Foi ontem a enterrar em Lisboa, onde residia, o guitarrista, cantor, compositor, professor e investigador Mário Rui Silva, falecido na última quinta-feira (4) aos 71 anos, vítima de doença, com uma homenagem emocionante que contou com a presença e participação de vários músicos angolanos e não só, que entoaram canções criadas e/ou aprimoradas por si, que fazem parte do nosso património sócio-músico-cultural. Mário Rui foi distinguido, em 2022 com o Prémio Nacional de Cultura e Artes.
O texto que segue, de Evelise Borges, é uma de entre muitas manifestações de carinho, de saudade, do sentimento de perda de muitos que conviveram ou acompanharam a trajectória dessa grande figura. Mário Rui deu o seu contributo para a preservação da identidade angolana, particularmente fora das fronteiras nacionais. Morreu o homem, mas permanecem vivas as obras musicadas com o seu dedilhar e com a sua voz “meio preguiçosa”, afinal a sua marca que, de igual modo, reflectia a sua forma de estar pacífica e pacificadora contagiante, como lidava com todos os que fizeram parte desse seu longo e rico percurso entre nós. Fica a saudade, no adeus à partida desse músico/nacionalista/patriota.
Desconfio que Lisboa te conhecia os passos, de chinelos e túnica fresca de algodão, com ou sem a viola na mão, de alguns esparsos verões da tua existência.
Não é que morresses de amores por ela, mas, convenhamos, que duma certa maneira, até que Lisboa te piscava o olho.
Quis o destino, que daqui partisses para todo o sempre…
Hoje o dia amanheceu chuvoso. Uma chuvinha miudinha como quem entoa canções quase em surdina, mas num tom seguro e continuo, a passar mansamente o seu recado.
Lisboa chorou. Chorou ela e chorámos todos nós, a tua família e amigos inconformados com a tua súbita e verdadeira saída de cena.
Foram muitos os que apareceram. Foram os suficientes para acompanhar a tua velha Mãe, as tuas inconsoláveis mulher e irmã, os teus desoladíssimos e fortíssimos filhos, e netos a despedirem-se do “Moloude”.
Não sei se sabias, mas tinhas muitas e muitas qualidades, e várias delas foram hoje descritas com amor e profunda admiração que afinal muitos te devotavam.
Deu para confirmar que estavas certo, porque afinal é verdade que a tua intransigência em fazer certas concessões, foi o prumo que qual metrónomo, te ajudou a manter a cadência das tuas escolhas e atitudes.
Socorro-me da audição do “Coro dos escravos hebreus”, para me sugerir as palavras mais adequadas para me expressar, porque esta peça, tem quanto a mim, a sumptuosidade das coisas sérias e difíceis e aquele “je ne sais quoi” aquela beleza inatingível, da descrição do sofrimento, que só a música traduz.
E dito isto, arrisco pensar que, se nunca tivesses olhado com olhos de ver prós teus semelhantes, nunca terias querido entender a angolanidade, fora da conversa de copos, a que muitos ao longo de décadas se deviotaram. A tua atitude foi sempre de comprometimento para com o outro, e por isso entendeste que a abordagem da angolanidade, do ponto de vista do opressor, não te servia. E saíste em busca dos verdadeiros protagonistas da angolanidade que encontraste em Liceu Vieira Dias, Gentil Viana, etc. e em milhares de anónimos com que te cruzaste e trocaste experiências, em kimbundo ou em português.
Mas, aprendeste kimbundo e depois até fizeste uma gramática. Para mim, és o 1° filólogo de kimbundo.
De posse dessa ferramenta e, paralelamente, foste procurar a história, a razão de ser dos nossos ritmos e o cancioneiro popular para sistematizar e ficar agora já com timbres novos, mais instrumentos, mas respeitando escrupulosamente, a raiz, a origem e mantendo o DNA da mesma.
Assim tornaste-te, sem mesmo quereres, o antropólogo da música angolana. Tudo isto porque te comprometeste com um quimérico ideal de Angola que sabemos já, era, afinal, o ideal de poucos e por isso não se consubstanciou em país.
Sr Mário Rui Silva, Mestre Mário Rui, MaRui, foste um homem como poucos.
Meu respeito.
Biografia
Segundo o portal de notícias Marimba, com uma longa trajectória, Mário Rui Silva iniciou-se na música aos 9 anos, em 1961, integrando pouco tempo depois o agrupamento musical “Os Jovens”.
Por volta de 1968 abandonou o grupo, dedicando-se à aprendizagem do violão acústico com mais profundidade e tornou-se, de forma independente, num músico semiprofissional, participando mais tarde – quatro anos depois – como guitarrista, no primeiro disco do Bonga, uma obra marcada por temas profundamente nacionalistas e de raiz angolana.
A partir de 1973, começou a cultivar uma profunda amizade com Liceu Vieira Dias, que se tornou no seu “pai espiritual”, sedimentando com esse convívio, um sentimento nacionalista marcante.
Com o suporte de Liceu Vieira Dias, essa relação proporcionou também a realização de um importante trabalho de pesquisa e investigação na área do desenvolvimento musical em Angola, culminando com a edição de um CD sobre a música de Angola dos anos 40, denominado “Chants d’Angola pour Demain” (Cantos de Angola para Amanhã), 1994.