A CELEBRAÇÃO DO EQUÍVOCO

JAcQUEs TOU AQUI!

Um povo pode sofrer terríveis sacrifícios para se manter unido e ter paz, mas há gestos que, seja por que razão for, por via do bom-senso, deviam ser abolidos.

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

A Festa passou despercebida à grande maioria. Mas para alguns a farra esteve lá, aconteceu mesmo.  Foi à grande e à francesa. E, porque a Ordem é rica, o que sobrou foi parar ao mar. Como se diz na nossa rica tradição. Referi esse particular dos nossos hábitos e costumes nas mensagens que, cumprindo meu saudável hábito, enviei a muita gente na quarta-feira da semana passada. Quem gostou, gostou, quem não gostou, que comesse menos. Contentemo-nos, pois, com o que sobejou em míseras esquebras, traduzidas nas respostas positivas e em recordações do que não se consegue esquecer.

Fiel aos meus hábitos, medito agora sobre o mais recente cardápio de acontecimentos. Uma delícia de casos que abalaram, aceite-se ou não o termo, o edifício da nossa Assembleia Nacional. Disso se faz a nossa política, resolve-se deste modo, com muito pensamento e medidas “deveras”, o futuro do país e das populações. À nossa maneira, sem maka, nem kijila.

Já se olha com saudade o Angola-Argentina em futebol, partida que entrou seguramente pela porta grande dos anais da nossa história. Falamos do jogo que ficará na memória dos que o conceberam, dos que o disputaram, e dos que o presenciaram, ao vivo ou à distância. Ficará registado, em primeiro lugar, o bom resultado, não levamos cabazada, e isso foi fundamental, não fomos ridicularizados, pelo menos nesse aspecto. De resto e do menos bom, ficaram para a posteridade as obscuras peripécias do futebol, os processos colaterais ao jogo. Segredos sobre o dinheiro efectivamente gasto, bilhetes vendidos, segurança montada, sobre a contestação e as detenções, coisas que aconteceram rodeadas de algum sigilo.

Há dias, na mesma semana, mas à margem desse jogo da frustração de muitos e da vaidade de alguns – soberbo complemento da Festa do nosso equívoco – recordei a Festa do Bode, famoso título de Mário Vargas Llosa, não sei bem porquê – enquanto quatro angolanos, aqui na Tuga, falavam, trocando ideias sobre a vida e as perspectivas que a ela se abriam na terra amada. Reuniam-se à volta de uma pequena mesa. Lá fora, no jardim, com o frio a espreitar, as plantas dançavam com o vento, e as flores eram lindas. Eram rosas, da cor das nossas mais lindas flores, as excelentíssimas e brilhantes rosas de porcelana. Viçosas, como as do Jardim Botânico do Kilombo de Ndalatando. 

– Mais calulú, venham daí as tripas à moda do Porto – gritava, ora um, ora outro. Parecia que tinham escolhido propositadamente o tema da fartura da comida para as entradas.

Eram quatro, mas, à boa maneira angolana, falavam por uma multidão barulhenta. Talvez porque Martinho da Vila, já sem a ligeireza de pés de outros tempos, se ia apresentar ao público português por esses dias, um aparelho de rádio passava música antiga da vedeta brasileira. Aquela mesma que tocava, eu tinha ouvido, no início dos anos setenta, muito tempo atrás, portanto, no Ngola Cine, sítio da banga do nosso passado juvenil, em cujo palco o antigo sargento da polícia carioca sambou, cantando:

Avareza é um defeito

Você nunca foi assim

Eu também tenho direito

De tocar meu tamborim

Curiosamente, o estribilho do inegável sucesso que constituiu “Segure tudo”, alertava já para males que se aproximavam, vinham a caminho. Inesperada e perigosamente. E nós muito longe de adivinhar, sequer de pensar neles, nos avarentos.

 Até tenho arrepios de tanto comer. Não é bonito, meus amigos – quase sem se aperceberem, a conversa dos quatro amigos passou a ter esse tom maior – vamos rebentar de tanto comer. Na nossa terra muitos apertam o cinto com fome e nós aqui a lambuzarmo-nos com tanta comida

Sentia-se que o sangue fervia. E vieram impropérios. Selvagens como o vento, talvez não tanto assim, mas certamente iguais àqueles a que nos fomos habituando, do tipo dos que conhecemos bem, amorais o quanto baste, fáceis de identificar como nossos. Soltaram-se os insultos. 

Os encómios ficaram para mais tarde, quando os ânimos serenaram. E os diálogos se estabeleceram então civilizadamente:

– Se não formos bem-sucedidos agora, nunca o seremos.

– Só venceremos quando mostramos a nossa dignidade.

