
Choro pelas crianças perdidas. Aquelas que sumiram das estatísticas, sumiram nas ruelas escuras, nos carros sem matrícula. Os seus risos ainda ecoam nas paredes das casas vazias. Os seus cadernos, com flores desenhadas nas margens, apodrecem em caixas esquecidas. Vejo os seus fantasmas a brincar no asfalto quente, descalços, a correr para um lugar que nunca alcançarão. São promessas que o vento levou antes mesmo de serem segredadas.
Choro pelas crianças sem futuro. Pelos olhos que aprenderam a baixar-se antes mesmo de aprender a ler. Pelas mãozinhas que empunham o peso de adulto: seja um tijolo, seja um revólver, seja o prato vazio. Os seus berços foram grades, os seus parques, becos. Alguém lhes roubou o amanhã e deu em troca um hoje interminável e árido. Elas marcham, filas de soldados-crianças, para uma guerra que não declararam.
Choro pelos amores perdidos. Não apenas os romances que morreram de desgosto, mas o amor ao próximo, que virou artigo de luxo. O amor pela verdade, que hoje é refém do algoritmo. O amor pela bondade simples, despretensiosa, que era estendida ao desconhecido na paragem do maximbombo, no balcão da barraca do Zé Gordo, no olhar no elevador. Tudo agora é transacção. Até o afecto tem preço de tabela.
Choro pela degradação da vida pública. Pelas praças que viraram crateras, pelos passeios que viram obstáculos, pelos hospitais que viram salas de espera da morte. Choro pelo desmonte lento e constante do comum, do que era de todos. Onde antes havia um largo, hoje há um prédio… ou um buraco. Onde antes havia debate, há gritaria, há insulto. Onde havia espaço público, há arame farpado e desconfiança.
Choro pela perda de amigos queridos. Uns partiram antes da hora, levados pela natureza, pela violência ou pelo desespero. Outros foram-se em silêncio, desistindo do país ou da esperança. Outros ainda estão aqui, mas tornaram-se estranhos, endurecidos pela raiva ou anestesiados pela resignação. As conversas que duravam a noite inteira agora são mensagens curtas, cheias de emoticons que escondem o vazio. A cumplicidade aposentou-se.
Choro pelo meu país. Aquele que habita não no mapa, mas na memória afectiva. O cheiro da terra depois da chuva, o semba de raiz que falava de dor e beleza, a mística de um povo que, mesmo na miséria, inventava alegria. Choro pelo país que poderia ter sido e que dia após dia se deprime, se enfurece, se fragmenta. Vejo a sua paisagem humana definhar, a sua cultura a ser sufocada pelo ruído, a sua História a ser riscada à canetada.
E no meio de todo este pranto, pergunto-me: porque ainda choro? E respondo-me gemendo…
Choro porque o pranto é a última confissão que ainda importa. É o atestado teimoso de que a capacidade de se comover não foi sequestrada. Enquanto há lágrimas, há reconhecimento da perda. E reconhecê-la é o primeiro, e talvez o último, acto de resistência.
Choro porque é o único tributo que ainda posso pagar. Flores murcham, palavras são distorcidas, protestos são ignorados. Mas as lágrimas são minhas, autênticas, salgadas e verdadeiras. São a rega clandestina para sementes que teimosamente acredito ainda estarem por aí, sob o concreto.
Talvez um dia as lágrimas se transformem em rio, e esse rio lave parte da podridão. Ou talvez apenas humedeçam a terra seca, o suficiente para uma única flor brotar. Não sei.
Sei apenas que, hoje, chorar não é fraqueza. É um gesto de memória. É um acto de preservação. É o murmúrio humano contra a barbárie.
E por isso, sim, ainda choro.










