PERCURSO PARA A INDEPENDÊNCIA. 25 DE ABRIL DE 1974: UMA DATA PARA LEMBRAR

DEPOIMENTO DE RODRIGUES VAZ*

No dia 24 de Abril de 1974, eu era subchefe de Redacção do Diário de Luanda, o vespertino de Angola, e dirigia o Cine Estúdio, na altura chamado um cinema de ensaio, cuja sala, anexa ao grande cinema Restauração, com mais de 1600 lugares, foi depois aproveitada, a seguir à independência de Angola, para albergar a Assembleia Nacional de Angola, onde funcionou até há pouco tempo.

Tinha, portanto, um segundo emprego, como colaborador da maior distribuidora de cinema de Angola, a Angola Filmes, onde, pelo meu conhecimento do cinema, primeiro como cineclubista em Lisboa, onde fui sócio do Cine-Clube Imagem, que fazia as suas sessões às 5ªs feiras no Jardim Cinema, na Avenida Pedro Álvares Cabral, e depois como membro da direcção do Centro Universitário de Cinema de Luanda, CUCL, acabava por colaborar também na programação dos vários cinemas da empresa a nível da então chamada Província.

Nessa medida, exactamente no dia 24 de Abril, eu próprio convoquei um almoço de negócios com os outros distribuidores de cinema, a Sulcine, que tinha o Miramar e o Avis, e a Mundáfrica, que detinha o Tivoli, para acertar as diversas programações. É preciso dizer que era tudo feito como de cartel se tratasse. Não havia propriamente rivalidades, pois o negócio dava para todos. Era preciso que os grandes êxitos não coincidissem, e assim era cumprido.

O almoço foi marcado para o Restaurante O Retiro da Conduta, que ficava no final da Estrada da Cuca, muito depois do conhecido Restaurante Vilela, – e próximo do que foi um dos primeiros complexos turísticos, O Roseiral, – pelo seu bacalhau assado demolhado em leite e por um churrasco de frango, cujo molho ainda agora continuo a degustar pela memória.

Um dos elementos que apareceu foi o Carlos Nascimento, então gerente da Sulcine, – que controlava os cinemas Miramar, Avis e Ngola – que tinha vindo recentemente de Paris, onde tinha visto o célebre O Último Tango em Paris, criando-nos água na boca através de um relato vivo, próprio de um comunicador único que ele era efectivamente,a que acrescentava às suas qualidades de cançonetista, que tinha apresentado como ganhador do Festival da Canção de Luanda 1965, e também como rei da Rádio de Angola.

Como jornalista que era, eu seria dos poucos que, por ter acesso aos principais jornais europeus, tinha uma noção do que estava a acontecer em Portugal, no respeitante às primeiras reuniões do MFA, pelo que senti realmente que estava a viver o fim de um ciclo. Eu reafirmo que senti isso mesmo, senti que algo estava a acabar, que vinham aí muitas novidades.

Nessa mesma noite, depois do cinema, juntei-me com a tertúlia habitual na esplanada da Cervejaria Baleizão, na Avenida Marginal de Luanda, e tudo isso veio à balha, agora com as descrições dos filmes então em voga na Europa, nomeadamente também A Grande Farra, do Marco Ferreri, objecto de grandes ansiedades. 

Depois das 3 horas da manhã, recolhi a penates, mas às 7.30 estava na Redacção do Dário de Luanda, na Avenida de Lisboa, para as tarefas habituais. O tradutor já tinha várias traduções do noticiário da Reuter e da France Presse e depressa ficámos a saber o que se ia passando em Lisboa. Finalmente, percebia-se que o regime salazarista tinha os dias contados.

Ao mesmo tempo, íamos apanhando a Emissora Nacional de Lisboa e a ORTF, de Paris, que nos iam dando a narrativa dos momentos que se iam processando. Uma das coisas que então me impressionaram muito: os contínuos, angolanos jovens, mostravam-se muito pesarosos com que estava a acontecer com o Marcelo Caetano, considerando que ele não devia ser tratado daquela maneira, pois era um cota, isto é um mais velho.

Foi um dia cheio de nervos, por vários motivos. Primeiro pelo entusiasmo libertador inicial, uma viva euforia regeneradora, depois, pelas exigências que o Marcelo ia fazendo, deixando-nos impacientes porque queríamos o sucesso da Revolução e já, sem percalços.

