Que chafurda nas lixeiras e nos contentores, mesmo ao lado das estradas asfaltadas, onde passam carros grandes, escuros. Com vidros escuros. Não se sabe quem vai lá dentro. Porque será? Passam depressa, com luzes azuis a piscar e buzinas a tocar. Dizem que esses carros levam gente importante. Engravatados. Doutores…
Este é o meu mês. Junho. Da Criança! O mês em que tudo acontece, pela criança. Em que a palavra que mais se ouve é… criança.
Sou criança, uma criança qualquer desta imensa Angola. Não importa onde nasci. No Norte ou no Sul. Não importa. Sou de Angola. Não importa também se sou rapaz ou rapariga. Sou criança. Uma entre as milhares de crianças que, neste mês, que é Junho, o que mais vão ouvir é falar palavras bonitas, discursos bem falados. Promessas vão ser prometidas. De tudo ser feito pelo futuro do país. Pelas crianças. Vai haver festas, lanches, recepções. Para Crianças. Certamente só para algumas. Centenas, milhares, não importa. Apenas algumas. As televisões vão fazer reportagens, as rádios entrevistas, os jornais vão escrever. E quando Junho acabar, já ninguém se vai lembrar do futuro. Da criança. De quem tanto falaram. Em Junho. É assim todos os anos… Vai ser assim também este Junho.
Sou criança, das muitas, muitas mesmo, milhares, que tenho a certeza, não vão aparecer nas televisões, nem vão ter voz nas rádios, nem referências nos jornais. Mas vou cá estar. Para ver comemorar Junho. Da Criança. Que devia ser todos os dias. E para todas. As crianças!
Sou criança, a mesma que te aborda nas bombas de combustível, nas ruas, junto de lojas e padarias e que te estende a mão. Tio, me dá lá só um cinquenta. Criança que a mãe mandou para a rua para pedir, porque lá em casa a fome não é relativa, é mesmo a valer. Está a doer. E quando a fome fala, a barriga dói. Você não dorme. Não pensa. Só ouve a fala da barriga que tem fome. E a mãe diz para ir pedir, porque os manos mais novos também têm fome. Tenho de ajudar lá em casa.
Sou criança, que deixou de ir à escola. Faço parte daquele número de crianças que, nos noticiários e telejornais, dizem que estão em exclusão escolar. Não estão na escola. Não vão à escola. Vou como, se tenho fome, se a barriga está sempre a falar? Merenda escolar que foi promessa prometida, aqui nunca lhe vi. Se calhar só lá nas escolas da cidade grande. Também prometeram promessa de transporte, autocarro, para os estudantes, mas nunca lhe vi também. Nem na cidade. Livros gratuitos, blá, blá, blá, é só conversa. Vou na escola como, se a escola que construíram fica lá longe, tenho de andar muitos, mas muitos quilómetros mesmo para ir na tal escola. Com chuva ou sol, no frio ou no calor, tenho de andar muito, a pé, para ir na tal escola. Que não tem carteiras para todos. Tenho de ficar em baixo da árvore. Sentar no banquinho, ou na pedra. Depois as costas também dói, no fim do dia. Professor também fica de pé. Debaixo da árvore. Vou na escola como?
Sou criança, aquela que vê, em cada buraco da estrada, uma chance para arranjar uns trocados, que alguns motoristas ainda dão. Buracos que vou tapando com areia, para aliviar a pancada dos carros que passam, devagar, por causa dos buracos. Muitos. Que a estrada tem. Vou para estrada de manhã cedo ver os primeiros camiões passar. Me dá lá só um trocado, peço aos motoristas que não param. Se calhar estão com medo que lhes vou assaltar. Mas só estou lá para atirar areia nos buracos, e ver se levo algumas moedas para ajudar a mãe para arranjar comida. Porque a fome está a falar na barriga vazia.
Sou criança, de uma localidade qualquer, até mesmo de uma cidade, que tenho de ‘cartar’ água todos os dias. Balde, bacia ou bidon. Não importa. Carrego nos meus braços ainda crianças, ou na cabeça que dói. Estão a dizer vou ter problemas no pescoço. Por causa do peso na cabeça. Mas água lá em casa não tem. Tenho de ir ‘cartar’. Todos os dias. De manhã e de tarde. Lá no chafariz, longe de casa. Minha mãe falou estava grávida de mim andava a cartar água. Então cresci na barriga dela cartando água. É por isso, então, que hoje estou também a cartar água. Todos os dias. Se calhar amanhã, também meu filho vai crescer na minha barriga. Cartando água. E quando meu filho nascer também vai cartar água. Mãe disse que no tempo da mãe dela, a vóvó, já era assim. Se calhar é por isso que lá em casa não tem água… Sou criança, que tem de andar muito até àquela chimpaca que aproveita água da chuva, quando chove, que fica perto da estrada,. A água da chimpaca é a mesma que o boi e o cabrito vão beber. Onde o boi e o cabrito fazem lá cócó e xixi. A mesma água que eu encho nos bidons que levo para casa. Água que tem cor. A cor da sede. Da falta de água. Para todos. Água que deita cheiro. Que deixa comichão no corpo quando tomas banho com ela.
Sou criança, aquela que chafurda nas lixeiras e nos contentores, mesmo ao lado das estradas asfaltadas, onde passam carros grandes, escuros. Com vidros escuros. Não se sabe quem vai lá dentro. Porque será? Passam depressa, com luzes azuis a piscar e buzinas a tocar. Dizem que esses carros levam gente importante. Engravatados. Doutores. Por isso estão com pressa. Ah, já sei, é alguém que vai fazer um discurso. Sobre a criança. Porque estamos em Junho. Passam tão depressa, que a pressa deles não lhes deixa olhar para mim, criança, no contentor ou na lixeira. Mesmo ao lado da estrada. Eles não me vêm. Não sou importante. Criança. Que estou na lixeira. Importante, é o discurso que vão fazer.
Sou criança, que é obrigada a estar nos festejos, comemorações e datas que dizem que são importantes. Mobilização. Do Dia da Criança. Todos bem vestidos. Lenços no pescoço. Mas que espera, ao sol, em pé, muito tempo, que aquela gente importante chegue. Engravatados. Fatos e vestidos que compraram no país dos outros. Os trajes da terra não lhes gostam. Na sua importância dos carros escuros com vidros escuros. Vão fazer discurso. Falam bonito. Fazem promessas. Porque é Junho, da Criança, que fizeram esperar desde manhã cedo, para falarem discurso importante que eu, criança, já não oiço. Porque estou cansada. Muitas horas em pé, ao sol. Os pés estão a doer. Com fome e com sede. A barriga está a falar. Olha, acabou o discurso. Palmas, muitas palmas. Vou voltar para casa, porque Junho também vai terminar e só no próximo ano, em Junho, vou ouvir mais discurso. Promessas…
Sou criança. A mesma que tem direitos. Dizem. Quais? Todos! Da Convenção dos Direitos da Criança que os países todos adoptaram. O meu também. Para defender. Proteger. A criança. O futuro da nação. Mas eu, criança, só tenho nome que meu pai e minha mãe me deram, não tenho bilhete de identidade. Pai diz que está difícil tratar. Então, se não tenho bilhete, como fica o resto? Os meus direitos? Ficam no papel. Guardados. Numa gaveta, à espera do próximo Junho. Da criança. Para recordar, nos discursos das promessas, que a criança tem direitos. Que ninguém esquece. Em Junho.
Sou Criança…