entre o “golpe” de Maio e a realização do I Congresso, onde foi proclamado o partido marxista-leninista (sem marxistas nem leninistas), “sob o olhar silencioso de Lenine”. A partir do I Congresso do MPLA, a historiografia e as análises dos contextos sociais, económicos e políticos têm-se baseado em oposição à defesa dos interesses dos menos favorecidos, tendo-se abandonado explicações fundadas em conceitos como “classes sociais”, “modo de produção”, “estrutura económica” e “estrutura social”. Optou-se, então, por uma estratégia de conhecimento a enfatizar o indivíduo, o seu quotidiano, as suas emoções, a sua trajectória pessoal, etc., opções que se foram refletindo na escrita da história e no quotidiano do poder. De notar que as pessoas que possuíam conhecimento do que se passava nas estruturas dirigentes do país e que se opunham a tal estratégia foram exterminadas e sequestrados os documentos que pudessem levar a população ao conhecimento do que ocorria na então República Popular de Angola.
O número reduzido de sobreviventes aos massacres perpetrados após o “golpe perfeito” foram-se encontrando, trocando dados, recolhendo documentos e demais hipóteses de informações boca-a- boca até que, em 2019, com o pedido de “perdão pelos excessos cometidos” pelo poder estabelecido em 1977 efectuado pelo actual Presidente da República e a publicação das “13 Teses em minha defesa” de Nito Alves, se reinicia um processo em busca da verdade da história, havendo abordagens com a profunda finalidade de se chegar com precisão às causas, ao golpe e suas às consequências. Mas só o contraponto entre as diferentes concepções, acertos e desacertos e correntes discrepantes, com a intervenção directa dos participantes nos massacres se poderá avolumar o conhecimento e constituir um contexto histórico consensual.
Como materializar este conhecimento?
1) Através da constituição de uma “comissão de verdade” onde, sem temores, os sobreviventes, os algozes e demais entidades envolvidas no “golpe” possam exorcizar todos os seus fantasmas, por mais tempo de trabalho que esta comissão venha a ter;
2) Envolvimento de cientistas forenses e demais entidades internacionais independentes com experiência em matéria semelhante (UA e ONU);
3) Criação de interesse em academias nacionais e internacionais para abordagem e aprofundamento de temas relacionados com os movimentos das forças em confronto, os movimentos sociais urbanos, a arte e a cultura, a imprensa, a censura, a existência e actividade dos sucessivos governos, o movimento estudantil (origens, destruição e possível renascimento) e o estudo do próprio golpe, entre outros.
Com o levantamento dos movimentos sociais urbanos ficaremos com a indicação da transição da influência do poder colonial para a fase de transição para a independência, com o predomínio académico de forças comprometidas com a revolução e o seu total aniquilamento com o golpe. De notar ainda que urge transmitir as informações relevantes sobre estas matérias pois, no que concerne ao movimento operário, sindicatos e movimento estudantil (e mesmo sobre a música) são tarefas da revolução. Os democratas revolucionários não receiam uma boa conversa, têm ideias, estudam, organizam, não têm medo de dialogar com ninguém. Precisamos destes outputs e a geração com algum conhecimento sobre estas matérias está “em extinção”. Os subjectivistas inventarão mentiras descaradas e utilizarão “documentos” forjados e/ou conseguidos através da tortura.
Considerando que a história é feita com os olhos do presente, com a participação dos actores de todo o movimento político recente em Angola, temos de garantir que a narrativa dos algozes e do poder absoluto não seja a única. Temos de valorizar a participação da resistência democrática no país pois, aqui, foi esta que se digladiou para que existisse uma democracia real, ampla e popular. Para cumprir este desiderato devemos dizer, mais uma vez, que se torna importante a abertura dos arquivos da segurança de estado (DISA), do MPLA, das FAPLA e da fundação Tchiweka para que os recursos não se reduzam a fontes não-convencionais, já que existe uma regra draconiana sobre este assunto.
Quem tem medo da verdade?
Ao fim de 46 anos após o “golpe perfeito” existem 4 formas sobre as quais devemos refletir:
a) Os ensaios de teorização da ciência política;
b) As análises da revolução democrática;
c) A avaliação do papel dos militares e a intervenção cubana a27/05/1977; e
d) A inocência do popular entendimento democrático-revolucionário com a máxima: “nós não fazemos golpes de estado, sublevamos a população”.
Hoje podemos afirmar, sem medo de errar, que os social-democratas tomaram conta das forças militares e paramilitares, da segurança de estado (DISA) e da estrutura do partido-estado, onde primava o todo-poderoso secretário administrativo do bureau político, Lúcio Lara, que se apropriou das funções de Secretário-geral (inexistente). Abocanharam as estruturas principais do poder de estado e dominaram o comité central, já que a maior parte dos seus membros era política e academicamente iletrada.
