COISAS QUE NÃO SE ESQUECEM (1)

JAcQUEs TOU AQUI!

Se os assuntos forem entendidos com responsabilidade e, quando aceitarmos que as pessoas poderão ser aquilo que nós pretendemos que sejam, pessoas de bem, boas e pacientes, mais facilmente ganharemos consciência para ultrapassar obstáculos.

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

A crítica social tem sido elemento fundamental da minha produção textual. Surge de modo natural nas crónicas que escrevo. Na prática, fez-se presente logo a seguir à conquista da nossa Independência. Iniciei este percurso consciente, ao decidir elegê-la como o melhor contributo que podia oferecer à terra que me viu nascer. Precisamente na altura que já tinha nascido o País com que sempre sonhamos. Acabávamos de alcançar, orgulhosamente, o glorioso novembro de 1975 e entrado triunfalmente no concerto das Nações. 

A exemplo do que faziam milhares de compatriotas, no meu posto de trabalho lancei-me decididamente às tarefas da Reconstrução Nacional que, num manancial de tarefas prioritárias, incluía a descoberta do Homem Novo. Não tardou que o dito cujo, de características bizarras, se mostrasse, afinal e na sua plenitude, um Homem Mau. Um ser egoísta, que pensava somente em si próprio. Iniciamos então um combate cerrado contra o sinistro Homem. Apesar de todos os esforços, nós, todos juntos, mesmo não misturados, cumpríamos, cegamente, as regras impostas, as palavras da Ordem que vigorava. Nenhuma vírgula nos desviava das linhas orientadoras do projecto comum há muito idealizado.

Comecei de maneira vibrante, embora servil, o contacto com os assuntos que me cabiam, dispondo-me a fazer coisas. Algumas que jamais imaginei ser capaz de fazer. Aproximei-me de pessoas, essencialmente de gente culta, fui evoluindo – lamento apenas não ter aprendido inglês – e descobri coisas muito curiosas nessa incursão de vários tons. Consegui, entre o mais, desvendar o carácter de certas pessoas, num exercício que me obrigou a descobrir-me a mim próprio. E assim viajei no tempo, por esta via repleta de escolhos, numa aprendizagem sem cátedra, feita de conversa e de escrita que apelavam sempre ao conhecimento superior. Uma caminhada plenamente justificada, apesar de tudo. Tanto a percorrida na minha vida profissional como nas incursões feitas, à socapa, aos meandros da cultura nacional. Uma interessante experiência forjada ao longo destes mais de quarenta anos de conversas registadas em escrita razoavelmente elaborada, e na medida do possível, felizmente reconhecida não em todos, mas em muitos círculos de opinião.

Quase sem me dar conta, apercebi-me que só assim – não foi apenas comigo, aconteceu com muitos como eu – teríamos oportunidade de ver Angola melhor, a crescer rumo ao futuro.

Levado pelo sonho lindo, fui tentando sempre. A contribuir com algo nesse sentido belo de criar para crescer. Assim tem sido, e assim será, desde que não me faltem as forças. Tenho participado, a partir do momento em que senti essa necessidade de aprofundar melhor a razão das coisas que nos acontecem. De saber porque desprezamos as boas coisas que temos e não descobrimos internamente soluções para as nossas inúmeras necessidades. 

Sinto que se os assuntos forem entendidos com responsabilidade e, quando aceitarmos que as pessoas poderão ser aquilo que nós pretendemos que sejam, pessoas de bem, boas e pacientes, mais facilmente ganharemos consciência para ultrapassar obstáculos. Observando melhor os fenómenos e a forma correcta de lidarmos com eles. 

São factos que não deixam de ser condimentos que, em momento adequado, dariam, se bem contados, uns belos contos onde não faltaria o essencial. De cenários fantásticos a protagonistas versáteis, a retratarem em vários papéis, filhos de um povo único, de qualidade ímpar, cada um e cada qual com seu valor, cada qual e cada um com sua manha ou mania, todos a defenderem-se como melhor sabem e podem.

Certo dia, uma amiga minha, a Titina, viu-me bastante empenhado, à porta principal da Ensa – ainda hoje não entendo a ideia de se ter retirado a emblemática sede da seguradora estatal da Marginal do nosso orgulho – a apetrechar com muitos textos o jornal de parede da empresa que ajudei a criar. Eu era coordenador de qualquer coisa e enaltecia no jornal mural a figura do Presidente Neto, a emulação socialista e outras coisas que naquele tempo deviam ser divulgadas. Recordo ainda as palavras da Titina, ditas baixinho no meu ouvido. Lembro-me como se fossem de hoje. 

Acreditas no que estás a escrever? Perguntou-me ela, corajosamente.

Porque não acreditar? Disse eu, receoso, olhando para os lados, não fosse passar por ali algum camarada, um diligente militante que captasse a mensagem que me chegara.

Muitos anos depois, eu e a Titina, já em aberta contestação com a situação que estamos com ela, lembramos a cena. A desintegração da sociedade organizada já estava iminente. Notava-se nos mais ínfimos pormenores. Na autoridade que falhava, na demagogia que crescia assustadoramente.

Não tive problemas em afirmar que ela tinha razão desde então. Não se podia acreditar naquela forma tão ingénua de ver as coisas que só aquele tempo estacionado permitia. Um tempo que parou porque, simplesmente, as coisas não podiam funcionar do modo como funcionavam naquela altura.

Não tardaria que pouco depois da cena do jornal de parede, uns radicais militantes revolucionários me criticassem por andar envolvido na realização de festas e carnavais, por andar em farras coloridas. Não estudava, como devia, as teorias marxistas. Era, claramente, um contrarrevolucionário. 

Fica tudo dito do que trago para hoje. Decidi-me por palavras mais curtas. Desabafos pouco maçadores. Todavia, capazes de prender a atenção dos que se interessam pelos nossos assuntos. Nestas circunstâncias, despeço-me dos meus estimados leitores e dos meus queridos amigos. Até ao próximo domingo, à hora do matabicho.

Fernão Ferro, Portugal, 24 de Agosto de 2025 

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