Eleições. A propósito do Acórdão nº 769/22 do Tribunal Constitucional

Lazarino Poulson*

“Maior que a tristeza de não ter sido feita justiça, é a vergonha dessa ter sido substituída pela política”– Lazarino Poulson. 

Ficou, de novo, adiada a realização da justiça. E com a ausência deste bem jurídico essencial ao Estado de Direito democrático, fica, igualmente, postergada as aspirações de um povo com a pretensão de construir uma nação, uma vez que os alicerces do Estado de Direito e Democrático foram gravemente afectos.

Aprendemos, desde os primórdios da iniciação à ciência jurídica, há 25 anos, mais concretamente na disciplina de Introdução ao Estudo de Direito, que o tribunal é a “última ratio” do Estado de Direito e Democrático. Quer isto dizer — se o poder judicial falha, termina o Estado de Direito e Democrático. 

A conferência de imprensa transmitida em directo, através da Televisão Pública de Angola (TPA), em que o Tribunal Constitucional anunciou o Acórdão nº 769/22 significou a falência do Estado de Direito e Democrático?  Ou as tentativas da sua edificação, entre nós, têm sido falhas? 

Eis a questão:

A “Corte Constitucional” angolana, Tribunal Constitucional (adiante TC), nas vestes de Tribunal Eleitoral, uma vez mais, desperdiçou a oportunidade de corrigir as falhas da nossa imberbe democracia. Cabe à esta instância, no nosso sistema jurisdicional, para além de garantir o cumprimento da Constituição da República de Angola (adiante CRA), dirimir os conflitos eleitorais. 

O Acórdão nº 769/22 do TC (adiante Acórdão) é mais uma “pérola jurisprudencial” que se junta à extensa lista de opróbrios das nossas instituições jurisdicionais. 

Certamente, essa peça mal quista por muitos, será objecto de estudo e de anotações por parte de especialistas onde nos incluímos, porém, à vista desarmada, nota-se o distanciamento que esta dá ao Direito. Os venerandos juízes conselheiros do TC correram fora de pista na maratona que visava dignificar o nosso Estado, com excepção da Dra. Josefa Neto (votou contra e produziu uma curta, mas notável declaração de Voto Vencido) e a Dra. Maria de Fátima da Silva (declarou-se impedida por ser esposa do presidente da Comissão Nacional – adiante CNE, uma das partes processuais). 

Se não vejamos:

i. O Acórdão negou o pedido da requente – UNITA para que a CNE corrigisse a Acta de Apuramento Nacional dos Resultados Eleitorais, em conformidade com o estabelecido no nº  1 do artigo 136.º  da Lei nº 30/21, de 30 de Novembro, que altera a Lei nº 36/11, de 21 de Dezembro, Lei Orgânica Sobre as Eleições Gerais (adiante LOEG) nos termos da qual na Acta de Apuramento Nacional devem constar os resultados apurados, as dúvidas e reclamações apresentadas e as decisões que, sobre elas, tenham sido tomadas. 

O TC deveria ordenar o cumprimento da referida norma legal, em homenagem ao princípio da transferência.Não o fez.  Negou justiça! 

ii. O TC concluiu, surpreendentemente, que a UNITA obteve menos votos que os divulgados pela CNE. Em face deste dado, nada despiciendo, deveria a “Corte Eleitoral” angolana ordenar a recontagem dos votos em respeito a verdade eleitoral. Mas, o TC, de novo, negou justiça. 

iii. Concluído que houve discrepância entre as actas-síntese de ambos litigantes, mandam as regras da justiça confrontá-las para a descoberta da verdade material, pois, estamos num processo onde estão em causa direitos indisponíveis. E mais: o TC tem poderes bastantes para requisitar as actas-síntese em posse da CNE, tal como têm os juizes na jurisdição administrativa poderes para requisitar os antecedentes administrativos, como nos diz Carlos Feijó e Lazarino Poulson em a “Justiça Administrativa (Lições)”, Casa das Ideias, Luanda, 2010, página 126, por aplicação supletiva da legislação procedimental e processual administrativa. 

iv. O TC negou o pedido da requente – UNITA, deste obrigar a CNE a publicar no seu site oficial as actas -síntese que, em princípio, tem na sua posse, alegando falta de base legal para o efeito. 