Pouco antes do meio-dia, tínhamos o jornal pronto para sair, mas a ordem para aimpressão final não havia meios de vir. O então director executivo, José Manuel Pereira da Costa, afilhado do Marcelo e pai da conhecida apresentadora de televisão Luísa Castelo Branco, da SIC, tinha sido convocado para uma reunião na redacção do principal diário de Angola, A Província de Angola, a pedido do então administrador principal da empresa, Rui Correia de Freitas, e do último governador-geral de Angola, Fernando Santos e Castro. O objectivo era visível: fazer um golpe de Estado proclamando naquele mesmo dia a independência de Angola.

As coisas estiveram assim decididas e passou-se aos pormenores. Nisto, apareceu na altura um aparentemente humilde funcionário dos Serviços do Comércio, de nome Francisco Morais Sarmento, que afinal era há umas décadas quem tudo manobrava em Angola, – ele era os ouvidos e os olhos de Salazar naquela colónia – a nível de administração superior, e em poucos minutos desmantelou o plano. Alertando para o perigo que poderia constituir a proclamação da independência unilateral, pois a situação internacional já não ia tolerar tal questão, lá acabou por convencer os conspiradores. Só depois das 17 horas, recebemos ordem de impressão do jornal do dia, elaborado afinal com todos os cuidados possíveis.

Na verdade, o 25 de Abril só iria acontecer em Angola no dia 15 de Julho, depois da tomada de posição dos soldados pretos angolanos a que apenas se juntou um furriel branco, o Jorge Pessoa, que foram declarar ao então Comandante-Chefe das Forças Armadas de Angola, General Franco Pinheiro, que não combateriam mais contra os seus irmãos angolanos. Este dia é que foi o 25 de Abril em Angola; até aí continuava a ser quase impossível proclamar abertamente o apoio ao MFA, e mesmo no dia 1 de Maio de 1974, eu tive de fugir numa manifestação que integrei no Largo Afonso Henriques, para não ser detido, o que viria a acontecer com uma amiga nossa, a Orquídea, farmacêutica moçambicana, que passou ainda umas noites na cadeia por dar vivas à Revolução.

Tendo-nos esquecido que quem detinha realmente as rédeas e o capital do Diário de Luanda, era a União Nacional, depressa julgámos que agora era tudo permitido. Nada mais ilusório. Depressa o Pereira da Costa, que continuou como director executivo do Diário de Luanda, expressa em editorial que, na linha dos seus patrões, era a favor da renovação na continuidade, frase que foi buscar a um célebre discurso do Marcelo Caetano.

Eu e mais um pequeno grupo de jornalistas – o Luciano Rocha, que ainda está vivo em Luanda, o Vitor Mendanha, que andou depois por Lisboa militando nos ocultismos e realismos fantásticos, o António Ramos, que viria a fazer carreira como jornalista de economia, e o Carlos Viera da Cruz, sobrinho de um poeta célebre de Angola, o Tomás Vieira da Cruz, que depois viria a fazer carreira como fotógrafo, no Diário de Notícias, em Lisboa – decidimos manifestar a nossa discordância, pois achávamos que o caminho em Angola era a independência total, o resto era estar a tergiversar. Está claro, acabámos por ter de sair, não havia volta a dar.

Uma semana mais tarde eu estava a aderir à reabertura de um título com alguns pergaminhos em Luanda, o jornal O Comércio, do grupo Champallimaud, pela mão do Raposo de Magalhães, o Chana, e que tinha como diretor o João Fernandes, na altura o homem forte do Notícia, a notável revista angolana que o João Charrula de Azevedo tinha desenvolvido nos fins dos anos 60.

Os dois primeiros meses neste jornal foram uma experiência inolvidável. Devido aos meus contactos, consegui entrevistas que muita gente julgava impossíveis, e fiz o gosto com o que eu sempre gostei mais de fazer no jornalismo: regressei às reportagens de rua, sempre emocionantes. Assim, por exemplo, fiz a primeira entrevista ao advogado Diógenes Boavida, irmão do médico Américo Boavida, que esteve na guerrilha, tendo sido abatido pelo exército português, e fiz a minha primeira reportagem de guerra a sério, em Agosto de 1974, quando grupos de taxistas invadiram o mussequeSambizanga e assassinaram barbaramente as pessoas que foram encontrando pelo caminho, homens, mas também mulheres e crianças. Foram dias e noites inesquecíveis de desespero, que me são penosas de recordar. Curiosamente, ainda tínhamos de aturar uma célebre Comissão de Controlo dos Órgãos de Comunicação Social, que era integrada por militares do MFA. Que foi extinta pouco tempo depois, felizmente.Lembre-se a propósito que o motivo dos taxistas tinha sido o aparecimento de um taxista assassinado, de que eles inculparam logo os habitantes do musseque como perpetradores, o que não correspondia à verdade, pois veio a provar-se pela Polícia Judiciária que quem o assassinara tinha sido um cunhado. Esta história merece por si só uma investigação completa pois foi nitidamente uma das manobras da CIA americana. Na verdade, nos dias anteriores foi fácil aperceber-me que a maior parte dos taxistas eram brasileiros, inesperadamente. O que se seguiu neste caso, era de prever.

