CASO 500 MILHÕES. “NINGUÉM DEVE SER JULGADO DUAS VEZES POR CAUSA DO MESMO PROCESSO”

“Nós não podemos aceitar que haja este tipo de falhas no Tribunal Supremo, que está no vértice da jurisdição comum porque, de facto, é preocupante. E é o garante da justiça… a questão não está no gostar ou não gostar, está no cumprir a Constituição e a Lei. Os seus responsáveis podem ser responsabilizados pelo crime de desobediência. Não podemos cumprir só aquilo que gostamos”.

Juiz jubilado Raul Carlos Araújo

Fonte: Valor Económico

O Tribunal Supremo, em acórdão exarado a 28 de Junho, mas tornado pública apenas no dia 8 de Julho, data em que se completaram dois anos da morte do ex-presidente José Eduardo dos Santos, dá conta de ter “conformado” a decisão recorrida do Tribunal Constitucional sobre o “caso 500 milhões”. E, “em consequência”, manteve as penas de condenação aos réus José Filomeno dos Santos “Zenu”, ex-presidente do Fundo Soberano (anos), Valter Filipe da Silva, ex-governador do Banco Nacional (8 anos) e dois colaboradores deste, Jorge Guadens Pontes Sebastião (6 anos) e António Samalia Bule Manuel (5 anos), decididas em 2020, pela prática dos crimes de peculato, burla por defraudação e tráfico de influência.

Uma vez estarmos perante uma nova decisão que não expurga as inconstitucionalidades declaradas pelo Tribunal Constitucional, mas acaba por ser o mesmo do mesmo, o “caso 500 milhões” está ainda longe do desfecho, já que, sobre essa decisão do Tribunal Supremo, de acordo com vários juristas que ouvimos por esses dias, “cabe novo recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional”.

Para os juristas contactados, mais do que “uma banalização das instituições, estamos perante um ilícito penal de desobediência qualificada”, como referiu o juiz jubilado Dr Raul Carlos Araújo, em entrevista concedida ao Semanário Valor no início do mês de Abril, com o título… “Quando o Tribunal Constitucional decreta que houve inconstitucionalidade, o processo morre”.

Aquele constitucionalista e professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, explica que os direitos dos visados no ‘caso 500 milhões’ tinham de ser repostos “imediatamente”, a partir do momento em que o Tribunal Constitucional (TC) remeteu o acórdão ao Tribunal Supremo (TS), porque o processo é considerado nulo, ou seja, “morreu”.

Antigo bastonário da Ordem dos Advogados de Angola e juiz jubilado do Tribunal Constitucional, Raul Carlos Araújo deixou claro que “não existe hipótese de repetição do julgamento, pelo facto de contrariar a lei e que, se os juízes do TS resistirem a cumprir a decisão, podem ser indiciados por crime de desobediência”

Questionado pelo semanário Valor se diante do acórdão do Tribunal Constitucional, o processo torna-se nulo ou se teria lugar outro julgamento, Raul Araújo esclareceu que “há um princípio em Direito que diz que ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo processo. As pessoas foram julgadas, condenadas, com esta decisão do tribunal o assunto acabou. O Tribunal Constitucional remeteu o seu acórdão para o Tribunal Supremo, que é o órgão máximo da jurisdição comum. Então, agora só têm de executar a decisão do Constitucional obrigatoriamente. E no caso, se o processo foi anulado, as pessoas não podem ser julgadas pelo mesmo caso. Portanto, é a libertação das pessoas”.

Que ninguém pode ser julgado duas vezes por causa do mesmo processo

Sobre a defesa feita por alguns sectores sobre a possibilidade de ocorrer repetição do julgamento, o juiz jubilado foi peremptório: “Há quem defenda que deve haver uma repetição do julgamento, mas, se houvesse, entraríamos numa situação de julgar as mesmas pessoas duas vezes pelos mesmos factos. Ora, isso contraria a lei. Em princípio, como já aconteceu noutros acórdãos, a partir do momento em que o Tribunal Constitucional decide em último recurso, o processo transita em julgado. Morreu o processo”.