Tendo em atenção que por lei as actas – síntese devem ser afixadas nas Assembleias de Voto (nº 9 do artigo 86º da LOEG), o TC, a maiori ad minus (se pode o mais, pode o menos – tradução livre), deveria ordenar a CNE que seguisse o princípio da transparência e da publicação dos actos administrativos. E mais: as lacunas da lei podem ser supridas pelas decisões judiciais, na esteira de Robert Alexy quando diz que “(…) a decisão judicial preenche essa lacuna, segundo os critérios da razão prática e das concepções gerais da justiça consolidadas na colectividade (Teoria da Argumentação Jurídica, pág. 39)”. 

v. O TC ainda negou os pedidos da requente UNITA referentes a auditoria que deveria ser feita aos resultados eleitorais e o “julgamento” que devessem merecer as outras irregularidades do processo eleitoral (muitas de conhecimento obrigatório do TC), valendo também aqui os argumentos de maioria de razão, regras de preenchimento de lacunas da lei por parte de órgão jurisdicional e das homenagens que o TC deveria render aos princípios da descoberta da verdade material, da transparência e da imparcialidade (eleitoral). 

Pese embora, muito ainda haveria por tratar — faremos em sede própria e com mais detalhes, mas fechamos, por enquanto, a análise telegráfica deste Acórdão com uma negação inusitada nele contida.

Negaram os venerandos juízes conselheiros do TC o pedido da UNITA para declarar nula as normas regulamentares aprovadas pela CNE num período proibido por lei, nos termos do artigo 5.º da LOEG. Entendeu o TC, que as normas regulamentares não se enquadram na referida previsão legal e mobilizaram argumentos da obra de dois notáveis cultores do Direito Administrativo, Freitas do Amaral e Carlos Feijó (Direito Administrativo Angolano, Almedina). Também aqui andou mal o TC, pois esqueceu-se, talvez pela exiguidade do tempo, ou talvez não, que o referido “Regulamento” extravasa a mera densificação da lei que deveria executar, convertendo-se, assim, num regulamento com normas ilegais, devendo o TC declarar as suas normas extravagantes nulas. 

Como se vê, o TC elaborou o Acórdão sub judice como se estivesse a defender uma das partes. Mais que meros afloramentos jurídicos de privilégios de uma das partes processual — a CNE, o corpo do Acórdão parece uma peça do Ministério Público ou de um advogado defendendo a instituição publicada demandada. 

O esforço dos juízes do TC na defesa de uma suposta “fé pública” que não pode ser posta em causa, como se a natureza do contencioso eleitoral não pressupõe isso, foi tanta que destapou o verdadeiro propósito do Acórdão.  

Ficou, de novo, adiada a realização da justiça. E com a ausência deste bem jurídico essencial ao Estado de Direito democrático, fica, igualmente, postergada as aspirações de um povo com a pretensão de construir uma nação, uma vez que os alicerces do Estado de Direito e Democrático foram gravemente afectos. Até que se reponha o Direito, alea jact est…

* Jurisconsulto (Especialista em Direito Público-Político) e Docente Universitário

Bibliografia Consultada:

1. Alexy, Robert Teoria da Argumentação Jurídica — A teoria do Discurso Racional Como Teoria da Fundamentação Jurídica, 5.ª  edição Forese, 2020. 

2. Amaral e Feijó, Diogo Freitas do Amaral e Carlos Feijó, Direito Administrativo Angolano, Almedina 

3. Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça (Administrativa Lições), Almedina, 19.ª  edição, 2021

4. Andrade, José Carlos Viera de, Direitos na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, 6.ª edição, 2021. 

5. Canotilho, José Joaquim Gomes, Teoria da Constituição, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, 2018.

6. Feijó e Poulson, Calos Feijó e Lazarino Poulson, A Justiça Administrativa Angolana (Lições), Casa das Ideias, Luanda, 2010. 

7. Miranda, Jorge, Direito Eleitoral, 2.ª  edição, Almedina, 2021 

8. Paca, Cremildo, A Justiça Justiça Administrativa, Fiscal e Aduaneira, FDUA, WereAngola, 2017.

3 Comments
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