PORQUE BICESSE FALHOU

As quatro razões do fracasso do Acordo de Bicesse, segundo Margareth Anstee

A causa fundamental da quebra da confiança foi a“incapacidade, muitas vezes deliberada, de ambos os lados, implementarem completamente as provisões dos Acordos de Paz relativas às questões políticas, militares e policiais ou em desenvolverem os esforços necessários para promoverem a reconciliação nacional”.

POR LUÍS DIAS

Apontamos, seguidamente, as quatro razões avançadas por Margareth Anstee, diplomata britânica que em 1992 representou o Secretário-Geral da ONU nas primeiras eleições e no processo de paz, para explicar como os Acordos de Bicesse, ficaram fadados ao fracasso. Os acordos foram rubricados a 31 de Maio de 1991, em Estoril, Portugal, pelo então Presidente da República de Angola, José Eduardo dos Santos, e pelo líder da UNITA, Jonas Savimbi, na presença de representantes de países da Troika de Observadores, designadamente Portugal, União Soviética (actual Rússia) e Estados Unidos da América.

Primeiro, Anstee criticou a estrutura adoptada durante as negociações que deram à luz os Acordos em si, em particular a fraca, senão a falta duma voz das Nações Unidas nos Acordos, que só mais tarde foram convidadas para a fase de implementação. 

Ela escreveu que se devia observar que à Organização das Nações Unidas não foi concedido um papel central, o que derivava do facto de as longas negociações terem sido efectuadas principalmente pelos três países observadores. Apontou também que houvera alguma participação da Organização de Unidade Africana e de Chefes de Estado africanos, mas, virtualmente nenhuma da ONU. Somente durante as últimas fases esteve representada, e nessa altura somente ao nível militar, pelo conselheiro militar delegado do Secretário-Geral, que actuou como conselheiro técnico nos aspectos do cessar-fogo. No entanto, não havia nenhuma representação a nível político. 

Esta crítica foi aceite, porque durante as negociações em Lusaka, o seu sucessor, Alioune Blondin Beye, moderou as conversações da paz. A mesma interrogou ainda a natureza do mandato da ONU em si, que era restrito demais quando a crise rebentou.

O papel dado à ONU pelos que assinaram os Acordos de Bicesse, era unicamente de “verificação”, como os próprios Acordos em si esclareceram: “A supervisão política global do processo de cessar-fogo será da responsabilidade das partes angolanas. A sua verificação seria da responsabilidade de um grupo internacional de controlo. Além disso, a Organização das Nações Unidas será convidada a enviar monitores para apoiarem as partes angolanas, a pedido do Governo de Angola”.

Como observamos, a natureza desse mandato impôs limitações significativas e impediu a capacidade da ONU responder quando a situação no terreno mudou tão drasticamente nos fins de 1992, e a mediação foi mesmo necessária. Naturalmente, a limitação do mandato da ONU, fez com que ela fosse forçada a operar muitas vezes com as mãos atadas atrás das costas. 

Quando as novas negociações retomaram entre o governo angolano e a UNITA, em Adis-Abeba, e mais tarde em Abidjan, a ONU procurou alargar o seu papel e incluir a mediação e arbitragem, bem diferente das tarefas de observação e verificação. Deste modo, a UNAVEM II devia funcionar como “um compêndio sobre como uma operação de pacificação não devia ser feita. Ela não dispunha de poder para intervir quando ficou evidente, muito cedo, que ambos os lados não cumpriram com o plano de desmobilização nos autoimplementados Acordos de Bicesse”.

Em terceiro, Anstee criticou a comunidade internacional e a sua falta de generosidade financeira para assegurar a paz. Ela citou a avaliação de um observador que descreveu a UNAVEM II como uma Missão da Organização das Nações Unidas executada com muito poucos recursos — uma economia falsa totalmente por parte da comunidade internacional. O Conselho de Segurança das Nações Unidas pretendia uma operação pequena e controlável, mas, mais tarde, isto foi expandido quando aprovou a Resolução 747, em 1992. Mesmo assim, as dificuldades financeiras permaneceram.

