A PRIMEIRA PROVA DE FOGO DE ADÃO DE ALMEIDA

RAMIRO ALEIXO

Empossado no meio de um turbilhão de violações desnecessárias ao Regulamento da Assembleia Nacional, por vontade imposta pelo presidente do MPLA, que também é o Titular do Poder Executivo, Adão de Almeida teve, a sua primeira grande prova de fogo, no debate parlamentar para votação, na generalidade, da proposta do Orçamento Geral do Estado para o exercício económico de 2026. E passou com nota 10, o que era expectável porque a sua competência e experiência nunca foi posta em causa.

Mas, deu para perceber, que não terá tarefa fácil, sobretudo para acalmar os ânimos de alguns emocionados da bancada do seu próprio partido, useiros e vezeiros em olhar para o passado, em vez de o presente para alicerçar o futuro. Esse foi, aliás, dos pontos mais fracos de Carolina Cerqueira. Nunca conseguiu dissimular, sequer, a sua militância ao MPLA, ou melhor, a servidão ao seu líder (e critiquei-a por isso mesmo, mas recebi como resposta um desmentindo, por via de um comunicado do seu gabinete). E ficava ‘passada’ quando da bancada da oposição, se dirigia qualquer crítica ao seu querido e estimado presidente do MPLA e da República. Exactamente ele, a quem serviu com fidelidade, mas que tal qual um objecto descartável, “mandou-a para as urtigas”. Fica agora na história como a primeira mulher que assumiu a presidência da Assembleia Nacional, pela sua mão, mas também, com a mácula de ter visto o seu mandato interrompido por razões pouco claras, por decisão desse mesmo (seu) presidente. De forma pouco respeitosa, diga-se, desmerecedora, violando a Constituição, acobertando-se no Regulamento da Assembleia Nacional na qualidade de presidente do seu partido, demonstrando que também nessa condição, tem outros poderes de elevada influência e interferência no funcionamento de órgãos de soberania. Numa só palavra, uma vez mais, aquele que é o presidente do MPLA e para nossa desgraça também da República, é o primeiro que não respeita regras, utiliza fragilidades da Constituição para acertar os seus interesses políticos, não tem elevação e só vê o poder pelo poder. Não diz ao certo se sai, tem postura de quem pretende permanecer e demostra que até 2027, muita água ainda correrá debaixo dessa ponte e mais vítimas conhecerão a sua ‘ira’.

Adão de Almeida entra assim no jogo, com a consciência de que não é opção natural nem definitiva da sucessão e aposta nos mais jovens, mas sim como peão numa estratégia definida pelo seu Chefe, para assegurar a continuidade dele e do seu círculo pessoal. Porque começa a ficar claro, que mesmo fora da Presidência da República, é o presidente do MPLA quem, de facto, tem todo o poder e quando a lei não lhe confere, usurpa. Portanto, Adão de Almeida, que até é suficientemente inteligente, pelas costas de Carolina Cerqueira, tem bem assente a percepção de que não deve desiludir o Chefe, pois até 2027 ainda há uma longa estrada a percorrer e que as cartas somente estão a ser baralhadas. O final do jogo (o próximo congresso) poderá até produzir outro resultado, porque chefes do nível de João Lourenço, não dão indicadores sobre a sua sucessão, com tanta antecipação. 

Mas, por essa altura, Adão de Almeida deve ter percebido, também, que a parte mais difícil do seu papel de mediador na Assembleia Nacional, será lidar com os seus próprios camaradas. Ainda que, ‘fingindo’, será difícil ao vivo, discordar da habitual postura agressiva de ataque à oposição da parte dos seus colegas, que em vez de expressarem as dores do povo, demonstram o contrário, solidarizando-se com o Governo. Como que sentindo as dores do parto de um OGE, que não foi sequer fecundado com os seus espermatozóides. Essa atitude, contraste com a serenidade, respeito e competência da argumentação dos pais do Projecto de Lei, os auxiliares do Titular do Poder Executivo. Apesar de pouco convincentes, dão o seu melhor e, educadamente, fazem passar a mensagem de que mesmo com tanta miséria, despesismo e endividamento, o país segue rumo certo. Fazem bem o seu papel. Para eles, embora não digam, nós é que temos visão e sensibilidade diferentes. 

O quão difícil e espinhosa será a missão de Adão de Almeida, ficou expresso na intervenção do deputado do MPLA, Esteves Carlos Hilário, secretário de informação e propaganda do seu partido, que partiu a loiça toda. Deselegantemente, e quando já nem era necessário, desancou de forma feia e grosseira sobre os seus adversários políticos. Como se eles, mesmo sendo minoria, não têm o direito de expressar o pensamento contrário, diferente ou divergente em relação ao OGE, em representação dos milhões que também votaram nela. 

Esteves Hilário fez-se ao jogo político, aplicando o xeque-mate de forma desproporcional e descabida. E nem mesmo a tentativa de Eugénio Manuvakola, da bancada da UNITA, de chamá-lo à razão, serviu-lhe de alerta ao bom senso e ao decoro exigível. Não entendemos como um político do seu nível, não sabe ainda que votar contra, ou abster-se, também é um exercício da democracia? Ou isso não se pratica nem é permitido no MPLA? 

