2.ª PARTE

A esfera económica
Tal como vimos anteriormente, a questão económica constitui o âmago, quer do pensamento de Mackinder, quer do de Mahan e Spykman, assim como da apologia de Ratzel sobre a luta pela sobrevivência dos Estados mais fortes, a questão económica constitui o âmago perseguido pelas referidas teorias, como posteriormente foi confirmado por Kjellén na sua análise sobre a totalidade do Estado.
O pensamento geopolítico sempre teve pretensões económicas no seu substrato. Podíamos revisitar o Protocapitalismo na Inglaterra, o Fordismo nos EUA e posteriormente o Neoliberalismo, e facilmente perceberíamos a relação indissociável entre ambas as componentes, tanto que os séculos XX e XXI foram suficientemente explícitos em demonstrar quais os objectivos económicos que constituem o fim último da acção política e geopolítica na relação do Ocidente com o mundo, mesmo que certas almas cândidas (ou mal-intencionadas) ainda advoguem uma suposta “missão civilizatória”, difusão da democracia aos povos “selvagens” ou preservação dos direitos humanos.
Muito inteligentemente, o Ocidente (com os EUA à cabeça) criou a “ordem internacional baseada em regras”. Dentre estas regras constam o livre comércio, a confiabilidade das instituições bancárias ocidentais como “fiéis depositárias” de reservas monetárias de Estados e empresas da periferia do sistema financeiro; as regras da livre competição empresarial; a reprovação do proteccionismo, assim como as regras da não intervenção do Estado na economia. Estes ditames,que foram consolidados com o Consenso de Washington de 1989, permitiram a exportação e a imposição das doutrinas neoliberais em todo o mundo.
O fim da URSS foi considerado, por alguns videntes ocidentais, como a recompensa dos deuses pela tão árdua missão civilizatória. Então, os donos do capital tinham todo o caminho livre para a deslocalização das fábricas e das indústrias para a Ásia, de forma a expandir mercado, pagar salários precários, maximizar os lucros e viver do rentismo através da financeirização da economia. Afinal, o mundo estava diante do “Fim da História”, exclamaria Francis Fukuyama. Contudo, algo de imprevisível ocorreu na Ásia. A China não adoptou a democracia neoliberal, preservou o socialismo e inventou um sistema político e económico que atende os interesses do povo e das elites – um país e dois sistemas. Tudo o que ocorreu de seguida não é história, mas sim o tempo presente, os acontecimentos dos quais temos sido testemunhas.
Enquanto a China conheceu o maior crescimento económico, social e tecnológico dos últimos 40 anos, superando todos os países ocidentais e assumindo o comando do comércio mundial, os EUA e seus satélites na Europa têm revelado uma regressão generalizada. Diante da evidente decadência da velha Ordem Unipolar e a Ascensão de uma Ordem Multipolar, o império reedita a “doutrina de Nero” e desata o “incêndio de Roma”. Assim sendo, foram carbonizadas as “regras” que até então regiam a ordem internacional.
Alguns factos ocorridos entre 2014 e 2025 podem servir de matéria de trabalho para um exercício analítico honesto do estado real das relações internacionais contemporâneas, com ênfase para o diagnóstico da actuação de um dos actores que exerce o maior grau de influência sobre as crenças, percepções e interpretações da política externa por parte de um grande número de angolanos, desde cidadãos comuns a intelectuais, jornalistas e políticos:
‒ A empresa chinesa de tecnologia Huawei, fundada em 1987, em apenas trinta anos tornou-se uma forte concorrente de empresas como a Apple e a Samsung. No ano de 2014, a Huawei tornou-se a primeira empresa no mundo a criar uma rede telefónica 5G, facto ocorrido na Ilha de Man. Em 2018, o Canadá deteve a directora financeira da Huawei a pedido dos EUA; Em 2019, o presidente dos EUA aprovou uma Ordem Executiva que proibia relações comerciais entre a Huawei e empresas norte-americanas; Em 2020, a Huawei tornou-se, pela primeira vez, a maior fabricante de smartphones do mundo, tendo ultrapassado a Samsung e a Apple. Nesse mesmo ano, o embaixador americano em Portugal ameaçou as autoridades portuguesas relativamente à possibilidade da adopção da tecnologia 5G da Huawei. Com um tom intimidatório, George Glass afirmou que Portugal tinha de escolher entre os EUA ou a China como parceiro comercial;
‒ Em 2022, o Banco Central da Inglaterra apossou-se de mais de 1 bilhão de dólares em reservas de ouro da Venezuela; Em Fevereiro de 2025, o presidente dos EUA decretou o que seria o princípio de uma guerra tarifária, inicialmente contra a China, Canadá e México, mas que ao longo do ano conheceu diversas variações e abrangências, chegando a atingir outros países do mundo, dentre os quais o Brasil, a Colômbia, a Índia, o Japão, a Coreia do Sul e inclusive os países da União Europeia. Ainda em 2025, o governo dos EUA nacionalizou a parte do TikTok que operava no território norte-americano e passou o seu controlo para uma empresa deste país; O Governo dos Países Baixos nacionalizou a empresa chinesa de chips e baterias na Holanda, Nexperia (no quadro de uma acção coordenada dos EUA e da UE contra a China); O Governo dos EUA registou, de Outubro a 12 de Novembro de 2025, 43 dias de paralisação por falta de orçamento, uma das mais longas paralisações da história daquele país, o que a CBS considerou “o terceiro maior lapso de financiamento da história moderna”. Como uma das consequências, famílias de militares americanos passaram a depender de assistência em bancos alimentares em virtude do não pagamento de salário a milhares de trabalhadores federais.