Raul Araújo esclareceu que “já houve um caso tão logo que o Tribunal Constitucional foi criado. Na altura, em 2010, foi o processo dos Serviços de Migração e Estrangeiros (SME)”. A então directora foi julgada, “em primeira instância, como recurso o caso transitou para o Tribunal Constitucional que decidiu anular, exactamente com os mesmos argumentos do desta vez – violação do princípio da legalidade, do contraditório, da falta do julgamento justo. A partir do momento que anulou o julgamento, acabou o processo. Não há repetição de julgamento nenhum”.

Embora haja jurisprudência, em certa medida as correntes não podem sobrepor-se a lei, porque está acima disso. É expresso, clarificou Raul Araújo, “que ninguém pode ser julgado duas vezes por causa do mesmo processo”. 

Sobre se o Ministério Público também está impossibilitado de recorrer à decisão do TC, tratando-se de uma decisão irrecorrível, o juiz jubilado deixou também claro que “a decisão do Tribunal Constitucional é a última decisão possível. A partir do momento em que o Tribunal Constitucional decide, termina o processo. Não há recurso da decisão do plenário do Tribunal Constitucional. O processo, como se diz, transita em julgado”.

Eis, na íntegra a parte complementar da entrevista:

Os visados no processo podem agora abrir um processo contra o Estado para indemnização? 

Os lesados podem, se acharem pertinente. Depende de cada um deles se está interessado ou não em pedir indemnização ao Estado, através de um processo próprio. Aliás, até porque existe uma lei sobre responsabilidade do Estado por actos praticados pelos seus agentes. Mas isso fica ao critério deles e de seus advogados de verem se vale a pena ou não. Há sempre mecanismos legais para a defesa dos interesses dos cidadãos.

O que o Tribunal Constitucional fez, enquanto tribunal que tem também as funções de ser um Tribunal de Direitos Humanos, é o de verificar se os direitos, garantias e liberdades fundamentais foram ou não respeitados. Quando verifica que num processo judicial não se cumpriram alguns dos pressupostos que são essenciais para a execução da justiça, pode tomar uma decisão como foi aquela que tomou.

A decisão do Tribunal Constitucional não é recorrível, é de cumprimento obrigatório por todos os tribunais e organismos

Quando o processo desta natureza é julgado por um tribunal superior e o TC diz que houve violação dos direitos fundamentais, não denota debilidade na fase instrução e de julgamento?

A instrução pode estar bem ou mal feita, mas quem decide é o tribunal. Se o tribunal verificar que há má instrução nem sequer faz o julgamento, pode mandar dizer que não está em condições. O grave neste processo foi o tribunal que decidiu e o que chama mais atenção, é que é um processo que o Tribunal Supremo foi o tribunal de primeira instância de recurso. Foi um julgamento feito pelo Tribunal Supremo. Ora, se fosse pelo Tribunal de Comarca, a pessoa dizia que os juízes são inexperientes, são jovens. Quando o processo é julgado pelo Tribunal Supremo – que é o órgão máximo da hierarquia da jurisdição comum – e são apontadas estas falhas tão graves, penso que é de se pensar seriamente no que aconteceu e o que está a acontecer. Nós não podemos aceitar que haja este tipo de falhas no Tribunal Supremo, que está no vértice da jurisdição comum porque, de facto, é preocupante. E é o garante da justiça…

Pois, a nível da jurisdição comum e depois, naturalmente, a última instância. Ainda bem que temos o Tribunal Constitucional para verificar se a Constituição, princípios fundamentais, foram ou não respeitados.

Estas falhas acabam por gerar desconfiança à volta da decisão do Tribunal Supremo noutros processos?

Pois, é preocupante. Estamos a ver o órgão máximo de recurso da jurisdição comum a cometer este tipo de falhas, quando é ele próprio a decidir porque foi quem julgou em primeira instância e depois em recurso – a Câmara Criminal fez o julgamento e depois o plenário do Supremo foi o órgão de recurso. A decisão do Plenário do Supremo vai para o Tribunal Constitucional que faz a conclusão do tipo de falha e anula. Do ponto de vista jurídico, quando o Tribunal Constitucional decreta que houve inconstitucionalidade, quer dizer que o julgamento está sem efeito jurídico, é nulo e o processo morre.