Os social-democratas, aliados aos maoistas, sentiam-se directamente ameaçados pela revolução popular, considerando a capacidade política e poder organizativo dos seus actores; temiam não conseguir controlá-los, daí a solução pelo “golpe de estado perfeito”. Ainda por cima, é voz corrente que os democratas revolucionários possuíam alguma importante força militar leal e, ao nível político e social, tinham um aparente controlo daquilo a que se generalizou chamar o “Poder Popular”. Por outro lado, projectava-se a realização do I Congresso do MPLA cuja preparação sugeria a vitória da revolução democrática e popular.
Neste âmbito, existem duas questões que justificam plenamente o que atrás foi dito:
a) Por que o poder da social-democracia impediu a divulgação das “13 Teses em minha defesa” de Nito Alves?
b) Por que apressou o golpe?
Em primeiro lugar, para as forças da social-democracia era importante que não fosse público o que se passava ao nível do poder (incompetência, corrupção, mentira, desvirtuação do poder popular…) nem das acusações infundadas aos defensores dos menos favorecidos, dentro do comité central e do bureau político; por outro lado, antecipando o golpe ao Congresso, garantiam evitar uma derrota anunciada. Ainda assim, depois de terem executado o golpe e terem realizado “o seu” Congresso, prepararam todo um ambiente de “silêncio”, mesmo sem oposição no interior do partido e na sociedade em geral. Para não correrem riscos, assassinaram todos os indivíduos que confessaram ter lido as “13 Teses”. Mesmo que alguém não as tivesse lido, mas lhes interessasse liquidá-lo, imputavam-lhe essa acusação e o fuzilamento (ou outra forma de extermínio) estava garantido. Justificando uma operação social de limpeza, ou seja, os assassinatos generalizados, o próprio Henrique Santos (Onambwé) referiu, no decorrer de um interrogatório, que tinham sido “os próprios, isto é, a DISA, a implementar a operação, mas que deveriam tê-la executado mais cedo” (sic)28.
No sentido de haver apenas uma narrativa, os vencedores fizeram todos os esforços para exterminar toda a gente que tivesse informação relevante sobre os temas que devem vir à liça para se chegar à verdade. Não conseguiram! Sobreviveram algumas pessoas, como Lopo do Nascimento29 e poucos mais, que se foram mantendo no poder ou nas suas franjas. Quanto aos sobreviventes da mortandade, tem havido um enorme esforço para recuperar factos que nos possam levar à verdade, o que temos vindo a conseguir “malembe malembe”30. Daí que alguns algozes, enfurecidos por haver sobreviventes que os possam denunciar, façam afirmações do tipo: “deviam ter sido todos mortos pois também eram culpados”31.
Nesta fase de transição, a que estão obrigados os sobreviventes da tragédia?
Para além das questões de ordem heurística, cumpre-lhes prestar a maior colaboração para divulgação de todas as questões presentes no debate amplo, no âmbito da ciência política e do quotidiano social da época (1975/77/80). Para além do mais, cabe aos sobreviventes transmitir as informações/conhecimento(s) acumulados ao longo dos anos para que os historiadores e sociólogos consigam explicar a dimensão social que atingiram os crimes praticados pela cadeia criada pelo poder abocanhado pelos social-democratas no poder, com a consequente mácula de ordem jurídica. Todo o esforço dos social-democratas foi no sentido de mobilizar todos os seus recursos para negar quaisquer concessões às populações trabalhadoras, já com orientação para instauração do neocolonialismo. Com este objectivo também se comprova a negação da implementação do Programa Maior do MPLA, ou seja, tratar das questões inerentes à independência socioeconómica por meios democráticos e revolucionários.
Tendo previsto que os representantes da democracia revolucionária no interior do MPLA ameaçavam frontalmente os interesses dos aspirantes a burguesia nacional e neocolonial, estes, percebendo os riscos, optaram por não deixar aqueles livres para chegarem ao Congresso de Dezembro de 1977 e promoveram a conspiração golpista. Isto é de tal forma verdade que, ainda hoje, nenhuma opção pela democracia ou revolução consegue marcar a agenda política nacional. O programa do MPLA é, desde há muito, semelhante aos programas dos partidos da oposição. Assim o MPLA ocupou o espaço reservado à oposição. Onde se pode notar diferença entre ambos, na implementação dos programas, é nos seus membros.
Quanto ao golpe que ocorreu em 1977 não foi contra Nito e/ou contra Neto. Foi um golpe contra um movimento civil e militar que se impunha pelos seus ideais e objectivos socioeconómicos e organizativos que poderiam conduzir Angola para uma sociedade mais justa e equitativa, que se contrapunha ao regime monocrático dos representantes da social-democracia.
Estes pensaram que, se as ideias democráticas e revolucionárias vingassem num processo radical de distribuição da riqueza e do poder, afectaria os seus interesses de classe e o sentido do “desenvolvimento” brutalmente desigual que pretenderam para o país e instituíram. Para isso também os civis participaram, com preponderância, na conspiração, nas reuniões em casa do Jujú e de outros, como refere Nito Alves nas suas “13 Teses”32, embora tenha sobressaído o papel dos militares apoiados directamente pela força militar cubana estacionada em Angola.