Podíamos citar centenas de exemplos sobre a situação da regressão em que se encontra a economia dos EUA e da maioria dos países da Europa ocidental (à qual podemos acrescentar as informações sobre o encerramento de fábricas, despedimento de milhares de trabalhadores e falência de várias empresas em países europeus), um quadro de desespero que impele as elites políticas destes países para o atropelo de todas as regras do comércio internacional, criadas pelo próprio Ocidente. A OMC foi substituída pela pirataria e por práticas de gangsterismo de Estado em larga escala. Porém, porque razão é que, mesmo diante desta realidade evidente, ainda existem, em países subdesenvolvidos e explorados como os de África, pessoas que defendem a subserviência ao Ocidente, como o caminho para o desenvolvimento dos Estados africanos?
Soft power e hard power
Como é do conhecimento geral, durante décadas, os EUA construíram uma estrutura eficiente de influência cultural e cognitiva. Hollywood e a Cultura Pop não foram somente ferramentas de propaganda do “excepcionalismo” americano ou do american way of life, foram principalmente o grande Cavalo de Tróia com o qual este império capturou milhares de mentes em todo o mundo. A eles se juntam as centenas de veículos e plataformas de imprensa (jornais, canais de TV e agências de notícia) tidos como de referência obrigatória ou como portadores exclusivos da verdade para a reprodução e consumo da comunicação social, inclusive a dos países periféricos, muitos deles açoitados pelo próprio império. É logico que não podiam faltar as engenharias sociais protagonizadas pela CIA, USAID, NED e tantas outras agências de inteligência que utilizam a camuflagem de ONG.
Esta é a teia de condicionamento mental que, há quase um século, tem submetido milhares de cérebros humanos a um processo de adestramento. É a partir desta estrutura que muitas pessoas foram e continuam a ser ensinadas a definir e interpretar quando é que um país é uma democracia e quando é uma autocracia, quando é que determinadas eleições são bem realizadas e quando se está diante de uma fraude, quando é que determinada contestação popular é legitima e quando não é legítima, quando é que um chefe de Estado é ditador e quando é democrata, quando é que um sistema político diferente da “democracia liberal” é uma monarquia linda, ou quando é um regimemalvado, etc., etc.
É precisamente esta a origem da mentalidade binária, que encara as decisões, opiniões, exigências ou suposições de organizações internacionais como o FMI, Global Witness, GAFI e outras, como orientações divinas e isentas de quaisquer objectivos geopolíticos por acção de sectores externos. Por isso, no alcance de certas pessoas, os governos dos países periféricos devem apenas agir como bons alunos e seguir as ordens sagradas destes organismos. Logo, na percepção de alguns tecnocratas de eleição, para que o governo de um país africano possa exercer a sua soberania, escolher os seus aliados e traçar um caminho que vise o bem-estar do seu povo, tem de obedecer ao “compliance” decretado por organismos que estão ao serviço do interesse de governos estrangeiros.