Com a anulação do processo, quanto tempo se prevê para restituição da liberdade dos visados bem como o eventual descongelamento de eventuais activos?

Em princípio, deve ser imediatamente. A partir do momento que o Tribunal Constitucional toma a decisão, remete para o Tribunal Supremo para tomar as medidas legais no sentido de pôr cobro ao processo.

Referimo-nos, por exemplo, ao facto de os documentos dos visados, ainda não terem sido restituídos, tanto quanto se sabe…

Acredito que haja alguma resistência de cumprir a decisão do plenário do Tribunal Constitucional e não será a primeira nem a última vez que isso acontece. Mas a decisão não é recorrível, é de cumprimento obrigatório por todos os tribunais e organismos. Portanto, o Tribunal Supremo, querendo ou não, tem de cumprir a decisão do Tribunal Constitucional. Por isso é que o TC é o órgão máximo da jurisdição constitucional.

Não é para defender os bens do Estado que tudo vale, isso são de regimes ditatoriais e não de Estados democráticos 

A existir esta eventual resistência é sustentada com fundamento jurídico ou é exclusivamente político?

Político ou de birra, o que quisermos chamar. Não é fundamento jurídico nenhum. Juridicamente é exactamente o contrário porque a decisão está tomada. 

Os dois tribunais são superiores. É normal existir rivalidades?

Infelizmente, têm surgido, ao longo dos anos, casos desta natureza e normalmente são aqueles mais sensíveis, em que o Tribunal Constitucional toma uma decisão e o Supremo não gosta muito. Mas a questão não está no gostar ou não gostar, está no cumprir a Constituição e a Lei. 

O TS, ao não cumprir de forma imediata, a decisão, o que se pode fazer?

Os seus responsáveis podem, eventualmente, ser responsabilizados pelo crime de desobediência.

A pedido do TC?

O que o Tribunal Constitucional pode fazer é solicitar à Procuradoria Geral da República que tome as providências no sentido de responsabilizar quem se está a recusar a respeitar a decisão. É o que pode acontecer se um acórdão do TS é aprovado e depois um organismo público ou privado recusar-se a cumprir a ordem do tribunal. No entanto, estamos a entrar no reino da anarquia. Não podemos cumprir só aquilo que gostamos.

No caso de não ser cumprida a decisão e o TC não solicitar a intervenção da PGR, os advogados podem recorrer a instâncias internacionais?

Eu não gosto de ir para fora discutir os assuntos dos tribunais, que são tomados aqui. As instâncias internacionais, muitas vezes, são marcadas por outros interesses que não são meramente do direito e da justiça. Internamente, nós temos mecanismos. Os advogados, ao verificarem que não está a ser cumprida a ordem do TC, sabem que mecanismos utilizar. Podem reclamar junto ao TC e o TC toma as medidas que entenda pertinentes para fazer cumprir a sua ordem. Não seria a primeira vez que uma situação desta se verificaria.

O acórdão do TC indica que as falhas cometidas pelos juízes são básicas, violação dos direitos fundamentais. O que considera não é admissível para uma instância superior. Não se podia espoletar um inquérito para apurar se a decisão dos juízes foi dolosa ou teve influência política?

O Conselho da Magistratura é o órgão indicado a fazer este tipo de coisa. Só que, no nosso modelo em que o presidente do Conselho da Magistratura Judicial é o presidente do Tribunal Supremo, não sei muito bem se, do ponto de vista prático, funcionará. Mas, se quiser, pode fazê-lo.

Que lições se podem tirar deste caso? 

É de que todos os órgãos devem trabalhar respeitando a Constituição, particularmente os direitos fundamentais. Ninguém está acima da Constituição seja por que razões for, seja para defender os bens do Estado ou não. O que se costuma dizer em Direito Constitucional e em outros ramos do Direito é que os direitos fundamentais estão acima da razão do Estado. Não é para defender os bens do Estado que tudo vale, isso são de regimes ditatoriais e não de Estados democráticos. Queremos ser um Estado democrático, este tipo de decisão mostra que estamos em um bom caminho. 

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