Às forças da social-democracia faltava-lhes, entre outros, o apelo ideológico e programático que os pudesse levar a ter um massivo apoio popular. Então, trataram de alinhar o “inimigo interno”33, unir as bases do MPLA sob seu controlo (depois de marginalizados os adeptos da democracia revolucionária, incluindo os seus amigos) em torno dos seus ideais e, daí, partirem para a “inevitabilidade do golpe”, único caminho que lhes restou para que os interesses da burguesia nacional e internacional assomassem o poder. Foi assim que a elite orgânica da época fez prevalecer os seus interesses. Mas, na circunstância de se operar um novo processo revolucionário em Angola, esperemos que a junção de factores adversos à sua prossecução nunca mais ocorra porque, “se queremos imaginar um caminho melhor, temos que compreender que o capitalismo nos oferece o pior dos futuros – continuando a oferecer mais do mesmo sob a aparência de mudanças constantes – e que a luta pela emancipação é, por oposição, a mais ousada das demandas.”34
NOTAS DE CONSULTA:
1 Figueiredo, Leonor. O Fim da Extrema Esquerda em Angola. Guerra e Paz, Editores, SA. Lisboa, 2017, p. 64;
2 Termo utilizado por um conhecido jornalista em Angola – Rodrigues Vaz;
3 Por ordem do Onanbwé, como referiram alguns dos oficiais da repressão, nomeadamente o Kafuma e o Geitoeira;
4 Chefe de estado-maior do exército de libertação nacional e ministro da defesa de Bella;
5 Entrevista1 (através de um antigo membro do BP);
6 De notar que quem detinha toda a informação relevante foi inapelavelmente morto para que não houvesse testemunhos. Como exemplo, podemos referir que todas as pessoas que reconheceram ante a polícia ter lido as “13 Teses em minha defesa” de Nito Alves foram passadas pelas armas;
7 Principalmente do secretário administrativo do bureau político do MPLA;
8 Luta;
9 Que insistem em manter secretismo com as suas informações;
10 Houve algumas tentativas de trazer a público uma narrativa, em que se enquadra “A dialética da guerrilha”, de Nito Alves e de outros autores, mesmo os que publicaram para se promover;
11 Alguns militares estão a apresentar obras escritas por mão mercenária e inapropriada, o que seria de evitar pois os descredibiliza;
12 Esta acção inclui o próprio computador;
13 Este não dirigente, mas um perigoso assassino, ainda com grandes crimes por confirmar;
14 No período de institucionalização da CIVICOP e até ao início de 2023;
15 Em conversa com o torcionário Agante, este referiu que, se necessário, “fariam os mortos falar; com as suas técnicas de tortura qualquer pessoa confessaria qualquer coisa, mesmo sem qualquer conhecimento do assunto em causa”;
16 Como exemplos podemos referir uma primeira detenção de Sita Valles em Junho/76 e de João Rosa logo a seguir, Nzamba, Muhongo, Kimbemba e variadíssimos outros.;
17 Rui Lopes;
18 Onde, entre outras, foi definida a opção pelo socialismo;
19 Entrevista 2: sabemos que as conclusões não apontavam para a existência de fraccionismo por referência autorizada de Maria do Carmo Medina, membro da referida comissão;
20 Com origem na Grécia antiga, democracia burguesa, representativa, mas não popular;
21 Lembramos um comentário de Bento Ribeiro (Kabulo) no dia da sua entrada em Angola, em 1975, vindo do exterior: “eu quero ficar no exército; os militares é que mandam em África”;
22 Veja-se a entrevista dada pelo Paulino Pinto João em 2014, antes da sua morte. E confissão de um membro da DISA (Fernando Coelho, o Cansado) sobre o mesmo facto;
23 Integrando militares depois patenteados como generais e demais participantes na direcção política do golpe;
24 Como exemplo, podemos apontar a existência de residências transformadas em prisões;
25 Na “comissão de lágrimas”, por exemplo: Artur Pestana (Pepetela), Manuel Rui Monteiro e Costa Andrade. Estes dois últimos é que chamavam o carrasco de serviço para os espancamentos: José de Matos ou Matos Grosso, à altura major;
26 Para conseguirem justificar a mortandade que se seguiria ao 27 de Maio, assassinaram vários responsáveis políticos: Saydi Mingas, Garcia Neto, Bula, Dangereux, Eurico Gonçalves, Nzaji e 2 membros de Comissões de Bairro. Salvaram-se Ciel da Conceição (Gato) e André Pitra (Petrof);
27 Consultado a 10-11-2022, em: http://eventos.udesc.br e https://www.scielo.br.;
28 Entrevista 3 (ao interrogado);
29 Em entrevistas diversas referiu também terem tentado assassiná-lo, da mesma forma e através do mesmo contacto para o acontecido com Saydi Mingas;
30 Devagar e bem;
31 Afirmação do torcionário Tino Pelinganga (Kabuata) na sua primeira intervenção na CIVICOP, como representante dos antigos combatentes – Entrevista4 (um presente);
32 Com documentos comprovativos existentes na segurança de estado, DISA, e que provocou o assassinato de vários dos seus membros;
33 Absolutamente necessário como factor de união da “sua tribo”;
34 Zizek, Slavoj, in Problemas no Paraíso.