QUE ESTADO DA NAÇÃO?*

Há quem apresente razões para também discordar do modo como a reconciliação tem sido conduzida. A falta de diálogo, de convivência, de reconhecimento do outro explica o insucesso.

FERNANDO PACHECO

Dada a previsibilidade dos discursos de João Lourenço sobre o Estado da Nação, é fácil imaginar que no próximo dia 15 vai exaltar os ganhos da independência e da paz, mas não referirá o insucesso da educação e da situação das crianças, nem as escolas a céu aberto que marcam penosamente a qualidade do abandonado ensino primário e da iniciação – que deveriam ser o pilar de todo o sistema de educação – nem como se pensa resolver o défice de 60 mil professores. Não associará os ganhos referidos às crescentes desigualdades sociais nem à degradação da ética na sociedade e da eficácia e credibilidade das instituições e dos serviços públicos. Não falará da pobreza crescente, nem da angústia que se vai apossando do coração dos angolanos. 

Vai falar dos palácios que vão engrossando o Dubai Hospitalar angolano, mas não dirá nada sobre as condições de funcionamento que deixam muito a desejar, nem sobre as limitações de acesso ou do estado dos centros e postos de saúde. 

Elogiará os feitos no sector da energia, sem explicar como é possível haver produção no vazio por falta de investimento atempado na rede de transporte e de distribuição, penalizando as famílias e as empresas, para além dos prejuízos provocados pelos apagões. 

Apresentará o Kwenda como bandeira do combate à pobreza, mas não terá certamente argumentos para explicar como cada município pode combater a pobreza com a caricata verba de 300 milhões de kwanzas anuais (menos de 300 mil dólares), e ainda para mais quando em 2025 se conhece apenas uma execução de cerca de 72%, o que nos obriga a comparações com o despesismo das viagens, da aquisição de viaturas luxuosas e dos exageros protocolares. 

Evidenciará os ganhos da agricultura e da indústria, mas omitirá a regressão da taxa de crescimento da agricultura em 2024 de cerca de 5% para 1,7% em relação a 2023, bem como a regressão da produção pecuária em 2%. Não dirá nada sobre a dependência da indústria de matérias-primas importadas e dos prejuízos em que incorre a economia nacional. 

Louvará o papel do Canal do Cafu na luta contra os efeitos da seca no Cunene, sem manifestar preocupação com os efeitos perversos sobre o modo de vida das populações pastoris e a sua cultura, pois a ideia de transformá-las em agricultores nada tem a ver com as suas expectativas. O benefício mais apreciado por elas será, talvez, a “venda” das parcelas que lhes estão a ser atribuídas a agricultores “vientes” para poderem comprar mais gado, o que agravará ainda mais o problema da água e dos pastos, afinal o seu problema mais sentido. Ah! O projectado Vale de S. Francisco, digo, do Cunene, prometido pelo governo e empresários brasileiros. Os portugueses e os sul-africanos sonharam com algo semelhante há mais de 50 anos. Entretanto, as populações pastoris continuam a encarar o apocalipse bíblico não como catástrofe, mas sim como a manifestação do plano redentor de Deus e a vitória final de Cristo sobre o mal. 

O Presidente João Lourenço não gosta de ouvir conselhos. Ainda assim, sugiro, de modo resumido, três embrulhos de medidas que representam um contributo para quem queira olhar o futuro de Angola de modo diferente.

O primeiro embrulho engloba um conjunto de medidas que abarcam a educação em sentido lato, com destaque para a iniciação e o nível primário, o que exige forte empenho na preparação de professores com métodos modernos, construção de escolas simples e funcionais onde carteiras e casas de banho tenham prioridade sobre a empáfia da dignidade indigna. Medidas que coloquem a moral – enquanto conjunto de normas e regras baseadas na cultura e nos costumes de determinado grupo social ou sociedade – e a ética – como comportamento resultante da reflexão sobre a moral e sobre os princípios orientadores das acções humanas, no centro das relações no seio das famílias, nas escolas, nas empresas, na rua, no trânsito. Medidas que incluam um novo olhar sobre o cumprimento das leis, mas também das regras e das normas sociais. 

O segundo prioriza a transformação estrutural da economia, condição para a sua diversificação gradual. A economia angolana não pode crescer limitada ao enclave petrolífero e deixando à margem os actores mais numerosos sob o pretexto do rótulo pecaminoso da informalidade. Urge mudar de mentalidade e de abordagem em maior consonância com a realidade cultural e com o nível de desenvolvimento das forças produtivas. Urge igualmente fazer funcionar o mercado com regras de equidade, melhorar o ambiente de negócios e promover o empoderamento de actores locais de  modo a tornarem-se os protagonistas do desenvolvimento local em áreas como a  agricultura, a indústria, o comércio e os serviços e com isso estancar ou reduzir o êxodo rural.

O último embrulho diz respeito à melhoria da qualidade da democracia. Na base do recuo democrático depois do fim da guerra está o insucesso do processo de reconciliação. Ainda prevalece a ideia da existência de vencedores e vencidos, de cidadãos e de grupos de cidadãos que têm mais direitos do que outros, em termos  políticos, de acesso a riqueza e a bens materiais e não materiais, de status. Angola continuará um país adiado enquanto Holden Roberto e Jonas Savimbi continuarem a ser vistos como proscritos e sem ser reconhecido o seu protagonismo na luta de libertação. Mendes de Carvalho e Lopo Nascimento reconheceram publicamente que fizeram a apologia da UPA quando esta já era dirigida por Holden. O maior número de prisioneiros do Tarrafal era ligado à UNITA e milhões de angolanos revêm-se numa organização que continua a venerar Savimbi, incluindo em termos culturais. Nada, do ponto de vista político ou ideológico pode justificar o apartheid actual. 

Apesar do reconhecimento do papel na luta de libertação das principais figuras ligadas ao 27 de Maio, há quem apresente razões para também discordar do modo como a reconciliação tem sido conduzida. A falta de diálogo, de convivência, de reconhecimento do outro explica o insucesso. Resolvida a questão da reconciliação, processos como a abertura da comunicação social, a construção da cidadania e a afirmação da sociedade civil poderão ser encarados como um espaço pluralista e integrador de diversidades, um espaço crítico livre que influencie os poderes sem pretender participar neles, um espaço sem poder, mas com a autoridade que lhe advém dos seus saberes e competências. Um espaço de construção da angolanidade e da paz, da luta contra a fome e contra a corrupção. Um espaço a favor da justiça social, dos direitos humanos, enfim, de desenho de um projecto nacional renovado. 

*Texto elaborado a pedido da Direcção do Novo Jornal como antevisão do Discurso sobre o Estado da Nação de 15 de Outubro de 2025

**Novo Jornal, 10 de Setembro de 2025

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