História. Entrevista com a Professora e investigadora Mariana Candido *

“A romantização da colonização e da escravatura não corresponde a verdade, não tem validade histórica”  (Parte I)

Foi nas imponentes, mas modernas e arejadas instalações do Arquivo Nacional, que finalmente encontramos recentemente a Dra. Mariana Candido, velha amiga virtual que seguia com muito interesse há alguns anos, mas com quem nunca conversamos ao vivo. Uma personagem simpática, simples e extrovertida, ao invés da visão cliché do(a) historiador(a) austera e sisuda. 

Depois das breves apresentações, a conversa fez-se natural e fluida, limitada que foi por um não agendado evento no local para que fora convidada, quase improvisadamente. Para as autoridades nacionais da Cultura e Educação, os meus votos para que em próximas ocasiões possam tirar maior proveito desta dedicada académica brasileira. 

Realizamos a presente entrevista a dois tempos, que o Kesongo divulga em exclusivo agora a primeira parte, devido a sua extensão.

POR MÁRIO PAIVA

“Sou nata e crescida no Rio de Janeiro, que como sabe, foi receptor de pessoas escravizadas e desde logo a História de África sempre foi para mim algo relevante”, introduz em jeito de apresentação Mariana Cândido, adiantando ter feito a graduação no Rio de Janeiro, “através do Professor Sílvio de Carvalho (** ver informação biográfica) que despertei para a História de Angola, em particular o período da escravatura”. 

Agraciada com uma bolsa de iniciação científica, trabalha com Sílvio de Carvalho sobre a História recente de Angola, aproveitando depois uma oportunidade para ir ao México tirar um Mestrado em Estudos Africanos na década de 90, onde esteve no famoso Colégio de México, entre 1997-2000.

No seu percurso académico Mariana Candido prossegue “depois para Canadá, a Universidade de York, em Toronto, para fazer o doutoramento, trabalhei com vários especialistas de África, em particular o Dr. Pascal Lovejoy, especialista da Nigéria. Fiz o doutoramento no Canadá, entre 2000-2006. Eramos constrangidos a estudar uma língua africana – infelizmente não havia nenhuma língua angolana – aprendi swahili”, confessa a académica carioca meio desolada.

“Vim a Angola pela primeira vez em 2003, onde estive durante os meses de Fevereiro, Março e Abril. O Arquivo Nacional ainda estava situado na Mutamba e era directora a Dra. Rosa Cruz e Silva. Foi então que tive acesso a vários documentos históricos que serviram de base a minha tese de doutoramento”, revela com alguma nostalgia.  

“As sucessivas viagens a Angola serviram de base a minha tese, “Fronteiras da Escravidão – Escravatura, Comércio e Identidade em Benguela, 1780-1850”, também disponível desde 2018 na Universidade Katyavala Bwila (UKB).

Mariana Candido, em resposta a sua motivação particular pelas terras de Ombaka, assume que “Benguela tem sido o foco das minhas investigações, sobretudo a região de Caconda nos séculos XVII, XVIII e XIX”, sublinhando que “o tráfico transatlântico afectou gravemente as populações no interior de Benguela, a organização política e provocou transformações políticas, emergência de novos ‘estados’ na região do Bailundo entre os séculos XVII até séc. XIX”.

Segundo a historiadora e académica, “testemunhos disso mostram que a maior parte das pessoas já eram escravizadas, outras eram pessoas livres, algumas eram pessoas de uma certa relevância naquela organização social e depois foram escravizadas”.

Critica com frontalidade, “grande parte dos historiadores europeus, que não consideram a responsabilização inicial dos colonizadores, os diversos estágios do processo incluindo primeiro a captura e escravização, remetendo essa prática para os sobas e reis, o que não corresponde exactamente a realidade”.

Para a académica brasileira “a investigação mostra que portugueses e ‘brasileiros’ (na verdade portugueses oriundos do Brasil) participaram desde o início nesses processos, incluindo a criação de ‘embalas’ de captura e escravização; os portugueses com razias, sequestros, guerras, ataques aos sobados (burguesia); mecanismos para condicionar as populações locais (tributo), etc.…”

Todos estiveram directamente envolvidos, por conseguinte – enfatiza Mariana Candido – a romantização da colonização e da escravatura não corresponde a verdade, não tem validade histórica. 

A investigadora justifica, no âmbito das suas investigações, “o destaque para as mulheres assente no facto de que elas representaram para os colonizadores e esclavagistas primeiro em termos de força de trabalho e também como reprodutoras, empregadas domésticas, no trabalho do campo, na escravatura sexual”.

Segundo a especialista brasileira, “da região que actualmente se designa como Angola saíram mais de 50% dos escravos do continente. Entre os quatro maiores portos donde saíram escravos incluem-se Luanda, com 2,5 milhões; Ouidah, no Benin com mais de 1 milhão; Benguela, com cerca 764.000 pessoas; Cabinda, e outros”.

Estima-se que de Angola tenham saído no total 5 milhões de pessoas escravizadas e de Africa 12,5 milhões. Entre os séculos XV e XIX, e até 1870 em Benguela.

A historiadora brasileira colabora com a universidade de Katiavala em Benguela e a universidade de Emory, Atlanta, nos EUA, desde 2020.

Mariana Candido, um verdadeiro poço de conhecimento e sabedoria da história africana e angolana, sobretudo relativamente a escravatura, admite que tem sido complicado conciliar a docência e investigação em várias latitudes do nosso mundo, e espera que voltem a ser editadas algumas das suas obras em português. Considera importante tanto para Angola como para o continente africano, o Brasil e outras latitudes o estudo e ensino da História, como elemento essencial a compreensão dos factores identitários na formação nacional e as suas consequências aos diferentes níveis no mundo contemporâneo. 

*Mariana Candido – Professora de História da África na Emory University, em Atlanta (EUA), doutora em história da África pela York University, Canadá, e mestre em estudos africanos pelo El Colégio de México, ex-professora da University of Notre Dame, da University of Kansas, da Princeton University e da University of Wisconsin-La Crosse.

Possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997), mestrado em Estudos Africanos, Colégio de México, no México (2000) e doutorado em História da África na York University, no Canadá (2006). Foi professora no departamento de história da Princeton University, nos Estados Unidos e pesquisadora associada à Harriet Tubman Institute for Research on the Global Migrations of African Peoples, Slavery, Memory and Citizenship e ao Projecto Acervo Digital Angola- Brasil. É também co-investigadora nos projectos “Escravidão e Formas de Sociabilidade: Escravos africanos em Mariana/MG, 1700-1750, e The Angolan Roots of Capoeira, financiado pela University of Essex, na Inglaterra.

Possuidora de um nutrido CV difícil de resumir e de vasta experiencia profissional, além de uma extensa bibliografia, esta especialista da Escravatura no continente e em particular em Angola com enfoque na região de Benguela, foi co-autora, com Carlos Liberato, Paul Lovejoy e René Solodre-La France da obra fundamental Laços Atlânticos: África e Africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos, volume entretanto esgotado, a esperada generosidade do Museu Nacional da Escravatura, segundo apuramos.

**Sílvio de Almeida Carvalho – Renomado académico brasileiro de reputação internacional especialista em História de África, História Moderna com vasta bibliografia, incluindo aspectos relevantes da história angolana.

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