Todo estudante do primeiro ano do curso de Relações Internacionais aprende que, assim como os Estados, as Organizações Internacionais Intergovernamentais, as Empresas Multinacionais e as Organizações Internacionais Não-governamentais (ONG) são actores das Relações Internacionais. Inclusive os indivíduos, em certos casos, podem ser classificados como tal. A partir deste ponto é possível compreender como tem sido processada a implementação dos objectivos perseguidos pelas teorias acima esgrimidas, no que concerne as diversas formas de projecção de poder e influência das potências ocidentais através da rede de plataforma de Média, empresas, ONG, ou mesmo por via de estruturas internacionais intergovernamentais, percebidas por algumas pessoas desavisadas como organismos neutros ou inofensivos, pelo simples facto de dela fazerem parte a maioria dos países do sistema internacional. Trata-se de uma visão ingénua ou conivente sobre a operacionalização dos tentáculos das potências ocidentais.
Todas as vezes que o Soft power se revela insuficiente para o alcance dos objectivos ou a manutenção do controlo do Ocidente num determinado país ou região do globo, os EUA e/ou as “potências” europeias não hesitam em utilizar o hard power. Campanhas de destruição de carácter contra um determinado político, protagonizadas pela máquina mediática sob controlo dos mesmos, implementação de um processo de repetição de mentiras, adopção de chantagens, ameaças, sanções, embargos, financiamento de revoluções coloridas, destituição de Chefes de Estado que se recusam a ceder e instauração de títeres no poder, até a invasão de forças militares estrangeiras, sob pretexto de combate contra o terrorismo, contra o narcotráfico, contra a “corrupção”, etc., etc. A estas técnicas estão sempre associados os típicos requintes de lawfare, assim como a participação de sectores internos da própria sociedade.
A nível da região da América-latina e do Caribe, as oligarquias de cada um dos países sempre foram a longa manus dos Yankees ao longo de séculos, seja por motivações racistas, ódio contra os pobres, desejo de ocupação do espaço de poder anteriormente exercido pelas elites coloniais europeias, ambição desmedida, e até por desprezo pelo próprio país de origem, fruto de uma aculturação endémica pelos EUA. Tem sido contra estas burguesias privilegiadas pelas injustiças da história, que condenaram à indigência a maioria das populações locais, que grupos, individualidades e movimentos populares, revolucionários de Esquerda ou intelectuais progressistas têm combatido em nome da preservação do direito dos cidadãos nacionais usufruírem dos benefícios dos recursos nacionais, que as oligarquias locais invariavelmente tendem a entregar aos EUA ou à Europa (tal como fez Javier Milei recentemente, doando ao Reino Unido reservas de ouro dos argentinos). Tem sido, ao longo de séculos e décadas, um confronto real presente nas dinâmicas quotidianas da vida destes povos, do México à Argentina.
Os países africanos, que há meio século têm tentado consolidar a sua emancipação política diante do permanente assédio das elites coloniais; países perdidos e retidos nas armadilhas de um capitalismo tardio, que não teve tempo de formar uma elite capitalista nacional, nem um mercado interno consolidado com base num processo histórico endógeno de longo prazo (vide a história da Inglaterra, EUA, Alemanha e agora a China), vêem-se agora a braços com o dilema entre a transformação das potencialidades nacionais em benefício do desenvolvimento económico e social versus a satisfação dos interesses geopolíticos das potências do Ocidente, que tudo têm feito para travar o crescimento vertiginoso da China e o renascimento de uma Rússia indomável.
Neste ínterim, entre a velha ordem unipolar, disposta a tudo para impedir a sua morte iminente, e a inevitável afirmação da nova ordem multipolar, o Ocidente arrasta os países africanos para uma Guerra Fria 2.0 e amplia as exigências de vassalagem – nada de aproximação à China, Rússia ou aos BRICS. Para o cumprimento destes objectivos, as elites políticas ocidentais, com os EUA à cabeça, contam com a actuação ruidosa de indivíduos formados em programas como o “Young African Leaders Iniciative” ou o “Mandela Washington Followship for Young African Leaders”, e outras iniciativas de cooptação. Estão igualmente ao serviço da manutenção de interesses da “Ordre Ansien”, agentes ao serviço de ONG, economistas neoliberais e apologistas do FMI, jornalistas e intelectuais coniventes ou vítimas de “brainwashing”, quintas-colunas infiltrados em partidos políticos e outros sectores da sociedade e, inclusive, Chefes de Estado cooptados.
Continua nos próximos capítulos (…).