A sua linguagem discursiva e sobretudo em relação ao processo autárquico, foi descontextualizada, e, particularmente, depois da aparente cumplicidade demonstrada pela oposição, no processo que culminou com a ‘eleição’, por unanimidade, do deputado Adão de Almeida, para a presidência da Assembleia Nacional. Cumplicidade, sim, porque a oposição tem a obrigação de conhecer melhor e de estudar profundamente o Regulamento que rege esse órgão de soberania. E até podia abandonar a sala no momento da votação e não o fez, provavelmente, porque também encontra respaldo e conforto no mesmo Regulamento.

Para além de mostrar o verdadeiro ADN do MPLA no funcionamento do Estado de Direito e Democrático e da separação de poderes, e sendo porta-voz do principal órgão de direcção desse partido, a intervenção de Esteves Hilário contraria, inclusive, o conteúdo do discurso de posse e de comprometimento de Adão de Almeida, em que deixou claro: que há necessidade do “fortalecimento do papel fiscalizador do Parlamento sobre as acções do Executivo e da consolidação da democracia angolana, uma coexistência fundamental para a estabilidade do Estado; que não se deve permitir que vontades partidárias impeçam a construção da vontade colectivae que na sua natureza representativa e soberana, a Assembleia Nacional é um órgão de expressão da vontade de todos os angolanos e um dos pilares fundamentais da democracia”. 

Após ouvirmos esse discurso de Adão de Almeida, em que perspectiva se encaixa então o ‘grito de Ipiranga’ de Esteves Carlos Hilário? O que terá ‘irritado’ tanto esse deputado, que até ao fim do consulado de Carolina Cerqueira, ‘vendeu o peixe’ de forma muito discreta? Provavelmente, vendo a ascensão de outros actores da sua faixa etária, porque o Chefe diz que aposta na juventude e conhecendo o jogo que está longe de terminar, decidiu também mostrar que chegou o seu momento de impressionar. E tratou de enviar uma mensagem de comprometimento, dizendo que também está aí, que é colunável, disponível e que se pode contar com ele para voos mais altos. Porque o Chefe gosta dos que, em sua defesa, se necessário, mergulham de cabeça na lama. E bater na oposição, sobretudo na UNITA, confere pontos.

Em Março deste ano, a convite de Armindo Laureano, director do Novo Jornal, escrevi um texto em que manifestei a minha opinião sobre a nomeação, desafios e obsctáculos de Esteves Carlos Hilário, substituto de Rui Falcão no cargo de secretário para Informação e Propaganda, do Secretariado do BP do MPLA. Disse que, no fundo, a sua entrada, como diz o adágio, também podia ser tida como “vestir fato novo em corpo sujo”. E ele acabou por confirmar que tive razão. Não interpretrou bem a minha análise, pois considerei necessária uma visão diferente na comunicação intra-partidária, para colmatar a ausência do MPLA nos grandes debates públicos sobre os diferentes problemas que afligem a Nação e muitos deles, mal discutidos ao nível da Assembleia Nacional.

Como nota de rodapé, considero que os deputados devem incluir na sua agenda, a análise (mudança) da pertinência ou valência desse exercício de discussão (antecipada) tão profunda e pormenorizada de uma proposta de lei do OGE, que após aprovada na generalidade, passa para o escrutínio dos órgãos de especialidade. Aí, ocorre novo round com os auxiliares do titular do Poder Executivo e com representantes de vários extractos da sociedade. 

Por que não um percurso inverso? Para encurtar caminho e evitar-se esse descompasso todo e ataques de guerrilha verbal, casados com o nosso passado tenebroso, quando o assunto é o OGE. Não seria mais funcional e profícuo, começar na especialidade, “deixando os patrasmente, os ora vejam e ir prafrentemente” — parafraseando o actor brasileiro Paulo Gracindo, em Odorico Paraguaçú (Bem Amado)? Por que razão todos os deputados têm que falar sobre uma matéria tão específica, tão técnica, quando não tiveram sequer tempo suficiente para estudar o documento? Como é que deputados que não conseguem ler sequer o que escrevem, têm capacidade para se debruçar sobre quadros, tabelas, gráficos, números e projeções económicas e sociais? E nesse último grupo, incluo o próprio Esteves Carlos Hilário, que afinal, é autor do livro com o título “A instituição das autarquias em Angola: Análise dos pressupostos constitucionais”, mas tal qual camaleão, defende agora que “o povo não come autarquias”

De facto, o povo não come autarquias. E comer mesmo, os únicos que comem em Angola são o MPLA, o seu presidente e poucos mais. Encaixa-se aqui, outra parábola que ouvi de um soba no Huambo, num encontro com Fernando da Piedade ‘Nandó’, então primeiro-ministro, num jango mandado construir por Paulo Cassoma na vila da Caála: “Só quem come carne, é quem conhece o seu sabor”

Mas afinal, qual é o medo de implementarmos essa ou outra receita semelhante as autarquias, que devolva a soberania ao seu dono, o povo? 

A resposta desse jogo, que não sabemos como terminará, tem-na João Manuel Gonçalves Lourenço, que diz que sai, mas o que faz indica que quer ficar. E Adão de Almeida pode até ter sido lançado como lebre, porque o asseguramento da vitória do MPLA na CNE, começa a ser engendrada na Presidência da República (Casa Civil), que tem como suportes logísticos o Ministério da Administração do Território, perfeitamente alinhado a Casa Militar. Provavelmente, será aí onde João Lourenço atacará com o próximo descarte.

Em todo esse processo, o Secretariado do Bureau Político do MPLA não manda em nada: apenas cumpre o que é decidido mais acima. Provavelmente, Norberto Garcia até é mais influente nas decisões, que Mara Quiosa, a vice-presidente.

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