– Andamos léguas, mas nem por isso estamos mais perto.

– Não te metas numa luta que sabes que vais perder.

Quando o sol começou a ficar envergonhado, a despedir-se, ainda se reuniam à volta da mesa onde nunca deixaram de estar presentes força e vontade de desabafar, dizer coisas:

– São uns imbecis. Uns atrasados mentais.

Lembrei-me da professora Gabriela Antunes!

Entretanto, punham-se futebóis à parte e falava-se de argentinos. São uns assumidos racistas, acusava-se. Foi pena nossa, mas grande júbilo dos organizadores do jogo, não terem dado chance aos nossos jornalistas, não falo dos que se especializam em leitura de comunicados, falo de jornalistas sérios, os de verdade, de questionarem as vedetas mundiais. Não gostam de pretos, mas não negam o seu dinheiro?! E fazer-lhes sentir que os africanos, particularmente os angolanos, nada têm a ver, por óbvias razões, com eles. Será que os jogadores nada têm a ver com isso? Até têm. Que o diga o infeliz Enzo Fernandez, o jogador-cantador racista que não se viu em campo. Não veio conhecer a nossa terra. Seja o que for que tenha acontecido, a nossa consideração por essa malta deveria ser nicles, niente, absolutamente nada. Por fim, admitamos, que ainda que o futebol, com Messi ou sem ele, seja o ópio do povão, não é de futebol que mais precisamos. Absolutamente. Mesmo argumentando Festa Grande, assinalando ou não 50 Anos da nossa existência, precisamos de muito mais. Sim, o Povo carece de matar a fome com trabalho, saúde e educação. Com alimentos e bons programas, espectáculos educativos, mais dignos e simbólicos. Capazes de serem realizados com muito menos dinheiro. 

Refiro-me, concretamente, ao dinheiro que nos faz imensa falta para casos bem mais dignos e que, infelizmente, se estoira em futilidades, a alimentar vaidades dos que se julgam todos “donos disto tudo”!

Um povo pode sofrer terríveis sacrifícios para se manter unido e ter paz, mas há gestos que, seja por que razão for, por via do bom-senso, deviam ser abolidos. Como podiam ser catalogadas como impraticáveis certas atitudes. Há imagens que podiam ser evitadas. Algumas há que, simplesmente, já não colhem, não servem para nada. Já não interessam a ninguém. Não servem, sequer, para negar a nossa triste realidade. São marcadas de violência gratuita, todas condenáveis, tanto as que se mascaram de bondade, como as que trazem marcas do ferrete da maldade. Na verdade, umas como outras, acabam por ser iguaizinhas e o que é mais verdadeiro ainda, é que não merecem, nunca mereceram, em qualidade ou importância, qualquer sacrifício consentido. 

O povo angolano, o que trabalha e pensa, o que se borrifa para o futebol, aquele que é obrigado a comprar, todas as noites, sonhos estúpidos no mercado dos seus sonos intranquilos, o povo que mora miseravelmente em kimbos, mesmo o que habita a cidade adaptada nos bairros modernos, ou ainda a cidade de sítios impróprios, com as suas ladeiras descuidadas a descerem perigosamente dos morros para as praias, com casas de alvenaria ou mesmo com as tradicionais de adobe e pau-a-pique ou ainda os que sobrevivem nas vilas antigas onde se mostram vestígios dos sobrados coloniais e das igrejas do século antepassado, vai vivendo assim, como sabemos. Como Deus quer!

Mesmo os que vão prestando juramento de vassalagem às chefias, para garantir o “bem-bom”, o melhor que a vida lhes oferece ao longo dos anos, alguns angolanos cumprem nos seus serviços e nos seus círculos, os seus períodos de nojo. E também vão lembrando que não se podem alimentar de bola nem de jogos praticados sobre tapetes vermelhos. E, como os demais, também pensam, envergonhadamente, que isto assim não pode ser. Porque nós não queremos, em versos que já se cantaram assim, no tempo em que o povo ficou muito cansado.

Muitos já decidiram, outros começam a decidir que não querem ser rotulados como membros de uma manada, com o devido respeito pelos bois e pelas ovelhas, não querem pertencer ao rebanho que teimosamente segue, lenta e obediente, com a beiça colectiva a roçar o chão, quase a beijar os caminhos abertos pela sábia vontade dos pastores-mores.

Mais uma semana passou sobre as maka habituais e do costume. Mais uma vez me despeço dos meus amigos, parentes, dos meus leitores e dos companheiros de luta. Com a esperança de que melhores dias hão de vir certamente.  Fraterno abraço para todos e até domingo que vem, à hora do matabicho.

Forte da Casa, Portugal, 23 de Novembro de 2025

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