Para que conste, devo dizer que não foi por acaso que, a publicação da minha entrevista que integrou as declarações do Dr. Diógenes, muito claras e certeiras, foi crucial para, na altura do primeiro governo nacional, ele ter sido escolhido para integrar o primeiro governo angolano com a pasta da Justiça. 

Na altura, apareceu na Livraria Lello, que foi um baluarte da cultura em Luanda, sob a batuta de um antigo membro do Partido Comunista Português, Felisberto Lemos, celebrado pelo Manuel Alegre como o Livreiro da Esperança, um livro do dr. António Luís Ferronha, que meses antes ali estivera à venda com o título Manual de Portugalidade, mas que agora apresentava outra capa e outro título. Como bom rato de biblioteca, eu percebi logo a marosca e zás, denuncio a batota numa pequena nota no jornal O Comércio.

O dr. António Luís Ferronha tinha conseguido fazer-se contratado pelo presidente do Zaire, Mobutu Sesse Sekou, como professor dos seus filhos, afinal um pretexto para uma operação de espionagem que teve como resultado conseguirem libertar de Kinshasa o Almirante Rosa Coutinho, que, depois de ter sido capturado em águas do rio Zaire pelas forças zairenses, chegou a ser passeado numa jaula pela capital congolesa.

Efetivamente, o Dr. Ferronha era mesmo perito em acções deste tipo, e tinha fundado, entretanto, o Partido Cristão Democrático de Angola, PCDA. A seguir à minha denúncia da sua marosca, consegue que um grupo do partido, com o pretexto de me dar informações, me convide para entrar num carro levando-me a seguir para um descampado para trás do aeroporto, onde me tentam convencer de que não devo apoiar partidos de negros, mas que devo aderir ao seu partido. Claro que não tiveram sorte, mesmo quando percebi que estava a ser raptado. Deixaram-me à porta da redacção pelas 5 da manhã, depois de se desculparem e de me levarem a beber uns copos no bar do aeroporto, o que eu aceitei de bom grado.

Como afirmei acima, o 25 de Abril só chegou a Angola com a posição dos soldados angolanos em relação de recusa à continuação da luta, no dia 15 de Julho de 1974. Na verdade, a seguir ao massacre do Sambizanga, a ida para Luanda do Almirante Rosa Coutinho como Alto Comissário em Angola foi mal recebida pelos colonos portugueses, dando origem a vários distúrbios que iam acontecendo um pouco por todo o lado. Ao mesmo tempo que davam vivas ao Savimbi, proclamavam a morte do MPLA, e tudo servia como rastilho. Numa tarde dessas, em Agosto de 74, ao passar no Largo da Portugália com a minha amiga Teresa André, que era assistente social e mestiça, só por esta razão fomos atacados pela turbamulta e levados para a esquadra para aí levarmos mais porrada. Valeu-nos que o oficial de serviço tinha sido meu colega nos Comandos e ao mesmo tempo que lhes diz que nos “ia dar o arroz”, manda-nos logo sair pela porta de trás e ainda por cima com escolta até ao hospital. Passados dois dias, em plena Rua Direita, ia eu e um fotógrafo do jornal, o António Gouveia, negro, mais conhecido como o Novato, quando outro grupo de colonos investe sobre nós; ele conseguiu fugir, mas eu fiquei a ver no que as coisas davam, e acabei por ser bem sovado e ter de ser hospitalizado. Fui manchete no jornal “Le Figaro”, de Paris, no dia seguinte. Devo dizer que estas minhas aventuras ajudaram, de várias formas, a catapultarme para os cargos que depois viria a ter, primeiro como editor no jornal das 20 na Rádio Nacional de Angola e depois como primeiro chefe de Redacção da TPA.