Fazendo alusão à numeração da resolução, ela comentou ironicamente que o seu papel como Representante Especial era semelhante a pilotar um Jumbo 747 “mas com o combustível suficiente somente para um DC-3!”. Contrastou-se também o subfinanciamento da UNAVEM II com o orçamento para a monitoria das eleições na Namíbia por parte da ONU, em 1990, sendo que, no ponto máximo, o número de pessoal da ONU em Angola talvez tenha chegado a 1000 efectivos. 

Em contraste, cerca de 8000 efectivos foram disponibilizadas para a monitoria das eleições na Namíbia, um país cuja população na altura representava um sexto em relação a de Angola. O orçamento geral da UNAVEM II, em Angola, de Junho de 1991 a Outubro de 1992, foi de 118 milhões de dólares, contra os 480 milhões para a operação namibiana. Enfim… a comparação com a Namíbia tornou então claro o grau de subfinanciamento envolvido no nosso país.

Em quarto lugar, Anstee aludiu que a gestão da transição para a democracia foi problemática em vários sentidos. Para ela, o conceito “quem vencer fica com tudo” também não ajudou na consolidação de uma transição suave para um governo democrático — bem pelo contrário. 

Houve propostas para garantir um papel para os que perderiam as eleições, mas uma pessoa que esteve presente nas negociações de Bicesse contou-me que se fizera uma tentativa importante no sentido de obter compromissos para os vencidos nas eleições, mas nenhuma das partes quis ouvir falar disso; cada um deles confiava em nada menos do que na vitória total. 

No decurso das discussões, alguns partidos da oposição, sugeriram que o país necessitava dum período de transição, a fim de normalizar a vida política no país, antes da realização de eleições. Nessa altura, a UNITA estava confiante de que ia ganhar as eleições, como também o seu antigo suporte, a administração americana e Jonas Savimbi não queria “aceitar menos do que ser o Chefe de Estado”, pelo que, houve uma “incredulidade genuína no campo da UNITA” quando a sua direcção soube que perdeu as eleições. 

Num país com inúmeros deslocados e de refugiadas fora de Angola, dezasseis meses era um período muito curto para realizar a preparação. Antes de assinar os Acordos de Bicesse, a UNITA requereu eleições após doze meses, enquanto o MPLA optava por um período de 36 meses, para realizar a preparação necessária. 

Apesar destas críticas aos Acordos de Bicesse e ao mandato das Nações Unidas, a razão do fracasso deve ser atribuída aos próprios partidos angolanos. 

O Secretário-geral de então, dissera em Janeiro de 1993, que a causa fundamental da quebra foi a “incapacidade, muitas vezes deliberada, de ambos os lados, implementarem completamente as provisões dos Acordos de Paz relativas às questões políticas, militares e policiais ou em desenvolverem os esforços necessários para promoverem a reconciliação nacional”.

Depois do recomeço da guerra, havia uma tendência para culpar de igual modo os dois lados, a fim de se manter as portas abertas e esperar que fosse possível chegar a um consenso, a fim de terminar com o derramamento de sangue. Com a falha desta abordagem, houve uma mudança nesta atribuição da culpa pelo reinício da guerra, que passou a cair inequivocamente sobre a UNITA, sobretudo o papel de Jonas Savimbi e a sua sede pelo poder, a qualquer custo. 

Em Janeiro de 1999, Kofi Annan afirmou que as raízes profundas da triste e lamentável guerra em Angola eram bem conhecidas. Elas residiam na escusa da UNITA em cumprir com as tarefas básicas do Protocolo de Lusaka, que insistiu para que ela desmobilizasse as suas forças e permitisse que a administração do Estado se estendesse a todo o território nacional. 

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