Uma reforma institucional não é suficiente, impõe-se a construção social de um novo consenso sobre o funcionamento das democracias e o tipo de respostas que elas deverão dar aos cidadãos.
Se a representação foi a grande invenção do século XIX, o voluntarismo e a organização da sociedade civil foram as inovações do século XX, ficando para o século XXI a expansão crescente das condições materiais e das oportunidades educacionais, associadas aos recursos da comunicação, favorecendo o engajamento cívico, em todas as nações(2).
A capacidade de intervir em defesa de um futuro para todos pressupõe cidadania activa. Cidadania activaimplica participação. E participação pressupõe a instituição e operacionalização do acesso e uso efectivo e universal dos direitos, como: liberdade de pensamento e de expressão; de acesso à informação, de livre imprensa e de condições de comunicação; de liberdade de associação e de reunião; de proteção da intimidade e da privacidade, e da integridade pessoal; de liberdade de ir e vir, de usar os espaços públicos, e se manifestar; de pedir contas sobre a gestão dos assuntos públicos pelos poderes instituídos; o exercício formal da influência sobre os processos de tomada de decisão e de desenho de políticas que sejam públicas (e não apenas de governo), e o recurso a instâncias (ou actores) de articulação e mediação da acção colectiva e do diálogo entre sociedade, Estado o Mercado, os ‘descodificadores semânticos, a que já me referi.
A criação destas instâncias de participação, aos diversos níveis e sobre os mais diversos temas de interesse público, exercita a democracia entre os que nelas participam, estimula o desafio à lógica dominante, amplia os espaços públicos através da diversificação dos actores e dos discursos, e cria oportunidades de troca de informações, de experiências e de conhecimentos, permitindo uma compreensão mais ampla dos problemas e uma melhor identificação das possíveis soluções e alternativas para os mesmos.
Mas para isso, é preciso vencer as resistências à participação que ainda prevalecem, não só por parte do Estado, mas também da parte dos cidadãos. Diversos factores limitam o exercício da cidadania e a expansão do processo democrático:
- Permite-se uma “democracia” reduzida ao formalismo das instituições dos 3 poderes (que não são independentes), de eleições (gerais), sem Visão de País nem de Futuro, que não garante igualdade de condições e de oportunidades numa base universal;
- Não se valoriza a cultura política de interpelação ao Estado, de denúncia do autoritarismo patrimonialista e de rompimento das relações clientelistas e corporativas;
- Não se protesta o suficiente contra o acesso desigual (e não garantia de uso efectivo) a serviços públicos de qualidade: educação, saúde, habitação e saneamento, justiça, lazer, entre outros, “permitindo” a discriminação de tantos;
- Sente-se o distanciamento das instituições do Estado em relação aos cidadãos, ignorando os ‘sem voz’ e ‘sem visibilidade’, mas desconsegue-se o engajamento necessário para mudar essa situação;
- Convive-se com sentimentos de impotência política, desamparo social, resignação, conformismo e “coitadismo”, denunciados “boca a orelha”, mas sem o necessário efeito de produzir mudança.
A promoção da cidadania passa, primeiro, pela afirmação individual, de cada um, como “sujeito da sua história”, lutando pela criação de oportunidades de acesso a, e uso efectivo de, bens colectivos e serviços públicos universais, incluindo a participação na construção colectiva da Visão da “Angola que se quer” e as estratégias para lá chegar.
Mas isso implica:
a) A preparação para debater as questões de interesse público, e intervir junto das instituições do Estado (para transformar as actuais ‘políticas de governo’ em ‘políticas públicas’ adequadas às necessidades da população), e das organizações do mercado (para adequação da produção às necessidades da população);
b) A valorização da organização dos processos horizontais (em rede) de participação e de debate das questões de interesse público, da atribuição dos mandatos de participação, e da posterior devolução ao colectivo/rede;
c) A doação de tempo, de conhecimentos e de habilidades para promover e fazer funcionar mecanismos de organização e articulação entre cidadãos, organizações e redes da sociedade civil;
d) A criação de instâncias consultivas junto do Executivo e do Legislativo enquanto espaços de participação e de contribuição da sociedade, através dos cidadãos e suas organizações, para a governação aos diversos níveis.
Porque a democracia não é apenas um sistema político, é, antes, um modo de vida e de convivência de uns com os outros. Onde se aprende a expor ideias em público e a fazer-se ouvir, a saber escutar e aprender com os outros, a dar as suas opiniões e assumir as suas responsabilidades, a obter informação e a partilhá-la, a tomar decisões, a debater, a comunicar, a gerir conflitos, entre tantas outras competências que precisam ser adquiridas para vivermos e convivermos melhor. E o melhor caminho para as adquirir é a vida associativa.
Promover campanhas de educação cívica ao nível das escolas, das comunidades e da sociedade, sobre direitos e responsabilidades, princípios democráticos, leis e processos de tomada de decisão e de mudança, contribui para constituir uma base de participação informada e crítica no processo democrático, e também de luta contra preconceitos e estigmas que impedem a maior visibilidade social das mulheres e dos jovens.
Em todo o mundo, as relações hierárquicas e a deferência em relação à autoridade vêm perdendo importância para questões relacionadas com a descentralização, círculos de qualidade e tomada de decisão participativa, por um cada vez maior controlo das pessoas sobre o seu próprio destino(3).
O desafio é o de reformar o processo democrático em processo, em resposta às demandas e expectativas dos cidadãos, criando mais plataformas de participação aos diversos níveis, e operando uma transição progressiva de uma democracia representativa para uma democracia participativa.
São as instituições da democracia representativa que têm vindo a ser contestadas, não os valores e princípios democráticos. Importa lembrar que as instituições da democracia representativa foram concebidas e desenvolvidas no século XIX e desde então muita coisa mudou, devido à evolução da ciência e da tecnologia, ao desenvolvimento do sistema capitalista e à mudança de valores do público. Contudo, tais instituições não foram ajustadas na sua concepção e organização, para melhor responder a um público crescentemente mais preparado e consciente do seu papel na sociedade. A exigência é por uma maior participação política fora dos limites da democracia representativa.
Os novos padrões de participação pressionam os governos a considerar novas formas de ‘fazer política’ e administrar os assuntos públicos. Uma reforma institucional não é suficiente, impõe-se a construção social de um novo consenso sobre o funcionamento das democracias e o tipo de respostas que elas deverão dar aos cidadãos. Defende-se mais participação e agendas alternativas, sendo necessário adaptar as democracias a um novo estilo de política cidadã, incorporando os sentimentos do público quanto ao processo democrático. O desafio da democracia é evoluir, garantir direitos políticos e aumentar a capacidade dos cidadãos em controlar as suas próprias vidas.
(1) Neste texto recuperei algumas reflexões desenvolvidas em “Mudanças de Valores e Instituições”, 2002, IUPERJ, Rio de Janeiro 2002.
(2) Adaptado de LADD, Everett. (1999). The Ladd Report [7-22] Free Press, New York.
(3) Informação mais detalhada em DALTON, Russell (1996), “Citizen Politics”, Chatam House,
Chatam/New Jersey. Caps. 5 e 6.