Em 1973, ainda o 25 de Abril vinha longe, mas já havia quem pensava no futuro. Toda a gente sabia que o governo central nem sequer punha a hipótese de haver televisão em Angola, para os angolanos não sentirem anseios de ter casas e modo de vida como os europeus, mas já havia quem pensasse na instalação de uma estação de televisão a preceito. Entre eles vários empresários liderados pelo famoso padre José Maria Pereira,que estava à frente da Rádio Eclésia, Emissora Católica de Angola.

Para começo, contrataram um profissional brilhante, que muito fez avançar a rádio em Angola: Paulo Cardoso. Autor do famoso slogan “Se não quer que noticie, não deixe que aconteça”, Paulo Cardoso estaria à frente do primeiro projecto de televisão comercial em Angola, a TVA, a qual, apesar de não autorizada pelas autoridades, chegou a ser “inaugurada”, em 1973, pelo General Costa Gomes, antes de abandonar o cargo de Comandante em Chefe das Forças Armadas em Angola. Convidado a visitar oficialmente as instalações da estação, na então Rua Luís de Camões, hoje Rua da Missão, ao lado do Hotel Trópico, Costa Gomes só aceitou fazer uma visita “clandestina”, mas as coisas estavam de tal maneira preparadas e de tal modo formalizadas, que no final da visita foi-lhe ofertada uma bobine com a reportagem da sua visita, devidamente montada e registada. De qualquer modo, foi o primeiro reconhecimento “oficial” da TVA que tinha como seleccionador dos candidatos um conhecido inspector da Pide, Manuel Moreno, que aparecia normalmente pelos cafés que nós frequentávamos.

O 25 de Abril veio portanto responder aos anseios de várias camadas da populaçãoangolana, que aspirava a traçar o seu próprio destino. Na verdade, como dizia Dom Fabrizio Salina no filme O Leopardo, «era preciso que tudo mudasse para tudo ficar na mesma». Isto não foi entendido pelo regime ditatorial salazarista e Caetano também não lobrigou os novos tempos, ao contrário de um grupo de oficiais do exército, que percebeu que, se já era uma falácia de mau gosto dizer que a guerra estava ganha, era necessário e urgente ganhar a paz, que, sim, essa era a necessidade maior.

Dum manual do exército português da altura, vale a pena transcrever o seguinte texto: «Para os militares, o interesse do estudo dos conflitos subversivos reside, ainda, no facto de a solução desses conflitos não poder nunca ser obtida unicamente pelas forças armadas e ser preciso, consequentemente, argumentar contra todos aqueles que pretendem conseguir dessa forma, isto é, que pretendem atirar sobre as referidas forças uma responsabilidade com que estas não podem arcar».

Chamando a atenção de que «o tempo trabalha sempre a favor da subversão», o exército português reconhecia, portanto, que o seu papel era conduzir a guerra de modo a arranjar condições para conversações justas, porque realmente, é em tempo de guerra que se prepara a paz.

Como o referido manual começa por reconhecer, a verdade é que um dos primeiros povos que utilizou a guerra de guerrilha foram exactamente os lusitanos, cujo sentimento de independência era aguçado porque estavam na sua terra, razão porque conseguiram pôr em alvoroço os romanos, malgrado a supremacia militar destes.

Quando a luta de libertação começou nas colónias portuguesas, em coerência com os ventos da História, a atitude portuguesa deveria ter sido, claro, começar conversações e preparar a independência como fizeram as outras potências europeias. Não quiseram isso. Lamente-se, mas chega de continuar a chover no molhado, que é o que os saudosistas da ditadura continuam a fazer. 

Em conclusão: o 25 de Abril é uma data para relembrar e comemorar, inegavelmente, tanto em Portugal como nos novos países de língua portuguesa. Apesar dos tempos perigosos que estamos a passar, é indesmentível que as coisas estão muito melhores do que no passado, mal grado os profetas da desgraça, do ódio e da mentira.

25 de Abril, sempre!

*Jornalista

One Comment
  1. RODRIGUES VAZ. Meu amigo, que me entrevistou várias vezes, sabe bem, que na REVOLTA MILITAR de 15 de JULHO de 1974 em LUANDA/ANGOLA… eu o JORGE PESSOA ter sido o único “de camisa clara” NÃO foi o mais importante. O IMPORTANTE é que foi o Tal JORGE PESSOA o único dos Angolanos presentes, que tinha saído da PRISÃO nesse mês de Abril e foi “ele” (lamento dizer)… que organizou/dinamizou… a revolta dos MILITARES ANGOLANOS e…. etc. (Sorrisos)..Averdade acima de TUDO !!!
    – ABRAÇO..

Responder a Jorge Pessoa Cancelar resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

PROCURAR